Os protestos das iranianas que, desde Setembro, enchem as ruas exigindo o direito de decidir a vida não começaram no dia da morte de Mahsa Amini. Há pelo menos 150 anos que elas se insurgem contra os poderes políticos e religiosos que lhes roubam a liberdade. (Ler mais | Read more…)

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Foi o Xiismo Duodecimano, imposto pelos Safávidas (1501-1736) como religião do Estado a um país então maioritariamente sunita, que “mudou inextricavelmente a história das mulheres iranianas”, afirma Mahnaz Afkhami, a primeira (e única) ministra dos Assuntos da Mulher do Irão, de 1975 até ser forçada ao exílio pela revolução islâmica de 1979.
Para os ulama (clero), acrescenta Afkhami, em In the Eye of the Storm: Women in Post-revolutionary Iran, “foi Deus, na sua infinita sabedoria e justiça, que definiu a subordinação da mulher”. A realidade é que isso era “apenas a palavra” de chefes religiosos “com poder político e moral”.
O culminar desta transformação deu-se, no século XVII, quando o teólogo Muhammad Baqir Majlisi, invocando em vão o profeta Maomé, “elevou a obediência e a subserviência da esposa ao marido como principal dever religioso” reconhece a historiadora Guity Nashat, em Women and Revolution in Iran. O casamento tornou-se “o rito de passagem, em que a mulher deixava de ser uma ‘não pessoa’ para se tornar uma pessoa”.
Manda Zand Ervin, em The Ladies’ Secret Society: History of the Courageous Women of Iran, é implacável no julgamento de Majlisi: Ele “declarou guerra às mulheres”, deliberando que “tinham de ser supervisionadas, como os portadores de doenças mentais, os criminosos ou as crianças”; classificou-as como “propriedade dos homens”, responsáveis pela “honra” destes, e “simples objetos sexuais”; assegurou-se que “não seriam vistas nem ouvidas”.

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Depois dos Safávidas, vieram os Qajar (1789-1925), um período em que muitas mulheres, em especial nas classes média e alta, “com uma admiração acrítica pela civilização europeia” e mais acesso à educação, ganharam “maior visibilidade e intervenção na sociedade”, segundo Nashat. Mas foi também esta tribo túrquica-tártara, anota Hamideh Sedghi, em Women on Politics in Iran: Veiling, Unveiling, and Reveiling, que impôs às mulheres o chador (longo manto da cabeça aos pés), o rubandeh (véu para o rosto) e as chaqchur (calças muito largas).
“Três peças que representavam identidade de zai’feh (sexo fraco) e estatuto de moti’eh (obediente à vontade do homem)”. Isoladas do mundo em espaços sem janelas, nos seus andaruni (pátio interior) e birun (pátio exterior), ligados por um só corredor apara evitar o olhar de estranhos, “o nome comum para esposa era manzel, que se traduz por ‘casa’”.
Guity Nashat repara que a exigência de as mulheres se taparem era vulgar nas áreas urbanas, mas não tanto entre as tribos nómadas ou nas zonas rurais, onde “cultivavam os campos ao lado dos homens”. Foi o que ali testemunhou Lady Mary Sheil (*), casada com um oficial e diplomata britânico na corte do xá: “Os interesses [das mulheres] identificam-se com os dos maridos; o divórcio é raro; e o número de esposas limita-se a uma.”
Não era isto o que acontecia, por exemplo, no harém de Nasir al-Din, que, especifica Nashat, tinha “quatro esposas permanentes e 91 temporárias, servidas por 1200 criadas, incluindo 300 escravas, vivendo no andaruni sob o olhar atento de 90 eunucos”, descritos por Montesquieu, em Cartas Persas, como “guardas fiéis, agindo como flagelo do vício e pilar da fidelidade”.

