Hafez al-Assad (1930 : 2000): Ele preferia ser temido do que amado

Nas ruas, cidadãos despediram-se com lágrimas do “Leão de Damasco”. No Parlamento, deputados exibiam dor. Na televisão, um locutor chorou ao dar a notícia da morte do homem a quem Henry Kissinger chamava “Esfinge”. Patrick Seale, o biógrafo, disse convictamente que o Presidente sírio “não morreu derrotado”. (Ler mais | Read more…)

© Manu Brabo

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O destino pregou uma partida ao homem que, metodicamente, planeou a sua vida. A morte bateu à porta do Presidente sírio, Hafez al-Assad, às 11 horas da manhã [de 10 de Junho de 2000] em Damasco, uma semana antes de o seu filho, Bashar, ser elevado ao comando regional do Partido Baas, no poder.

Como se houvesse já um meticuloso plano, o Baas logo modificou a Constituição para garantir que pelo menos um dos desejos de Assad fosse cumprido: o futuro líder não precisa de ter 40 anos mas só 34 (a idade de Bashar quando o pai saiu de cena, e não necessita de ser membro do comando regional. Basta-lhe ser um árabe.

Assad, que morreu de (mais um) ataque cardíaco (um médico libanês próximo da família enumerou outras doenças de que o líder padecia: linfoma, diabetes e insuficiência renal), conseguiu com esta sucessão um dos seus principais objectivos, já que outras ambições ficaram por realizar.

Como a de recuperar os Montes Golã, perdidos quando era ministro da Defesa em 1967, ou a de ver o mundo árabe unido, sob a sua liderança, contra o domínio de Israel no Médio Oriente.

Em todo o caso, é indiscutível que em 30 anos de regime, Assad com os seus cinco mandatos consecutivos de sete anos (a última eleição foi em 1999, com mais de 99% dos votos) marcou de forma indelével a região onde nasceu em 6 de Outubro de 1930.

A “extraordinária consistência”, realçada pelo seu biógrafo, o jornalista britânico Patrick Seale [1930-2014], era admirada até pelos inimigos.

A imagem que projectava de um homem introspectivo, calculista e duro terá sido moldada pelas montanhas agrestes de Qurdaha, a aldeia natal no norte da Síria. Aqui tudo tinha de ser conquistado.

“Cada campo tinha de ser desbravado com muito suor e cada homem era dono do seu cantinho e da sua arma”, escreveu Seale na biografia presidencial, Asad: The Struggle for the Middle East.

Hafez al-Assad e a família que deu ao mundo árabe a primeira dinastia republicana
© Business Insider

Os primeiros anos de Assad foram passados fora de casa, em cima de um burro, a caminhar pelos campos, ajudando a regar colheitas ou a colher frutos, ou a vaguear com outras crianças.

O carisma terá sido herdado do avô, Suleyman, e do pai, Abu Suleyman, camponeses fortes e respeitados, que serviam de mediadores em disputas entre aldeões e por isso subiram na escala social. A promoção foi assinalada em 1927, quando o apelido da família, Wahhish (Selvagem) – conquistado pelo avô numa luta com um pugilista turco – , mudou para Assad (Leão).

O pai de Hafez era o centro da sua vida. Na aldeia, só Ali Suleyman sabia ler. Seguia atentamente a II Guerra Mundial, assinalando com alfinetes os locais de batalha num mapa afixado no quarto de Assad.

Aos 70 anos, prendia um papel de cigarro a uma árvore e, com a sua arma, desfazia-o em pedaços, para admiração dos miúdos. Os filhos beijavam-lhe a mão pela manhã, não se sentavam na sua presença e, já crescidos, não se atreviam a fumar diante dele. Ali Suleyman era sobretudo obedecido e foi com ele que Assad aprendeu o lema: “Mais vale ser temido do que amado”.

Discípulo fiel do Partido Baas, criado em 1940 por dois professores damascenos (o cristão Michel Aflaq e o sunita Salah al-din al-Bitar), Assad defendia uma visão de Estado nacionalista, secular, socialista e pan-árabe.

Desde o golpe de Estado (“revolução”) de 1963 (já com Assad como chefe de facto da Força Aérea) até 1970, o Baas foi caracterizado por lutas internas durante as quais líderes rivais exploravam os seus laços tribais e regionais.

Segundo o Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI), de Londres, “estas lutas coincidiam, habitualmente, com lealdades sectárias, uma vez que as tribos pertenciam, de um modo geral, à mesma seita”.

