Todos os dias, eles viajam, em 400 lanchas rápidas, entre a República Islâmica do Irão e o Sultanato de Omã, para transportar cigarros americanos. Que importa se o produto é do inimigo? Os contrabandistas em Khasab, capital e paraíso fiscal da península de Musandam (Moçandão), equilibram-se numa perigosa travessia marítima, de manhã à noite. Para ganhar a vida à chegada, frequentemente encontram a morte no regresso. (Ler mais | Read more…)

Contrabandista desde 2003, Abdulaziz Poiandi vive em Qeshm, na costa sul do Irão e a norte do estreito de Ormuz. Todos os dias, faz a viagem de duas horas até Moçandão (Musandam)
© David Clifford
Abdulaziz Poiandi veste um corpo de modelo com roupa de mendigo. Está sentado a uma mesa do restaurante Bukha no velho souq de Khasab, a capital da península de Moçandão (Musandam), no extremo Norte do Sultanato de Omã.
À entrada dos estranhos, o olhar do homem que calcula a sua idade em 23 anos ergue-se por segundos para logo se voltar a concentrar no almoço de pulao (arroz de legumes e açafrão) com frango.
Hoje é sexta-feira, descanso islâmico semanal e, talvez por isso, seja um dos poucos clientes na sala principal que, todos os dias, se enche de contrabandistas, como ele. Iranianos que arriscam a vida para comprar cigarros do “inimigo”- americanos.
Terminada a refeição, Poiandi encaminha-se para o gabinete de Faisal Mussa, o indiano muçulmano que gere o restaurante aberto há 33 anos e se oferece para interpretar as suas palavras, de farsi para inglês.
O andar é vagaroso, como se arrastasse o peso do mundo nos jeans desgastados e na camisa com nódoas que cobrem a sua magreza.
Os olhos, de um negro profundo, não disfarçam a melancolia. Num rosto jovem marcado pelo sofrimento, a aparente tranquilidade da voz é atraiçoada pelo tremor das mãos com unhas roídas à flor da pele.
O sorriso ficará preso até ao momento em que sentencia, bem-humorado: “Uma mulher é suficiente para um homem.” Não precisa das quatro que a religião permite.
Poiandi é contrabandista desde 2003. Vive em Qeshm – o nome é uma corruptela de “queixume” desde o século XVI, quando os portugueses ocuparam a maior ilha do Golfo Pérsico, localizada na costa Sul do Irão e a Norte do Estreito de Ormuz.
Todos os dias, ele faz a viagem de duas horas entre Qeshm e Musandam para transportar a mercadoria que os seus dois patrões – um à partida e outro à chegada – combinaram transaccionar.

Do bolso da camisa de Abdulaziz Poiandi sobressai um maço de cigarros, que depois exibe o na palma da mão. “Sim é americano”, ironiza. “Somos viciados nos cigarros deles”
© Dadvid Clifford
São pequenas embarcações de fibra de vidro, enganadoramente frágeis, com potentes motores até 200 cavalos, cada uma com dois tripulantes. A uma média diária de 400, circulam a velocidade estonteante.
De pé, como habilidosos contorcionistas, eles dominam ventos furiosos e ondas que podem ultrapassar os três metros de altura. É um exercício de sobrevivência iludir a guarda costeira e a polícia de fronteira iranianas.
Em frases curtas, respostas a uma sucessão de perguntas, Poiandi descreve-se:
– Uma vez fui esfaqueado aqui [aponta para a coxa], e não morri porque fui capaz de fugir.
– Já vi muitos serem mortos e tenho medo, mas não tenho alternativa.
– Fui pescador mas não ganhava nada. Não encontro outro tipo de trabalho, porque tenho poucos estudos.
– Isto é quase herança. O meu pai dedicou-se ao negócio [contrabando] durante 30 anos. Ele também foi ferido numa perna. Já se reformou.
– Sou filho único e, portanto, tenho de sustentar a família.
– Se me matarem, ninguém recebe nada. Esta profissão não tem seguro.
Poiandi ganha o equivalente a 33 dólares por cada viagem de ida e volta. Não recebe o salário ao fim de cada jornada, mas de cinco em cinco ou de dez em dez.
Às vezes a meteorologia é desfavorável e ele sente-se obrigado a ficar em terra, à espera que o tempo melhore para não danificar os produtos traficados.
Outras vezes, a apertada vigilância policial em território iraniano força-o ao esconderijo e à paralisação – até chegar um “sinal” de código que lhe permite avançar.