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Em Crowning Anguish: Memoirs of a Persian Princess: From the Harem to Modernity, vemos Taj al-Saltaneh (1884-1936), uma das filhas do xá Nasir al-Din, revoltada contra a clausura e o machismo que afetavam a sua independência e a de uma nação vendida pelo pai a estrangeiros.
“A vida das mulheres persas consiste em duas coisas: branco e preto. Quando saem para passear, são imagens assustadoras de luto negro. Quando morrem, são envoltas em branco. Sou uma destas mulheres malditas. Prefiro muito mais a brancura do sudário do que a figura hedionda do luto.”
Crítica da “existência desesperada das mulheres separadas da humanidade e equiparadas a animais selvagens e bestas”, Taj al-Saltaneh não foi a primeira a rebelar-se abertamente contra as convenções do seu tempo e a pagar um preço elevado: morreu na miséria. Antes dela, enfatiza Guity Nashat, já Qurratu’l-‘Ayn Tahereh (1814-1852) se afirmara como “a mulher mais extraordinária do século XIX no Irão”.
Nascida Fatimah Baraghani em Qazvin, no nordeste da Pérsia, filha de um mujtahid (intérprete das escrituras) que encorajou a sua educação desde criança, Tahereh (“A Pura”) viria a tornar-se uma distinta teóloga e poeta. Casou-se com um primo aos 14 anos e teve três filhos, mas foi forçada a abandoná-los quando se afirmou discípula fervorosa do movimento Bábí, atraída pela sua defesa dos direitos das mulheres.
Ela opunha-se à poligamia e ao véu. Foi a primeira mulher a removê-lo em público perante uma horrorizada plateia, na Conferência de Badasht, que marcaria a ruptura da nova religião monoteísta, surgida em 1844, com a lei islâmica.

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Ao participar em debates religiosos, desafiando os maiores estudiosos do Islão, Tahereh “penetrou num domínio exclusivamente masculino”, realça Farzaneh Milani, em Veils and Words: The Emerging Voices of Iranian Women Writers. “Ela ofereceu a si mesma um papel público e um lugar público: uma transgressão tripla – verbal, espacial e física.”
A lealdade ao Babismo – de onde emergiu a Fé Bahá’í (hoje a maior e mais perseguida minoria religiosa do Irão) – condená-la-ia à morte. Foi presa e executada, depois de três bábís terem tentado assassinar Nasir al-Din, em 1852.
Recusando ser “prisioneira de estereótipos, imagens e ideais impostos pela tradição”, Tahereh quis “subverter as narrativas da sua cultura e escrever a própria história”, modificando a sua vida e a de outras mulheres, acrescentou Milani. Ninguém a podia ignorar. Uns santificaram-na; outros demonizaram-na.
Em Jewels of Allah: the Untold Story of Women in Iran, Nina Ansary qualifica Tahereh de “primeira mártir sufragista do Irão”, citando as suas últimas palavras, antes de a estrangularem com um lenço de seda: “Matem-me, se quiserem; mas não conseguirão travar a emancipação das mulheres.”

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De certa maneira, a “herege” Tahereh abriu caminho à “libertina”Taj al-Saltaneh (assim eram chamadas pelos detractores) e a outras mulheres que haveriam de desempenhar papéis notáveis em várias revoltas contra uma dinastia despótica.
Em 1890-1891, ficou na história o “Protesto do Tabaco”. Furiosos por Nasir al-Din ter concedido o monopólio sobre a produção, venda e exportação de todo o tabaco da nação a uma empresa inglesa, os iranianos iniciaram um gigantesco boicote, obrigando o xá a ceder.
No harém, 85 esposas do rei destruíram à sua frente todos os hookhas ou cachimbos de água, e a favorita e mais influente, Anis al-Dowleh, encorajou ativamente as greves dos que vendiam e fumavam tabaco.
Dos envolvidos neste movimento popular, a mais aguerrida seria a ativista laboral Zainab Pasha, que liderou “um grupo de 3000 mulheres armadas” para impedir a abertura do bazar de Tabriz. Já antes se havia destacado em motins contra a subida do preço do pão.
Sem nunca esconder a face com o véu negro, amarrando o chador à cintura e nas mãos um inseparável bastão de pregos e metal, Zainab humilhava os homens que se acobardavam. “Se não ousarem combater a opressão, se tiverem medo de lutar com ladrões que vos roubam a riqueza, a honra e a pátria, então fiquem em casa; lutaremos nós contra os malfeitores”, cita-a Janet Afary, em The Iranian Constitutional Revolution: Grassroots Democracy, Social Democracy, and the Origins of Feminism.
Os esforços colectivos contra os Qajar, subservientes a interesses britânicos e russos a quem venderam recursos do país, culminariam na Revolução Constitucional de 1905-1911, na qual as mulheres, salienta Afary, “desempenharam um papel único para transformar uma revolução essencialmente política [instigada por ulema, bazaaris e intelectuais] no início de uma revolução social”.

