Viagem com Mazgani num “Lifeboat”

O mais recente álbum de Shahryar é um “barco salva-vidas” que transporta vozes e versos de luz e bruma. Fomos ao encontro do músico cujo nome persa (شهریار) significa “rei”, numa sala de concertos e num jardim. Falámos sobre as canções dele e de outros; família (os Mazgani) e país-natal (Irão); poetas (Rumi, Lorca, Pessoa, Auden) e religião (Bahá’í); diásporas e pertença. Leonard Cohen foi “testemunha”. (Ler mais | Read more...)

© Rita Carmo | Sony Music

© Rita Carmo | Sony Music

O rosto grave de Shahryar Mazgani que ilustra as capas dos seus discos contrasta com o sorriso que amplia no palco e fora dele. Mas combina bem com a firmeza de uma voz inconfundível.

É quinta-feira à noite, mês de Maio, quando o músico que, aos 5 anos, fugiu das perseguições aos Bahá’ís em Teerão, para ter agora apenas a nacionalidade portuguesa, se apresenta numa sala de concertos em Lisboa. É um espaço que parece reservado a amigos íntimos que o ouvem como divindade.

De fato (escuro) e camisa branca, quase “marca registada”, o cabelo negro e rebelde, como a sua poesia, domado por mãos que reclamam palmas em formato de prece, Mazgani explica o convite ao público, na estreia de Lifeboat, o seu mais recente álbum, 14 canções de outros às quais imprimiu a sua singularidade.

“Vamos ouvir versões e algumas músicas boas também”, anunciou, divertido, numa alusão às suas composições, entre elas Common Ground, aclamada como obra-prima, produção assistida por Mickey Harvey, cúmplice de Nick Cave, e John Parish, conselheiro de PJ Harvey.

Ninguém terá estranhado, portanto, que PJ Harvey fosse a honorável primeira “convidada”, com The Desperate Kingdom of Love. A este “reino desesperado de amor”, Mazgani ofereceu toda a sua alma.

Oh love, you were a sickly child/And how the wind knocked you down/ (…) At the end of this burning world/ You’ll stand proud, face upheld/ And I’ll follow you, into Heaven or Hell (…).

Num alinhamento perfeito, só podia seguir-se a imponente Common Ground, canção que encerrava o disco homónimo (até uma reedição finalizar com Endless Night).

A partir daqui, era esperado To Love Somebody, dos Bee Gees, escolhido para single de lançamento. A certain kind of light da interpretação, que empalidece a dos irmãos Gibb, a todos contagiou.

Uma luz com penumbra que acompanhou o sorrow em Trouble Will Soon be Over, de Willie Johnson, e Chilly Winds Don’t Blow, de Hermann Krasnow/William Lawrence Lovelock.

Em On My Way to Canaan’s Land, Mazgani soltou-se e saltou, o corpo num balanço tempestuoso que o obrigou a sossegar uma pauta no chão.

E quem esquecerá a “versão adulterada” de These Arms of Mine? Otis Redding jamais implorou, debruçado sobre uma plateia enlevada: Be my love/Be my Lover/I need someone/ Someone to treat me right.

A audiência já está, pois, rendida quando chega a Friday’s Child, de Lee Hazelwood, dilatando ainda mais os sons dos instrumentos de Sérgio Mendes (guitarra), Vitor Coimbra (baixo, contrabaixo), Paulo Cavaco (piano, teclados, acordeão) e Fernando Tavares (bateria).

Mazgani volta a pegar também na sua guitarra para Loving Guide (do álbum Song of Distance). “É para dançar”, ordena. Os fãs obedecem.

Ele retribui com a história do amante que, ao tocar à porta da amada, diz sempre “Sou eu” a cada pergunta de “Quem é?” A entrada apenas acontece, “o amor só se abre”, quando ele encontra a resposta certa: “És tu.”

