O naufrágio do Sri Lanka

Como é que a “resplandecente ilha” *, suposta “democracia multiétnica e multirreligiosa”, se afundou na mais grave crise da sua história? A culpa é atribuída aos Rajapaksa, a família que transformou o país numa caquistocracia – o governo dos piores cidadãos. Para a sua surpreendente queda contribuiu um movimento popular único – Aragalaya. (Ler mais | Read more…)

A estátua de D.A. Rajapaksa, o patriarca da dinastia que deixou o Sri Lanka na miséria, é coberta por um funcionário depois destruída por manifestantes que forçaram a queda da família que governava o país
© Atul Loke | The New York Times

Há pelo menos 25 anos que Ruki Fernando defende a dignidade humana e a justiça social no Sri Lanka. Assume-se protector de indivíduos, famílias e comunidades vítimas de violações dos direitos humanos. A solidariedade deste católico da maioria cingalesa, predominantemente budista, para com as minorias tâmil e muçulmana, contra um “racismo sistémico”, levou a que muitos, incluindo familiares e amigos, o acusassem de ser “traidor” e “apoiante do terrorismo”.

Em 2007, na fase final e mais cruel de uma guerra civil de quase três décadas, que causou, segundo a ONU, uns 100 mil mortos e 100 mil desaparecidos, Ruki Fernando foi documentando todo o tipo de abusos.

Vigiado, alvo de ameaças, preso, sujeito a interrogatórios e desacreditado nos media, exilou-se durante uns meses e só regressou quando se sentiu seguro. Com este percurso de vida, ninguém estranhou quando o viram na linha da frente dos protestos populares que conduziram à queda dos omnipotentes Rajapaksa.

“Não gosto que me considerem um dos protagonistas do Aragalaya”, o movimento cujo nome se traduz por “Luta”, esclarece Ruki Fernando, numa entrevista que me deu, por e-mail. “Digam antes que sou há muitos anos um activista empenhado em diferentes aragala [lutas], embora seja verdade que fui um dos que participaram” nas manifestações contra os governantes que deixaram o país na ruína.

Em Março intensificaram-se os protestos em Colombo, a capital do Sri Lanka, contra o agravamento da situação económica no país devido às políticas desastrosas da família Rajapaksa
©Atul Loke | The New York Times

“O Sri Lanka tem muitos recursos – naturais e humanos -, mas as más políticas de sucessivos governos provocaram o colapso”, lamenta Fernando, consultor no Centre for Society and Religion (CSR) em Colombo, a capital. Outra razão para este desfecho: “A ausência de indignação e a falta de sensibilidade dos responsáveis do Estado e de grande parte da sociedade em relação às injustiças, à opressão, à discriminação”.

Também entrevistado por mim, Neil DeVotta, um dos maiores especialistas no Sri Lanka, onde cresceu, hoje professor de Política e Assuntos Internacionais na Universidade de Wake Forest, na Carolina do Norte (EUA), é mais explícito quanto às razões da crise sem precedentes nos últimos 74 anos.

A ilha a que os Portugueses chamaram Ceilão “sempre viveu acima das suas possibilidades e isso ficou evidente com os vários défices orçamentais acumulados desde a independência em 1948”, comenta DeVotta. “Os 16 planos firmados com o Fundo Monetário Internacional – está agora a ser negociado o 17º – são a prova disso.”  

Vários edifícios foram destruídos pelos manifestantes em Hambantota, a terra-natal dos “ganaciosos” Rajapaksaa, que se puseram a construir uma série de infra-estruturas, para as quais não tinham dinheiro. Aqui, entre as suas obras “inúteis”, incluem-se um estádio de críquete “onde só se realizaram 26 jogos desde 2011”; um aeroporto “que recebe mais cobras e elefantes do que aviões”; um centro de conferências com capacidade para 1500 pessoas, mas que está sempre vazio; um museu para glorificar os pais de Mahinda e Gotabaya, erigido com fundos públicos
©Atul Loke | The New York Times

Neste contexto, o autor de Blowback: Linguistic, Nationalism, Institutional Decay, and Ethnic Conflict in Sri Lanka identifica “quatro factores, abrangentes e interligados”, que deixaram em agonia um país que poderia ter sido um oásis de estabilidade na Ásia do Sul, com uma classe média culta (o ensino é gratuito, tal como a saúde) e próspera.