Abdulaziz Poiandi é casado e tem apenas uma filha. Chega a estar um mês sem as ver. Ter um só filho, como os seus pais, é raro no mundo muçulmano. Mas ele já faz parte de uma minoria. É um sunita entre a maioria xiita do Irão
© David Clifford
No porto de Khasab (que os portugueses chamavam de Caçapo), o movimento é frenético mesmo nos dias mais calmos.
Numa tarde de quinta-feira – um dos dias calmos –, dezenas de barcos, mais próximos ou distantes uns dos outros, quase formando um acampamento, enchiam-se de material proveniente do Dubai, principal entreposto.
Homens de pele escurecida pelo sol, novos e velhos, carregam à cabeça, nos braços, às costas ou aos ombros, dezenas de caixas. Frascos de sumo, electrodomésticos, vídeos, frigoríficos, telemóveis… Mais ocultos poderão estar, conta-me Mohamed Ba, guia turístico, revistas pornográficas e haxixe – o que agrava o potencial de risco.
À passagem do bote que me transportava, ninguém surpreendentemente se incomoda. Um contrabandista exibe os dentes e compõe o cabelo para a fotografia, disfarçando a pobre figura. Outro prolonga os lábios até às orelhas e faz um sinal amigável com os dedos convidando ao fumo. Tudo isto sem interromper a tarefa do carregamento.
Alguns barcos estão cobertos com panos como se fossem velas; outros com oleados, para melhor proteger a carga. Costumam chegar de madrugada. Às vezes trazem cabras e ovelhas que são expedidas para os Emirados e Arábia Saudita. Têm de partir, salvo condições adversas, antes das 22h30.

No porto de Khasab (Caçapo), o movimento é frenético. Dezenas de barcos, mais próximos ou distantes uns dos outros, quase formando um acampamento, enchem-se de material proveniente do Dubai, principal entreposto
© David Clifford
Faisal Musa, o indiano dono do restaurante Bukha, garante que o contrabando de tabaco está em declínio, “porque as margens de lucro diminuíram muito”. A aposta agora “é mais na electrónica”, explica.
Ele parece saber do que fala. Enquanto serve de tradutor, um grupo de afegãos, também contrabandistas residentes no Irão, entrega-lhe um volumoso maço de notas. O diálogo que se estabelece entre eles, apesar de imperceptível, indicia uma relação de empregador e empregados.
Os afegãos têm as mesmas feições agrestes e os gestos desconcertados de Poiandi. Depois da “negociação” com Mussa, ficam a olhar para o iraniano, qual estrela de cinema entrevistado por estrangeiros, num misto de admiração e desconfiança.
Estaria o colega a contar os segredos da “profissão”? Ficam em silêncio ou murmurando entre si, com o olhar fixo num aparelho de televisão onde uma locutora, de lenço opaco e lábios brilhantes, vai lendo as notícias do dia.
Poiandi é casado e tem apenas uma filha. Chega a estar um mês sem as ver. Ter um só filho, como os seus pais, é raro no mundo muçulmano. Mas ele já faz parte de uma minoria. É um sunita entre a maioria xiita do Irão.
Quando lhe perguntamos se quer aumentar o número de descendentes, confunde-se e dá uma sonora gargalhada: “Não, não quero mais mulheres. Ter uma chega”. Desfeito o equívoco, esclarece que sim, tenciona ter mais dois ou três filhos. Mas não tem pressa. “Não sei o que o futuro me reserva; a minha vida é provisória.”
Do bolso da camisa sobressai um maço de cigarros. Pedimos a Poiandi que revele a marca. Rapidamente exibe o produto na palma da mão. “Sim é americano”, ironiza.
Se os Estados Unidos são o inimigo porquê arriscar a vida numa travessia tão perigosa para contrabandear tabaco americano? O iraniano replica, retomando a seriedade: “Se os americanos nos atacarem vamos lutar contra eles. É nossa obrigação. É a nossa pátria. Mas também é verdade que somos viciados nos cigarros deles.”
Mais do que dependência trata-se de uma questão comercial. O contrabando só começou depois da revolução islâmica do Ayatollah Khomeini, em 1979. Até então, o tabaco do “grande Satã” não era proibido na Pérsia do Xá Mohammad Reza Pahlavi, aliado estratégico de Washington. O Grande Bazar de Teerão, das principais instituições iranianas, detinha direitos quase exclusivos de venda.
A perda deste e de outros privilégios levou os bazaris a juntar-se aos mullahs para derrubar o imperador. Agora, as elevadas taxas de importação cobradas pelas autoridades, para compensar a fuga aos impostos dos cidadãos, impeliram muitos a dedicar-se a actividades ilícitas para não abrirem falência.