Com Everytime You Say Goodbye, de Cole Porter, Love me Tender, de Elvis Presley, e a sua própria Broken Tree, Shahryar actuou como um rei, não mendigo, ainda que a despedida, no meio de uma “pequena multidão”, tenha sido feita com a Beggar’s Hands, que já despertava sentidos no documentário The Road to Mazgani/A Estrada para Mazgani, realizado por Rui Pedro Tendinha, e exibido no IndieLisboa em 2012.

He seems unshaken/ He is not afraid of any crowd / And you, will you listen now?/ He walks into trouble/ He steps into that darkest hour/ He shall fear and tremble /Now they want to see his power/ (…) And this is how the kingdom is won.

(“Beggar’s Hands”, Mazgani in: Songs of Distance)

© Aurélio Vasques | Sony Music

© Aurélio Vasques | Sony Music

Os “súbditos” ficaram rendidos, mesmo que tenha faltado If it be your will, do seu ídolo maior: Leonard Cohen. Por isso, na manhã de uma quarta-feira de Junho, cerca de duas semanas após o concerto, fomos ao encontro de Mazgani, no Jardim da Estrela, em Lisboa, o toque dos 12 sinos da Basílica com o mesmo nome competindo com o chilreio dos pássaros.

Na mesa da esplanada colocamos I’m Your Man, biografia de Cohen, da autoria de Sylvie Simmons. Foi esta a conversa com o homem, humilde e carismático, que se formou em Direito até descobrir que a única coisa que sabia e queria fazer era cantar.

Em Lifeboat, há tesouros como Macorina, de Chavela Vargas, e hinos quase sagrados, como Love Me Tender, de Elvis Presley. Mas vamos começar por If it be your will, sobre a qual Bob Dylan declarou: “Todas as canções de Leonard Cohen são como orações, mas esta é a maior de todas”.

It is! (E é!)

O próprio Cohen disse: “If it be your will chegou-me como uma velha oração que eu deveria reescrever”. Esta canção também chegou até si como an old prayer to rewrite?

Eu diria que sim. Cohen, quando lhe perguntam qual é a canção que gostaria de ter escrito, ele responde: If it be your will. Eu leio esta citação da seguinte forma: ‘A canção é melhor do que eu’. Acho que é um exercício de humildade. Pode até parecer o contrário: [perguntarem-lhe:] ‘Qual é a canção que gostavas de ter escrito’, e ele responder ‘If it be your will. Por acaso é minha, e escrevi-a.”

Parece-me que ele está a falar do mistério, de que sítio é que as canções vêm, como é que nos visitam. É preciso um certo despojamento para sermos visitados pelas canções. Sempre ouvi esta canção como uma prece belíssima, lindíssima, antiga, eterna. Queria muito cantá-la.

Cohen disse: “If it be your will é uma canção sobre rendição, sobre uma entrega total à vontade do outro. É uma oração pela conciliação e unidade. É uma oração de misericórdia”.

Não são assim todas as orações? Há sempre surrender [rendição]. O próprio Cohen reafirma isso numa outra canção, Anthem:Ring the bells that still can ring/ Forget your perfect offering / There is a crack in everything / That’s how the light gets in.’

É uma canção fantástica. É uma canção que, acho eu, rouba muito ao imaginário persa. É, a meu ver, um poema muito bem roubado ao Rumi [poeta do século XIII, nascido na Ásia Central]. Os grandes artistas roubam e os pequenos imitam, como se costuma dizer.

O que Cohen faz é rezar por uma brecha entre a luz. Todas as orações, nesse sentido, são essa vontade de misericórdia. E cantar também tem isso. É preciso desaparecer na canção, ser vulnerável para que a luz entre.