O primeiro factor, que agravou o défice e a dívida foi uma cultura de dependência em relação a subsídios, da electricidade aos combustíveis. O segundo foi “a trajectória etnocêntrica”, que começou em meados dos anos 1950 com políticas contra as minorias, visando a supremacia da maioria budista.

“Este empoderamento fez-se incorporando mais e mais cingaleses em serviços do Estado, de tal modo que o país tem agora um excedente de 1,5 milhões de funcionários públicos, embora bastasse menos de metade.” Muitos dos “funcionários redundantes” estão nas forças armadas ou em empresas estatais que dão prejuízos.

Em Março – face a uma escassez generalizada de combustíveis, gás de cozinha, alimentos e medicamentos, com 3/5 da população desnutrida e muitas famílias a saltar refeições –, milhares de pessoas saíram às ruas gritando Gota Go Gama (“Gota vai para casa”; “gama” significa “aldeia” na língua cingalesa), exigindo a demissão do presidente e da sua entourage
© Thilina Kaluthotage | NurPhoto | Getty Images | Foreign Policy

O terceiro factor foi “a política racista” em relação à minoria tâmil, cujas forças separatistas foram dizimadas em 2009, mas também a islamofobia que, depois da guerra, permitiu aos irmãos Rajapaksa – Mahinda (que foi presidente e primeiro-ministro) e Gotabaya (que foi chefe de Estado e titular da pasta da Defesa) – “solidificar as credenciais de nacionalistas cingaleses budistas”, enquanto “encobriam as suas más práticas”.

O quarto factor foi “a ganância” desta família, ansiosa por criar “uma dinastia política”, que se pôs a construir uma série de infra-estruturas, para as quais não tinha dinheiro. Entre as obras “inúteis”, sobretudo em Hambantota, a terra-natal dos Rajapaksa, DeVotta inclui um estádio de críquete “onde só se realizaram 26 jogos desde 2011”; um aeroporto “que recebe mais cobras e elefantes do que aviões”; um centro de conferências com capacidade para 1500 pessoas, mas que está sempre vazio; um museu para glorificar os pais de Mahinda e Gotabaya, erigido com fundos públicos.

De todos os projectos, o mais controverso foi o porto de águas profundas de Hambantota. Custou 3000 milhões de dólares e acabou alugado à China (que o construiu) por 99 anos e por um valor inferior, porque os Rajapaksa não o podiam pagar. Pequim, numa disputa de influência com a Índia, é hoje o segundo maior credor do Sri Lanka, depois de ter encorajado a megalomania do regime.

As filas para comprar combustível, em Colombo, a capital, e noutras cidades eram tão longas que muitos motoristas esperavam horas para conseguir encher os depósitos; muitos que ganhavam a vida a conduzir tuk-tuk, já afectados pela quebra das receitas do turismo, desistiram dos seus negócios
© Chamila Karunarathne | EPA | The New York Times

Durante algum tempo, as receitas com o turismo (o Sri Lanka é descrito por visitantes como “um paraíso de campos verdejantes, praias cristalinas e templos coloridos”), as remessas dos emigrantes e as exportações de têxteis e de chá foram equilibrando as contas, até que cinco acontecimentos nos últimos três anos “desencadearam o caos”, acrescenta Neil DeVotta. “Dois foram auto-infligidos; os outros três foram exógenos”.

Em 2019, depois de chegar à presidência, aproveitando-se dos mortíferos ataques de Domingo de Páscoa contra igrejas e hotéis para exibir a reputação de “exterminador” ganha na guerra contra os Tâmiles, Gotabaya Rajapaksa adoptou, sem qualquer justificação, uma medida desastrosa: desceu os impostos, reduzindo o número de contribuintes de 1,55 milhões em 2020 para 412 mil em 2021. Ao baixar a receita fiscal, acelerou a inflação, para 60,8%.