Um exemplo foi o fracassado golpe, em 1966, levado a cabo por partidários – a maioria dos quais drusos – do general “baasista” druso .

Hafez al-Assad com Muammar Kadhafi da Líbia (ao centro) e Anwar al-Sadat do Egipto (à esq.)
© syrianfreepress.files.wordpress.com

As lutas resultaram primeiro numa vitória dos rivais alauitas de Assad, em 1970, e depois na suprema ascensão deste ao poder no ano seguinte. O golpe de 1971 foi o último de uma sequência que desestabilizou a Síria desde a independência ganha à França em 1946.

Posteriormente, outros tentaram derrubar Assad, mas em vão.A estabilidade é reconhecida pelos sírios que ontem, nas ruas ou nos bancos do Parlamento, choraram a morte do “Leão de Damasco”.

O seu poder foi, no entanto, consolidado à força de repressão. Uma ubíqua polícia secreta prevenia ameaças, reais ou imaginárias. A maior ameaça proveio da Irmandade Muçulmana, que pertence à maioria sunita da população (57% de nove milhões) e que Assad esmagou em 1984, após uma rebelião na cidade de Hama.

Os sunitas, excepto talvez as classes comerciais, sempre olharam para os alauitas (11% dos habitantes) como uma seita xiita herege. E Assad, para se proteger, integrou no seu círculo outras minorias – ismailis, drusos, curdos, circassianos, cristãos ortodoxos e arménios – que com ele prosperaram.

O regime sempre  desmentiu práticas sectárias, mas nota o IEEI, sob a Presidência de Assad, o grosso dos soldados nas unidades de elite são alauitas e a maior parte das posições-chave são ocupadas por alauitas, sobretudo os do clã do defunto chefe de Estado.

Num país sem conceito de “nacionalidade síria”, os lideres sempre confiaram nas relações de comunidade, tribo e clã, consideradas centrais nesta sociedade. Isso é reflectido na predominância dos oficiais alauitas.

As reformas de liberalização económica iniciadas no início dos anos 1990 terão sido parcialmente introduzidas para persuadir as “minorias protegidas” a manter o statu quo.

O código de investimento foi mudado para permitir que empresas sejam totalmente controladas por estrangeiros e que investidores beneficiem de uma taxa de câmbio de mercado livre.

A campanha anticorrupção – “menina dos olhos” de Bashar – faz parte deste movimento de reforma, necessário para sanear uma economia que, depois de um sólido investimento, desacelerou nos últimos três anos, com previsões de recessão.

A queda nos preços do petróleo reduziu as receitas em cerca de 30 por cento em 1998, e o crescimento populacional (mais de 3,5%/ano, uma das maiores taxas do mundo) contribuiu para uma subida acentuada do desemprego e declínio dos serviços sociais.

Se a tendência persistir, refere o IEEI, a população será de 32 milhões em 2025. E, como os recursos são poucos, haverá certamente escassez de água. A seca dos últimos anos só serviu para agravar a situação.

Esta é uma das razões por que Assad não pôde abdicar do Mar da Galileia. Nas negociações com Israel, retomadas em Dezembro após um hiato de quase quatro anos e suspensas de novo em Janeiro, Assad bateu com a porta quando o primeiro-ministro israelita, Ehud Barak, lhe apresentou uma proposta de retirada dos Golã que não lhe devolvia o controlo do Lago de Tiberíades, um dos maiores reservatórios de água de Israel.

Barak, enfraquecido por uma crise de governo, não aceitou recuar até às fronteiras da guerra de 1967, como Assad exigia. Assad, que há vários anos disputa a água do Rio Tigre com a Turquia, onde o rio nasce, também não cedeu, mesmo que a paz tenha sido por ele proclamada “opção estratégica”.

Saddam Hussein, presidente do Iraque (e líder de uma facção rival do Partido Baas, em Bagdad), e Yasser Arafat, líder da OLP: os dois principais inimigos de Hafez al-Assad
© anp-archief.nl

Advogado da unidade árabe (a Síria, sob a sua liderança formou com o Egipto uma República Árabe Unida, que apenas durou de 1958 a 1961), Assad nunca perdoou a “traição” de Anwar el-Sadat, o primeiro a fazer a paz com Israel, em 1979. Preferiu morrer com a “honra intacta”, sem imitar o exemplo de um dos seus maiores rivais, o presidente da Autoridade Palestiniana e líder histórico da OLP, Yasser Arafat [1929-2004].