O Candle of the World/ your light was absent from our circle last Night./ Tell me the truth:/ Where was the light of your cheek?/Look at my heart./ It has been destroyed by the desire/ to see your face./ May you live/ long and longer!/

All last Night until Early dawn/ I paced back and forth, crying. /Morning came, and still/ my eyes are open. / You are the shadow of divine light./ We are your shadow in this world./ Who has ever seen a shadow/ separated from the light?/

Sometimes the shadow stays/ next to the light./ Sometimes it disappears into the light./ It is next to the light,/ light and shadow are equal to each Other.”

(“Light and Shadow”, in: “The Forbidden Rumi: The Suppressed Poems of Rumi on Love, Heresy, and Intoxication”, Translations and Commentary by Nevit O. Ergin, and Will Johnson, p. 105)

© Aurélio Vasques | Sony Music

© Aurélio Vasques | Sony Music

Desde que Mazgani se tornou conhecido e o seu trabalho reconhecido [a revista francesa Les Inrockuptibles elogiou-o, em 2005, como um dos 20 melhores novos artistas europeus], que quase todos o vêem como “um filho de Cohen”, como escreveu o crítico Gonçalo Frota.

Isso é um exagero.

Pode até ser, mas nunca escondeu e repete a sua admiração por Cohen. Como ele, também gosta de explorar as sombras. Em Lifeboat, e nos álbuns anteriores [Song of the New Heart, 2007; Song of Distance, 2010; e Common Ground, 2013], há muito sorrow (sofrimento) e loneliness (solidão). Porquê?

Acho que tudo está relacionado com o que disse antes sobre as orações. Há várias dores e há uma dor de parto, com a qual é preciso conviver. E é preciso abraçar esse lado da nossa condição. Não podemos fugir a essa sombra. Devemos abraçá-la em termos inteiros.

Quem canta o seu sorrow está a conferir voz a quem o escuta. Nesta coisa das canções, as melhores não são as que falam sobre o autor, mas aquelas que falam sobre nós. É isso que nos faz, por exemplo, ter amor ao Cohen.

Só quem abraça a sombra nos pode cantar por inteiro. Estamos todos num mesmo barco. Um dos amigos e mestres de Cohen, Irving Layton, grande poeta canadiano, fala dos poetas como o pássaro, um canário, que os mineiros mandam para dentro da mina para saber se há algum gás tóxico.

Isso é o que Cohen faz por nós. Ele vai primeiro, desbravando essa terra, para de alguma forma permitir que a nossa geografia interior se vá ampliando. E procurar explorar terras incógnitas implica sempre conviver com o sorrow.

Há sempre um negrume. Explorar essas fronteiras, e devolvendo-nos e dando-nos novas fronteiras implica ir à frente, como que com a sua candeia, alumiar novos terrenos para nós. E isso implica sempre sorrow.

Há outros pontos que Mazgani tem em comum com Cohen. Diria mesmo que há muito de Mazgani na biografia de Cohen…

Isso é gentileza sua…

… Por exemplo, um dos poetas que inspirou muito Cohen, além de Rumi, foi Federico García Lorca, com o “sorrow, o romance, a dignidade do flamenco e da Guerra Civil Espanhola”. A si também…

É verdade, é verdade…

Cohen entrou no universo particular de Lorca, “onde as palavras iluminam uma paisagem de solidão”. Como é que Mazgani explica a atracção por Lorca?

Eu também roubo muito aos poetas. É difícil explicar as razões. É um mistério. Gosto muito, por exemplo, de uma palestra muito bonita de Lorca que está publicada [foi feita em Buenos Aires e em Havana, em 1933]. Diz ele que o ‘olé’ dos espanhóis vem de Allah [palavra árabe para Deus].

O olé é dito quando o duende nos visita. Quando vem ou vimos alguém a cantar, a dançar, e de repente ouvimos ‘olé’.

Tenho um grande fascínio por quem canta assim. De repente, quando estamos arrepiados, é porque se ultrapassou a técnica, e o duende visita-nos.

E a poesia de Lorca está cheia de duende. Como o Cohen diz no Take This Waltz, um poema traduzido do Lorca: é o sabor a morte na boca – uma figura lindíssima.