Em Abril do ano passado, com os cofres do Estado vazios, e para poupar em subsídios, Gotabaya proibiu a importação de fertilizantes sintéticos e pesticidas, decretando da noite para o dia uma transição para a agricultura orgânica que prometera fazer em 10 anos. O resultado foi catastrófico: só a produção de cereais caiu 43%.

A seguir, vieram os acontecimentos “exógenos”: a pandemia de Covid-19, que reduziu drasticamente as receitas turísticas e as remessas dos emigrantes, e depois a guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços dos alimentos e energia a nível global. A situação tornou-se tão grave que dividiu o próprio Governo em “dois centros de poder”, segundo o jornal The New York Times.

Os irmãos Mahinda Rajapaksa (presidente), Gotabaya Rajapaksa (chefe do Governo) e Basil Rajapaksa (ministro das Finanças), em 2018: os principais membros da família que dominou o Sri Lanka durante a maior parte das últimas duas décadas
© Eranga Jayawardena | Associated Press

Em Março – com uma escassez generalizada de combustíveis, gás de cozinha, alimentos e medicamentos, com 3/5 da população desnutrida e muitas famílias a saltar refeições, com o encerramento de escolas e negócios –, milhares de pessoas saíram às ruas gritando Gota Go Gama (“Gota vai para casa”; “gama” significa “aldeia” na língua cingalesa), exigindo a demissão do presidente e da sua entourage.

Ruki Fernando diz não ter memória de protestos tão gigantescos, espontâneos e imprevisíveis. “Muitos dos participantes são antigos activistas, sindicalistas, líderes estudantis, artistas, clérigos, advogados e utilizadores das redes sociais, que foram capazes de mobilizar todos os que sentiam zangados, frustrados e desesperados.”

“Eu já havia sido testemunha de outras janatha aragala [lutas populares], algumas das quais vitoriosas”, como a da comunidade tâmil que, em 2018, retirou à Marinha o controlo que desde 1992 exercia sobre as ilhas Iranaitheevu, acrescenta Fernando. “São, geralmente, lutas locais, que não granjeiam a simpatia da maioria cingalesa e budista, e que a imprensa internacional tende a ignorar. Em todo o caso, sempre achei que líderes autoritários, corruptos e racistas acabarão por cair. Só não imaginava que, desta vez, tudo acontecesse tão rapidamente.”

Em Julho, depois de forçarem a demissão do presidente Gotabaya e incendiarem a residência do primeiro-ministro, centenas de manifestantes em Colombo entraram no seu palácio nunca antes aberto ao público: mergulharam na piscina, fizeram churrascos no jardim, dormiram a sesta na cama do fugitivo, exercitaram-se num ginásio e tiraram selfies na sala de conferências
© Chamila Karunarathne | EPA | The New York Times

Neil DeVotta concorda que os habitantes do Sri Lanka “sempre tiveram uma forte tradição de protesto”, mas também ele ficou surpreendido com “a amplitude” das manifestações do Aragalaya. Espantou-o, em particular, “a mansidão” com que, em 9 de Julho, Gotabaya fugiu num avião militar para as Maldivas, enquanto uma multidão invadia o palácio presidencial, depois de ter incendiado as residências do primeiro-ministro Mahinda (que se demitira em Maio) e de vários deputados.

Numa mansão nunca antes aberta ao público, manifestantes mergulharam na piscina, fizeram churrascos no jardim, dormiram a sesta na cama de Gotabaya, exercitaram-se num ginásio e tiraram selfies na sala de conferências.

As tendas montadas no parque de Galle Face Green, em Colombo, descreve Ruki Fernando, “pareciam uma cidade, com uma biblioteca, uma universidade do povo, um cinema, uma cozinha comunitária, um centro de energia solar e instalações de primeiros socorros”.