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Estas mulheres “exibiram um poder que mudou o curso da história, para elas e para os homens”, acentuou Hamideh Sedghi. Eram “nacionalistas e anti-colonialistas”. Queriam um Irão “soberano e livre da hegemonia estrangeira; exigiam uma Constituição, educação e emancipação.”
Para alcançar estes objetivos, “usaram os véus como protecção e esconderijo de armas e mensagens”, revela Guity Nashat. Formaram também sociedades secretas (anjomans e dowrehs) para apoiar os constitucionalistas. O seu “ímpeto revolucionário” contribuiu para que, em 1906, o xá Mozafar al-Din assinasse o decreto que criou a primeira Assembleia Nacional Consultiva (Majlis), e ratificasse uma Constituição.
Não obstante uma luta abnegada, as mulheres não conseguiram emancipar-se: a Constituição negou-lhes todos os direitos políticos. O clero xiita foi o maior opositor, comparando-as a “forasteiros, catraios, gente maldosa, assassinos, ladrões e criminosos”. Elas não cruzaram os braços.
Em 1911, com a Rússia a ameaçar invadir o Irão aproveitando-se de uma crise constitucional, “pelo menos 300” mulheres avançaram sobre a Assembleia para impedir a capitulação dos deputados.

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“Vestiam-se com mantos negros e véus brancos caíam-lhes sobre o rosto”, descreve, em The Strangling of Persia: a Personal Narrative, Morgan Shuster, um americano nomeado pelo parlamento tesoureiro-geral da Pérsia. “Muitas tinham pistolas debaixo das saias ou nas dobras das mangas.”
“Dirigiram-se ao Majlis e ali se reuniram, exigindo que o presidente as deixasse entrar. (…) Estas mães, esposas e filhas persas exibiram ameaçadoramente os seus revólveres e confessaram a decisão de matar maridos e filhos, e deixar para trás os próprios cadáveres, se os deputados vacilassem no dever de defender a liberdade e a dignidade do povo e da nação persas.”
Naquele momento, sublinhou Shuster, as iranianas “tornaram-se as mulheres mais progressistas, se não as mais radicais do mundo; que esta constatação incomode ideias que duram há seculos não faz diferença – é um facto.”
Shuster era o alvo do ultimato da Rússia, que ocupara o Azerbaijão, a pretexto de “manter a lei e a ordem”, e exigia a sua demissão por ter enviado cobradores de impostos para aquela província do Noroeste. Os deputados renderam-se e ninguém agradeceu às mulheres os seus sacrifícios. Pelo contrário, renegaram-nas como “imorais” e “apóstatas”.
A longo prazo, porém, desenvolveu-se a consciência de que “a única maneira de travar o declínio do país era educar as mulheres”, observa Guity Nashat. “Considerá-las inferiores e mantê-las ignorantes era um desperdício”. As autoridades religiosas reagiram mal à abertura das escolas para raparigas, incitando à sua destruição e a ataques contra alunas e professoras. As mulheres persistiram.

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Depois da I Guerra Mundial, com o país à beira da desintegração, o general britânico Edmond Ironside achou que, para se salvar “do caos e dos bolcheviques”, a Pérsia “precisava de uma ditadura militar”, como refere Homa Katouzian, em The Persians: Ancient, Mediaeval and Modern Iran.
O escolhido para tal missão foi o mirpanj (coronel) Reza Khan que, em 1925, com a sua Brigada de Cossacos (uma criação russa), derrubou o último xá Qajar e fundou uma nova dinastia: Pahlavi.
Assim que consolidou o poder, o novo monarca mostrou-se determinado a “ocidentalizar” a Pérsia. Marginalizou e depauperou o clero, abriu uma universidade e o mercado de trabalho às mulheres, principalmente nas cidades. A medida mais controversa foi a abolição do véu, em 1936. A polícia tinha ordens para rasgar ou confiscar o chador e o hijab em plena rua. Muitas mulheres, sentindo-se “nuas e pecadoras”, fecharam-se em casa; alguns homens suicidaram-se, diz Katouzian.
A repressão que acompanhou a proibição do véu “prejudicou a causa das mulheres”, concordam Guity Neshat e Hamideh Sedghi, admitindo que o objetivo do primeiro xá Pahlavi era apenas “transferir o poder patriarcal da alçada do clero para a do Estado”.
A própria filha, Ashraf Pahlavi, assume isso, na autobiografia Faces in a Mirror: “Nunca senti que ele abandonaria o rigoroso controlo que exercia sobre nós”. Perante o seu pedido para estudar no estrangeiro, como o irmão, o pai resmungou: “Que disparate!”