“Em toda Andaluzia (…) as pessoas falam constantemente do duende e o descobrem assim que ele sai com instinto eficaz. (…) E não há maior verdade. Estes sons negros são o mistério, as raízes que se cravam no limo que todos conhecemos, que todos ignoramos, mas de onde nos chega o que é substancial na arte.

Sons negros, disse o homem popular de Espanha. (…) Eu ouvi um velho mestre violinista dizer: ‘O duende não está na garganta; o duende sobe por dentro, desde a planta dos pés’. Ou seja, não é uma questão de faculdade, mas sim de verdadeiro estilo vivo; ou seja, de sangue; ou seja, de velhíssima cultura, de criação em acto.”

(Federico García Lorca, in: “Teoria e Prática do Duende”)

© Rita Carmo | Sony Music

© Rita Carmo | Sony Music

O sabor a morte é uma figura lindíssima?

Sim. Na boca. O que Lorca diz e Cohen canta é: Take this waltz/with its very own breath of brandy and Death. Sobre Lorca, não sei, sinceramente, por onde começar. É um grande poeta! A las cinco de la tarde/ Eran las cinco en punto de la tarde. (…)

Voltemos à biografia de Cohen, que começa com The way you do anything/Is the way you do everything [“O modo como fazes qualquer coisa é o modo como fazes todas as coisas”]…

…Uma frase de Tom Waits. Subscrevo completamente.

Sobre Cohen, a sua biógrafa diz-nos que do pai, Nathan, um próspero e influente judeu canadiano, ele herdou “o gosto pelos fatos”; da mãe, Masha, filha de um rabi que emigrou da Rússia para fugir aos pogroms, ganhou “o carisma, a melancolia e a música”. Pode falar-nos um pouco da sua família? Quem são os Mazgani, que vieram do Irão para viver em Setúbal?

Por onde começar? Tenho a minha família espalhada por muitos países em todos os continentes. Muitos, coitados, foram obrigados a sair antes da Revolução [Islâmica de 1979] e outros depois.

Há, pois, uma grande diáspora de iranianos por todo mundo, de Mazganis, de Bahá’ís [a maior e mais perseguida minoria religiosa no Irão. [Ver aqui]. Tiveram de abandonar tudo o que tinham.

O meu pai já morreu, há 12 anos. Eu tinha na altura 28-29 anos. Agora, tenho 40. Era engenheiro agrónomo, formado na Europa, mas era um dos donos de uma empresa de publicidade, em Teerão, onde vivíamos. Ele tinha um grande amor pelas pessoas e uma enorme alegria de viver.

Também acho que tinha um negrume que o habitava. Porque onde há muita luz há muitas sombras. Devo-lhe muito. Encorajou-me imenso, mas foi igualmente muito exigente. Sou filho único.

Vou contar dois episódios do meu pai, em duas alturas distintas da minha vida, para ver um bocadinho como ele era. Eu tinha 9-10 anos, andava no Ciclo Preparatório, e disse-lhe: ‘Não quero ir mais à escola.’

E ele respondeu: ‘Está bem; não precisas de ir mais à escola.’ Fomos passear, durante dois, três ou quatro dias. Entretanto, senti culpa e disse-lhe: ‘Quero voltar à escola.’ E ele apenas reagiu com um ‘Está bem.’ E assim resolveu este problema.

Mais tarde, nos meus 14-15 anos, quando já tinha idade para ter juízo, disse: “Pai, estou aqui a ler um texto do Fernando Pessoa onde ele admite que não gosta da escola; e eu também não gosto da escola.’

O meu pai disse: ‘Vamos fazer um acordo. Quando tu escreveres versos como o Fernando Pessoa, não precisas de ir à escola; até lá, faz favor de ir para a escola!’