O Aragalaya não tinha chefes, mas à medida que o tempo passava, “foi emergindo uma liderança, ainda que sem estrutura formal”, indica Fernando. Havia diversidade e divergências, o que é natural, com as pessoas a discutir se haveriam de negociar com os partidos, se deveriam continuar ou desistir.”

As tendas montadas no parque de Galle Face Green, em Colombo, descreve Ruki Fernando, “pareciam uma cidade, com uma biblioteca, uma universidade do povo, um cinema, uma cozinha comunitária, um centro de energia solar e instalações de primeiros socorros”
© Atul Loke | The New York Times

Para Ruki Fernando, ter-se juntado aos protestos desde o primeiro dia, especialmente estar presente na grande concentração de 9 de Abril em Galle Face Green, “foi uma experiência extraordinária”. Durante semanas e meses, ali passou os dias, até de madrugada, na companhia de imensa gente, incluindo pais que levavam os filhos, para assistir a debates políticos e actividades culturais.

Quando muitos começaram a desmobilizar, porque estavam cansados de palmilhar quilómetros para chegar à capital ou não tinham combustível para os seus veículos, ele sentiu “solidão e tristeza”.

“No Sri Lanka, nunca houve uma verdadeira luta pela democracia e pela justiça à escala do Aragalaya”, realça Ruki Fernando. E, embora o que se viu nos últimos meses, fosse um grande encontro das várias etnias e religiões (Cingaleses e Tâmiles, budistas e hindus, cristãos e muçulmanos), a realidade é que “o foco do movimento era a economia e o estado de Direito”.

Poucos quiseram discutir as feridas da guerra civil, como os milhares de desaparecidos. “Uma das coisas que mais me impressionou”, conta Fernando, “foi quando uma mãe velhinha tâmil me veio dizer: ‘Eles [cingaleses] querem luz, combustível, gás e fertilizante; nós queremos saber onde estão os nossos filhos e familiares que nos retiraram à força’.”

A crise e os protestos uniram, por ora, cingaleses e tâmiles, budistas, cristãos, muçulmanos, mas o activista Ruki Fernando observou que poucos quiseram discutir as feridas da guerra civil de 1983-2009. “Uma das coisas que mais me impressionou”, disse Fernando, “foi quando uma mãe velhinha tâmil me veio dizer: ‘Eles [cingaleses] querem luz, combustível, gás e fertilizante; nós queremos saber onde estão os nossos filhos e familiares que nos retiraram à força’” (na foto, um protesto de familiares de tâmiles desaparecidos, realizado em 2018 em Mullaitivu, no nordeste do país)
© Adam Dean | The New York Times

Neil DeVotta converge na apreciação de Ruki Fernando. “O movimento Aragalaya não discute a militarização que oprime os Tâmiles, em especial no Norte, nem as exigências tâmiles de responsabilização pelos crimes cometidos durante a guerra civil. Embora os manifestantes tenham apelado a uma mudança do sistema, pouco ou nada têm a dizer sobre as queixas das minorias, excepto alguns slogans contra o racismo, etc.”

“O Aragalaya tem raízes na privação económica, não num desejo de igualdade étnico-religiosa.  A unidade étnico-religiosa deve-se à escassez que a todos afecta e ao ódio aos Rajapaksas, um sentimento comum às minorias.”

“Se hoje a comunidade maioritária também partilha este sentimento, não é por estar disposta a abandonar a supremacia; pelo contrário, é porque o nacionalismo não substitui estômagos vazios.”

Mais optimista, o padre Jude Chrysantha Fernando, recém-nomeado pela Conferência Episcopal do Sri Lanka director para a Comunicação Social Nacional da Igreja Católica, crê que no Aragalaya “toda a gente está genuinamente unida, seja qual for a identidade étnica ou religiosa”.

Uma das razões para a ruína do Sri Lanka, segundo o académico Neil DeVotta, foi “a trajectória etnocêntrica”, que começou em meados dos anos 1950 com políticas contra as minorias, visando a supremacia da maioria budista. (Na foto, ao centro, Galagoda Aththe Gnanasara Thero, líder da organização extremista Bodu Bala Sena (BBS)
© Dinuka Liyanawatte | Reuters

Essa foi uma das razões, diz-nos também em entrevista, por que tantos aceitaram e apoiaram o movimento. “Os líderes políticos tentam dividir-nos, mas no Aragalaya até alguns monges budistas, que sempre foram privilegiados, rejeitam agora esses líderes.”