No restaurante Bukha, o proprietário, Faisal Musa, indiano muçulmano, atende um grupo de afegãos (na foto), também contrabandistas residentes no Irão
© David Clifford
O contrabando deixa muitos cadáveres nas águas de Moçandão. A isolada aldeia piscatória de Kumzar, só acessível por mar, no extremo norte da península, costuma ser local de abrigo para os traficantes quando o perigo espreita.
“Às vezes, durante a noite, ouvimos tiros e, na manhã seguinte, encontramos corpos a boiar. Somos nós que os enterramos”, diz Mala’Allah Ali Hassan Kumzari, um dos habitantes.
“Se eles conseguem pagar ‘comissões’ à Polícia iraniana podem entrar sem dificuldade; se não, têm de se esconder e encontrar caminhos alternativos para poderem entregar o que carregam”.
Mala’Allah, “mais ou menos 27 anos de idade”, conhece vários das centenas de contrabandistas que diariamente se cruzam com ele.
Antigo pescador agora dedicado a transportar turistas num pequeno bote, que ele guia com absoluta destreza, ou somente a entretê-los com café amargo e tâmaras doces num dhow, típico barco omanita, Mala’Allah deixa transparecer fascínio pelos iranianos que, nas suas lanchas rápidas, lhe acenam sem perderem o equilíbrio. “Somos todos irmãos”, diz com esgar cúmplice.
Da parte dos omanitas é evidente o reconhecimento. Se no Irão os contrabandistas são perseguidos, em Moçandão são bem-vindos. O seu “comércio” é a principal fonte de receitas da península.
Os barcos pagam por estarem ancorados no porto. Restaurantes e lojas abarrotam de clientes. E há outra repercussão ainda mais extraordinária: todos os 600 táxis da cidade de Khasab, a maioria pickups, estão ao serviço dos traficantes.
Não admira que Khasab seja o único aeroporto do mundo onde não há taxistas à espera de passageiros. Estes, se quiserem ser levados ao seu destino, terão de combinar previamente com os hotéis onde fizeram a reserva para os irem buscar.
Os táxis dos contrabandistas – além das carrinhas, só há três veículos ligeiros que servem de transporte colectivo – estão contratados a tempo inteiro para fazer as viagens necessárias entre o porto e os seus insólitos armazéns duty free.

Khasab, descrita como “os fiordes de Omã”, é um paraíso para turistas e contrabandistas
© travel-tramp.com
A jornalista viajou a convite da representação do Governo de Omã em Lisboa
Este artigo foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 5 de Junho de 2005 | This article was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on June 5, 2005
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