Foi assim que o meu pai sempre me tratou, com a confiança para dizer ‘Podes não ir’ e exigência de ‘Tens de ir , com a consciência da distância a que estás do Fernando Pessoa… ou do Cohen. Tens de saber qual o teu tamanho.’”

Estas duas histórias mostram como era o temperamento do meu pai. Sempre me tratou com muita generosidade, responsabilizou-me desde muito menino.

Tive a chave de casa ainda miúdo. E deu-me a chave de tudo. Sempre me tratou de igual para igual. Acho que foi fundamental. Haveria muito mais para dizer sobre o meu pai. Era uma criatura imensa.

Ai que prazer/ Não cumprir um dever,/ Ter um livro para ler/ E não fazer!/ Ler é maçada,/ Estudar é nada. (…)/ Livros são papéis pintados com tinta./ Estudar é uma coisa em que está indistinta/ A distinção entre nada e coisa nenhuma.

 (Fernando Pessoa, “Liberdade”, in: “Cancioneiro”)

© Altamont

E a sua mãe? Masha, a mãe de Cohen, lê-se na biografia, “não era uma mulher nostálgica; não falava muito do país que deixara [a Rússia], mas carregava o passado nas canções folclóricas da infância, o que, segundo o filho, “a fazia rir e chorar muito”…

… A minha mãe é uma mulher de uma fé imensa. Passou muitas dificuldades naquela altura [quando o Khomeini derrubou Mohammad Reza Pahlavi, pondo fim a 2500 anos de monarquia para instaurar uma teocracia]. Teve de deixar a vida para trás.

Era professora. Dava aulas de Sociologia numa faculdade. Também foi assistente social e, como tal, uma das pioneiras na criação de serviços sociais no Irão. Dava apoio directo às mulheres no terreno.

Era o contrário de muitas pessoas que vivem na amargura – por exemplo, quando proclamam ‘Nunca se vai encontrar uma cura para o cancro!’ É como se já não é para o seu tempo, já não é!

A minha mãe tem sempre esperança. Às vezes, quando estou a falar com ela, e sinto que eu sou o cínico: ‘Isto não vai a lado nenhum!’

A fé explica essa esperança?

Acho que sim, mas também um trabalho diário. Quando nos dizia que passou por muito não era para que tivéssemos pena dela. É como uma inocência cultivada. Ou seja, depois de todas aquelas experiências, já não desconhece a vida, porque passou por ela.

Não sabemos o que temos de enfrentar mas, para ela, não são as adversidades que contam, e sim um olhar novo.

“Trouble will soon be over, sorrow will have an end/ (…) God is my strong protector/ He’s my bosom friend/ If trouble arouse all around me / I know who’ll take me in (…)

(“Trouble Will Soon Be Over”, de Willie Johnson, in: “Lifeboat”)

Os seus pais vieram para Portugal para escapar às perseguições de que os Bahá’ís ainda hoje são vítimas…

Sim. Sim. Em 1979 [o ano da revolução] fomos para a Holanda e, em 1980, chegámos a Portugal.

Apercebeu-se das perseguições? Tinha apenas cinco anos nessa altura.

Bem, tive familiares próximos que desapareceram, foram eliminados, por assim dizer. Eu ia ouvindo as coisas. Sabia que havia coisas que eu não podia dizer na rua, por exemplo. Lembro-me disso. Mas não tive percepção de que estávamos a fugir.

A ruptura era óbvia, mas não, para mim, a iminência do perigo. Eu sentia-me protegido. Eu tinha uma relação muito forte com os meus avós, em particular com a mãe da minha mãe, que era a matriarca. Senti muito essa ruptura.

Eles ficaram para trás. Acho que uma das razões por que os meus pais vieram para Setúbal foi por os meus avós terem amigos na cidade. Os meus pais queriam que os avós viessem mas isso nunca veio a acontecer.

Por que não quiseram ou não puderam?

Eles morreram muito novos.