“Na linha da frente, estiveram sacerdotes e freiras. O nosso cardeal Malcolm Ranjith tem assumido um papel activo. A Igreja, que é muito respeitada, principalmente porque as suas escolas formam as melhores pessoas, colocou-se ao lado dos jovens que protestam, e protege-os.”

O padre Fernando critica o actual presidente, Wickremesinghe, por reprimir quem insiste em reclamar nas ruas os seus direitos, e acredita que os cidadãos não se deixarão silenciar. “Dentro de dois anos, haverá eleições e ninguém irá cometer os erros do passado.”

“As pessoas votarão numa nova liderança que seja boa para o país. O Aragalaya abriu um precedente: os políticos corruptos não serão tolerados e serão derrubados imediatamente.”

Em Abril de 2021, com os cofres do Estado vazios, e para poupar em subsídios, Gotabaya Rajapaksa proibiu a importação de fertilizantes sintéticos e pesticidas, decretando da noite para o dia uma transição para a agricultura orgânica que prometera fazer em 10 anos. O resultado foi catastrófico: só a produção de cereais caiu 43%
© Shefali Rafiq | The New Humanitarian

O activista Fernando diz que “as detenções em massa, os raptos e os interrogatórios”, alegadamente ordenados por Wickremesinghe – um protegido de Gotabaya (que tencionava regressar ao país em 24 de Agosto, depois de estadas em Singapura e na Tailândia) – “têm reforçado e enfraquecido” o movimento de protesto, mas “apenas temporariamente”, porque, “a longo prazo, o poder popular sairá fortalecido”.

“O actual governo, o presidente e o Parlamento [dominado pelo partido dos Rajapaksa], não reflectem um mandato do povo”, critica Ruki Fernando. “O Aragalaya não é perfeito, não resolve todos os nossos problemas e também não nos oferece um país perfeito, mas já conseguiu muito: livrou-nos de líderes autoritários, corruptos e racistas.”

O académico Neil DeVotta reconhece que a realização de eleições “poderia acalmar” os manifestantes, porque se livrariam da maioria dos deputados, mas alerta que dificilmente isso resolveria de imediato os problemas económicos.

“Primeiro, é preciso garantir uma certa estabilidade; talvez formar um governo com todos os partidos políticos, diminuir os poderes do chefe de Estado e acabar com o sistema de presidência executiva [instaurado por Gotabaya]. No pior cenário, a crise irá durar 6 a 8 anos. Serão anos muito penosos.”

Em Julho, manifestantes queimaram a efígie do agora presidente, Ranil Wickremesinghe, um político veterano que havia sido escolhido por Gotabaya e que conta com o apoio do partido dos Rajapaksa no Parlamento. A luta continua, prometaram
© Atul Loke | The New York Times

Chegados aqui, como explicar a longevidade dos Rajapaksa, uma família que, escreveu DeVotta, transformou o Sri Lanka “de uma meritocracia numa etnocracia que, por sua vez, degenerou numa caquistocracia – o governo dos piores cidadãos”.

Responde o professor: “O que sempre importou nunca foi a pessoa ser honesta e capaz, mas o seu compromisso para com a etnocracia. Isso fez com muita gente boa se afastasse, fosse cooptada [pelo regime] ou permanecesse em silêncio. E isso permitiu aos Rajapaksa capturar o Estado.”

Alguns analistas regionais dizem que a maioria na ilha padece do “complexo de minoria”. DeVotta compreende este sentimento, porque “o grupo étnico cingalês e a língua cingalesa só existem no Sri Lanka, que criou uma identidade própria depois de enfrentar várias invasões ao longo da sua história”.