A aliança estratégica que, dois anos depois, a Síria estabeleceu com o Irão (xiita, como os alauitas) permitiu-lhe usar a milícia Hezbollah no Líbano como forma de pressão sobre Israel. O trunfo caiu-lhe das mãos em Maio [de 2000] quando a guerrilha xiita forçou os soldados israelitas e a sua milícia a abandonar o Sul do Líbano sem restituir os Golã à Síria.

Ainda assim, Assad não abriu o jogo. Enquanto os israelitas o ameaçavam com “duras represálias”, ele instruiu as organizações palestinianas pró-sírias a manterem-se quietas.

Consciente de que os seus 35 mil soldados e cerca de um milhão de trabalhadores sírios são agora o alvo após a retirada israelita, mandou sair das ruas os uniformes militares para os substituir por fardas civis dos mukhabarat (agentes secretos).

Continuou, entretanto, a enviar sinais de que estaria disposto a reatar as negociações com Israel. Assad não suportava a ideia de Arafat avançar em detrimento da Síria.

Foi para diminuir a influência de Arafat no Líbano que ele armou o Movimento Amal (xiita) e lhe ordenou que durante três anos (1985-1987) bombardeasse insistentemente os mais de 300 mil refugiados palestinianos.

A “guerra dos campos” causou mais mortos (vários milhares) do que a invasão israelita de Beirute e subsequentes massacres pela milícia Kataeb falangista pró-israelita em Sabra e Shatila. Inquirido pelo biógrafo Seale sobre a razão desta matança, Assad respondeu: “A Palestina é demasiado importante para ser deixada aos palestinianos”.

Assad, o trabalhador incansável que não fumava nem bebia álcool, baralhava todos com as suas estratégias. Quando amigos e adversários pensavam ter decifrado os seus desígnios, ele mudava de rota. Era paciente e sabia esperar pelo melhor momento de “devorar a sua presa”, segundo a descrição de um analista.

Hafez al-Assad com Richard Nixon (à esq.) e Henry Kissinger (à dir.) – o secretário de Estado americano a quem ele obrigava a ouvir, durante horas, a sua versão da história do Médio Oriente quando o recebia em Damasco
© pinimg.com

Nos anos 1980, Assad forçou a retirada de Israel e dos Estados Unidos do Líbano com bombas, assassínios e ataques suicidas cometidos por grupos islamistas apoiados por Damasco.

Em 1990-91, porém, órfão da extinta União Soviética, juntou-se aos Estados Unidos na segunda guerra do Golfo contra Saddam Hussein e aceitou participar numa conferência de paz com Israel em Madrid.

Em troca recebeu 2000 milhões de dólares da Arábia Saudita e o controlo do Líbano onde, em 1990, pôs fim a 15 anos de uma guerra civil que a Síria ajudou a alimentar. “Era um homem de princípios”, assegurou Patrick Seale, o biógrafo.

Assad conformou-se em não alcançar a paridade militar com a “entidade sionista” e desistiu de competir pela ainda mais inatingível hegemonia económica. Não se sentia, todavia, um homem derrotado. “Um dos seus maiores legados foi nunca ter aceitado o domínio político de Israel no Médio Oriente”, realça Seale.

“A morte levou da Síria um líder”, disse um locutor da televisão nacional. O papel tremia-lhe na mão. A voz embargou-se de emoção. As lágrimas chegaram aos olhos. “A tristeza está nos corações de cada homem, mulher e criança, porque a sua herança de actos e ideias é um planeta que há-de brilhar não só nesta geração como nas próximas”.

Hassan II [1929-1999] morreu em Marrocos. Hussein bin Talal [1935-199] morreu na Jordânia. Hafez el-Assad morreu na Síria. Uma era está a chegar ao fim no Médio Oriente, e a “geração Internet” chega ao poder: Mohammed VI em Rabat, Abdullah II em Amã e Bashar em Damasco.

Hafez al-Assad com Leonid Brejnev, secretário-geral do Partido Comunista Soviético – a URSS sempre foi o maior aliado da Síria
© Al–Ahram Weekly

Este artigo, agora revisto e actualizado, foi publicado originalmente no jornal PÚBLICO em 11 de Junho de 2000 | This article, now revised and updated, was originally published in the Portuguese newspaper PÚBLICO on June 11, 2000

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