Quais são as memórias que um menino de cinco anos guardou do Irão onde nasceu? Até que ponto é que o lado obscuro de um país que estava a mergulhar nas trevas influencia as letras e a música que compõe? Será que o permanente sorrow tem a ver com a pátria, o facto de ter deixado em Teerão uma parte de si, de desconhecer se pode voltar…

Nunca me ocorre isso. Não tenho nostalgia, absolutamente nenhuma. Gostava de voltar ao Irão mas não com esta gente, não com estes energúmenos [do actual regime]. As pessoas da minha geração tiveram, quase todas, experiências de rupturas.

Muitos jovens iranianos, uns mais novos do que outros, foram obrigados a partir. Tive oportunidade de falar com Marjane Satrapi, a autora de Persépolis, e constatámos que a nossa história tem muito em comum.

Um dia, estava a falar com um amigo, em Washington, onde a minha mãe vive agora, e ele recordou que, na altura da guerra [com o Iraque, 1980-1988], ia com outras crianças para um monte fazer apostas sobre onde cairiam as bombas.

E adiantou: ‘Agora, o meu filho vem para casa e conta que não teve aulas porque estão a fazer obras ao pé da escola e está tudo cheio de pó.” E o meu amigo diz isto com um sorriso na cara porque se sente que o filho está em segurança.

Veja como as adversidades são diferentes, a dele e a do filho. O [W. E.] Auden tem uma imagem muito bonita sobre os traumas da criança. Ele diz: “O trauma é o acontecimento que procura a criança, para que a vida dela se torne séria.”

Ele vê nisso uma oportunidade. E diz mais: “Se a criança não encontrar esse trauma, o trauma encontrará outra criança.” A adversidade dá seriedade à vida. De repente, a nossa vida torna-se séria.

“Ah, o que é aquele barulho que vibra nos ouvidos/ Lá em baixo no vale, a rufar, a rufar?/ São apenas os soldados escarlates, amor,/ Os soldados que chegam. / Ah, o que é aquela luz que vejo tão cintilante e intensa/ Lá ao longe, brilhante, brilhante?/ Apenas o sol incidindo nas armas, amor/ Enquanto avançam ligeiros./

(…) Ah, onde vais? Fica aqui comigo!/ Os teus juramentos foram uma ilusão, uma ilusão? Não, eu prometi amar-te, amor/ Mas agora tenho de partir./ Ah, está quebrada a fechadura e estilhaçada a porta,/ Ah, é ao portão que eles chegam, chegam;/ As suas botas ressoam pesadas no soalho/ e os seus olhos são ardentes.”

(“Ah, o que é aquele barulho”, de W. E. Auden, in: “Diz-me a Verdade Acerca do Amor: Dez poemas, Outubro 1932, Tradução de Maria de Lourdes Guimarães, pp 31-33)

© Altamont

Não foi um trauma, pelo que entendo, mas como foi mudar-se de Teerão, que em 1979 tinha cinco milhões de habitantes [agora serão 15 milhões] com o seu persa e inglês fluentes, para Setúbal, cidade menos populosa e desenvolvida do que a capital iraniana?

Eu lembro-me que o primeiro dia de escola foi horrível. Estava aflitíssimo. Não queria ir. Mas, aos cinco anos, somos como esponjas. Muito rapidamente se aprende a falar a língua. Rapidamente, se distrai e se começa a brincar.

A princípio a ruptura foi difícil, sobretudo deixar os meus avós a minha avó materna, para trás. Lembro-me de outra história do meu pai. A primeira casa que tivemos em Setúbal era um quinto andar. Vivemos aqui pouco tempo.

Eu tinha uma bola, preta e amarela, e estava sempre a brincar com ela em casa. O meu pai dizia: ‘Tens de ir para a rua. Não podes brincar sempre em casa.’

Quando eu disse: ‘Não quero’, ele agarrou na bola e mandou-a pela janela fora. E eu nunca mais voltei para casa. O resto da minha vida foi à procura dessa bola. Portanto, tive pais que me encorajaram: tens de ir para a rua.