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Em 1941, quando o rei que deu à Pérsia o nome de Irão foi forçado a abdicar a favor do filho, Mohammad Reza Pahlavi, os ulema tudo fizeram para recuperar privilégios e preponderância. Mas o movimento de mulheres que emergiu durante a Revolução Constitucional não permitiu um regresso ao passado.
O véu passou a ser uma opção, não uma obrigação. Surgiram muitas organizações femininas, a mais importante ligada ao Tudeh, o Partido Comunista, atraindo jovens para uma luta velha. Mohammad Reza permitiu esta liberdade até Mohammad Mossadegh, o primeiro-ministro que nacionalizara o petróleo, se tornar o líder mais popular. A polícia secreta SAVAK encheu as prisões de opositores.
Em 1953, depois de a CIA derrubar Mossadegh, o Shahanshah (rei dos reis) tentou redimir-se lançando uma “Revolução Branca”, com reformas e leis audaciosas. Dez anos depois, pela primeira vez, as iranianas ganhavam o direito de voto e a ser eleitas.
Não que as achasse meritórias, mas porque um obscuro ayatollah – Ruhollah Khomeini – ameaçava o Trono do Pavão e ele precisava de aliados. “Sem querer parecer rude, as mulheres só são iguais à luz da lei, não por serem capazes”, declarou o imperador à jornalista Oriana Fallaci, em 1971 (**). “Elas nunca produziram nada de grandioso.”

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Em Fevereiro de 1979, Khomeini regressou do exílio em Paris para proclamar, em Teerão, uma República Islâmica. O fim de 2500 anos de monarquia foi celebrado por uma esmagadora maioria de mulheres, que se juntou às manifestações contra o último xá. O desencanto foi imediato.
De 8 a 14 de Março, milhares saíram à rua reclamando a liberdade prometida, não “recuar à condição de cães”. (***). “Não esperavam que as conquistas das últimas cinco décadas fossem suspensas ou anuladas”, salienta Haleh Esfandiari, em Reconstructed Lives: Women & Iran’s Islamic Revolution.
“Não imaginavam ter novamente de pedir permissão aos homens para trabalhar, que um novo código penal lhes impusesse castigos [como apedrejamentos e chicotadas] ou que perdessem o direito de escolher o que vestir.”
Muitas políticas opressivas da teocracia continuam em vigor 43 anos depois, mas as mulheres, incluindo as conservadoras e religiosas, não abdicaram dos direitos adquiridos. “Embora oprimidas de muitas maneiras”, comenta Esfandiari, “recusaram abandonar o espaço público e são parte de uma sociedade civil que se ergue e revolta contra o Estado”, criando mártires, como Neda Agha-Soltan, e heroínas, como Nasrin Sotoudeh.
Os imparáveis protestos desde a morte, em 16 de Setembro, de uma jovem curda, Mahsa (Jina) Amini, sob custódia da detestada “polícia da moralidade” por ter mostrado uns fios de cabelo, já não são apenas mais uma rebelião contra o hijab, obrigatório desde 1983. Violentamente reprimidos, tornaram-se na maior ameaça existencial à ditadura dos ayatollahs e dos Pasdaran (Guardas da Revolução), porque uniram, pela primeira vez, um país que nunca encontrou o equilíbrio entre a alma persa e a alma islâmica.
(*) Glimpses of Life and Manners in Persia
(**) Interviews with History and Conversations with Power
(***) “Iran women march against restraints on dress and rights”, The New York Times, 11 de Março de 1979

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Este artigo foi publicado originalmente na edição de Novembro de 2022 da revista ALÉM-MAR | This article was originally published in the November 2022 edition of the Portuguese news magazine ALÉM-MAR.