Nunca se sentiu estrangeiro?

Hum, acho que não, embora todos nos possamos sentir estrangeiros em determinadas circunstâncias. É disso que eu quero falar nas minhas canções. Não é o facto de eu ter saudades do Irão. O sentimento de ser estrangeiro pode acontecer em nossas casas.

Ser estrangeiro é, às vezes, olharmos para uma paisagem e não a reconhecermos como nossa. Ou olhar para os ‘outros’ e não os reconhecer. ‘Quem é esta gente?’ É isso o exílio.

Em Setúbal, cidade com problemas sociais e económicos [o aumento do desemprego foi comparado a uma “epidemia silenciosa”], nunca se sentiu marginalizado por ser ‘imigrante’?

De forma alguma! Nunca, nunca, nunca!

Como sabe, há ainda muito racismo e xenofobia na sociedade portuguesa. Músicos africanos ou luso-africanos, como o colectivo Buraka Som Sistema, por exemplo, usam as suas canções como afirmação de identidade. O Mazgani, pelo contrário, diz que não se arrisca a cantar os clássicos persas. Por que não sente necessidade de colocar as suas raízes no que compõe?

Eu abraço por inteiro as minhas origens, a minha educação. Sempre falei Farsi em casa. Sempre ouvi música iraniana em casa. Sempre me leram a poesia, a História do Irão. Isso é uma coisa. Outra coisa é saber que fardo é esse, o tempo, as várias horas por dia que é necessário dedicar à música persa.

Isso é uma coisa. Outra coisa seria eu tentar fugir do que sou: dizer que sou indiano por ter receio de assumir que sou iraniano, ou não cantar por ter medo que me considerem terrorista. Isso, de modo algum!

Talvez esta minha maneira de ser esteja relacionada com a bola que o meu pai mandou para a rua. Eu fui à procura dela. Talvez haja quem precise de ser encorajado a ir buscar ‘a bola’. 

“Wegue, wegue wegue wegue/ (…)/ Quando eu entro o palco se move/ talento que chove/ claro que o povo me ouve/sou pongolove/ toco a buraka abre fronteira/ não digo lixo nem digo asneira/ do microfone sou a primeira/ vou levantar a minha bandeira/ Angola, o mundo cobiça/ mas é o povo que te enfeitiça/ (…)”

(“Kalemba”, de Buraka Som Sistema)

Não podemos, contudo, ignorar que hoje há muito mais profiling sob pretexto de segurança: há aeroportos onde um passageiro africano ou árabe é tratado com suspeita apenas devido à cor da pele ou porque usa um turbante.

Sei isso, mas eu, felizmente, fui ensinado que não é problema meu. Se for interceptado num aeroporto, posso dizer: “Venho de um país que inventou metade das coisas que tu tens.”

Se o outro é ignorante, é problema é dele, não meu. Só que é preciso haver encorajamento, uma estrutura onde uma pessoa cresça com amor próprio, com a consciência de que vem de uma tradição riquíssima que deu tanto ao mundo.

Não sou o “eixo do mal” nem o Bin Laden. Nos aeroportos, felizmente, não tenho problemas porque não tenho passaporte iraniano.

Sou português, sem dupla nacionalidade. Portugal é o meu país e a minha casa. Este país adoptou-me e eu adoptei este país. Este país tem sido muito hospitaleiro para comigo. Não há um único episódio que possa dizer que fui discriminado. Nunca!

Desculpe insistir, mas por que é que nas suas canções não nos apresenta os poetas persas?

Mas eu vou roubando aos poetas… Rumi, por exemplo, é uma figura de referência. Porque é totalmente inclusivo. É o poeta mais vendido nos Estados Unidos. Porque tem um lado mais espiritual, quase de autoajuda, e outro lado mais denso, ligado à religião.

É como uma igreja aberta. Outros poetas importantes são Sa’adi, Hafez… Ainda hoje, quando ouço música iraniana, é como se a casa mudasse. Um deles é [Mohammad Reza] Shajarian. A poesia e a música sempre estiveram presentes na minha vida.

“O nightingale, make a moaning sound/ And further deepen my sorrow/ Break and overturn the cage out of a heartfelt sigh/

O cage-bound nightingale get out of the cage, sing the song of human liberty/ And set fire to the whole world out of your sigh.” 

(“Morghe Sahar”, de Mohammad Reza Shajarian)

© Altamont

Há um capítulo muito interessante na biografia de Cohen com o título de Find me please, I am almost 30 (“Por favor, encontrem-me, tenho quase 30 anos”)…

… Isso faz parte de um poema que ele escreveu [Marita, please find me, I am almost 30].

… Curiosamente, foi com essa idade, 30 anos, que o Mazgani entrou no mundo da música. Antes formou-se em Direito…

… É verdade. Veja lá o disparate. Os meus pais acharam que eu tinha enlouquecido. Tive de os convencer de que queria ser músico. (Risos)

Não sei qual é a razão de ter começado tão tarde, mas talvez seja porque eu considere a música uma coisa tão séria que achava que não era para mim. Ou bem que começas aos 5 anos, com o teu pai que já é um mestre, ou não é aos 20-30 que te vais dedicar a isso.

Aos 20 ou 30 já é preciso ter pelo menos uma década de trabalho em cima para se ser alguém. Fora da música clássica persa, que exige grande labor, eu queria inventar um caminho para mim, para quando me perguntassem ‘o que andas a fazer?’ eu pudesse responder ‘sou cantor’. Não foi um chamamento.

Teve medo de falhar?

Não tinha para onde ir. Não tinha outro caminho. Não é eu dizer ‘Só posso ser músico!’, era mais ‘Pá, eu não posso ser mais nada’.

Diz que “ninguém consegue imitar o Cohen”, mas no seu concerto no Lux [seguiu-se outro, no Hard Club do Porto] mostrou também como a sua voz é original ainda que cantando versões de outros. Por que é que os 14 temas incluídos em Lifeboat foram os seus “companheiros de viagem”?

São canções de momentos fáceis e menos fáceis da minha vida. Podiam ser outras. Podiam ser centenas ou milhares. Foi uma escolha difícil.

Dos seus projectos, cantar em português e não apenas em inglês (a excepção é um tributo a Adriano Correia de Oliveira) é uma possibilidade?

Sim, está tudo em aberto.

Canções compostas por si?

Sim, é uma possibilidade.

Para um artista cuja música é universal e que tem actuado sobretudo na Europa [festivais na Holanda, Itália, França; espectáculos em Espanha, Dinamarca e Suécia], outros países e continentes, como Brasil e África, estão no seu horizonte?

É provável. Já estive em Angola, a passear e a visitar amigos. Mas é preciso primeiro delinear uma estratégia.

Gostava de encher o Meo Arena, como o Leonard Cohen nos seus concertos em Lisboa?

Adorava encher o Meo Arena, mas não vejo isso a acontecer tão cedo. (Risos) Leonard Cohen é um caso à parte. Ele é outra criatura. Eu só quero dizer o que tenho a dizer.

Quando canta um quase “hino” de Elvis Presley, já chega a todo o lado. Por que o levou para o Lifeboat?

O Elvis Presley é um revolucionário da música. Adoro-o. Gosto do intimismo mas também de rock’n’roll. Gosto do sussurro e dos decibéis altos.

“You whispered farewell/ I’ll travel faster alone/ neither of us/ can find that common ground”.

(“Common Ground”, de Mazgani, in “Common Ground”)

© Sony Music

© Sony Music

Este artigo foi originalmente publicado no REDE ANGOLA, em 22 de Junho de 2015 | This article was originally posted on the news website REDE ANGOLA, on June 22, 2015

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