O facto de o Budismo “estar a definhar na Ásia do Sul, depois de ter florescido durante séculos” é outro factor de preocupação. O problema maior, todavia, é que “os nacionalistas do Budismo Theravada insistem em promover o complexo de minoria e manipular tal sentimento para justificar a etnocracia.”

Ruki Fernando parece ter fé em dias luminosos: “O Aragalaya reacendeu o espírito de desafio e resistência a uma escala jamais vista no Sri Lanka, oferecendo-nos esperança num futuro melhor. O espírito do Aragalaya, com os seus êxitos e fracassos, irá encorajar muito mais aragala [lutas].”

 * “Resplandecente ilha” é o significado do adjetivo “Sri” e do nome “Lanka”.

Cingaleses, Tâmiles, Mouros, Burghers, Vedas

O Sri Lanka é um mosaico de etnias e religiões, línguas e culturas, mas é dura a coexistência. Sobretudo entre “leões” e “tigres”.

CINGALESES

* Maior grupo étnico da República Democrática Socialista do Sri Lanka – 74,9% dos quase 22 milhões de habitantes -, os Cingaleses dizem-se descendentes de um príncipe, Vijaya, oriundo do Norte da Índia e com um antepassado leonino. Sinhaya é a palavra cingalesa para “leão”, e os Cingaleses descrevem-se como “Povo do Leão” ou “Raça de Leão” – animal que domina a bandeira nacional. A religião é o Budismo (da corrente Theravada, ou “Caminho dos Anciãos”), que é professado por 70,2% da população e por 93% de cingaleses. A língua materna é o Cingalês, que pertence ao grupo linguístico indo-europeu. Seguem o cânone sagrado páli e não o sânscrito, usado pelas outras duas escolas budistas, Mahayana e Vajrayana. Apesar de partilharem a mesma língua e religião, há diferenças entre os cingaleses de Kandy, na região central montanhosa, e os up-country, nas planícies e zona costeira. Kandy, que foi um reino independente até 1818, preservou o prestígio da antiga nobreza e os valores culturais e sociais conservadores, apesar de mais de 400 anos de colonialismo. Já um grande número dos up-country, sobretudo da casta Karava, converteram-se ao Cristianismo e foram subindo na escada social, desenvolvendo uma elite cosmopolita, fluente em línguas europeias e conhecedora da administração civil. A partir da independência em 1948, consolidou-se o “sentimento” de que a ilha “pertence” aos cingaleses budistas. Em 1956, o Cingalês foi declarado língua oficial. Em 1972, a Constituição atribuiu ao Budismo um lugar central, criando efectivamente uma etnocracia, que foi pondo em prática e legitimando acções opressivas das minorias. Embora o Budismo se apresente como uma religião de paz, há na escola Theravada grupos extremistas, alguns liderados por monges, que justificam a violência “para proteger o Estado e a supremacia da religião” contra o que consideram ameaças externas, em particular o Islão. Muitos temem que o Sri Lanka se torne “uma colónia muçulmana”. São o que alguns analistas definem como “uma maioria com complexo de minoria”.

TÂMILES

* Pelo menos 15,4% dos habitantes da ilha são Tâmiles e falam tâmil (língua dravídica do Sul da Índia e Norte e Ocidente de Ceilão). Dividem-se se em dois grupos: os “Tâmiles do Sri Lanka” (também conhecidos como Tâmiles de Ceilão ou de Jaffna), são uma “minoria nativa”, descendente de grupos que, desde o séc. V a.C., migraram do Sul da Índia e que agora totalizam 2,3 milhões ou 11,2%; os “Tâmiles Indianos”, 4,2%, são imigrantes recentes ou descendentes de imigrantes, contratados pelos britânicos, os últimos colonos europeus, para trabalhar nas plantações de chá. A partir de 1948, quase um milhão destes marginalizados tâmiles perderam todos os direitos ou foram repatriados para o vizinho estado indiano de Tamil Nadu. Com a ascensão do nacionalismo cingalês e a adopção da língua cingalesa como idioma oficial aumentou a discriminação e o isolamento de todos os tâmiles. A Constituição de 1972 pôs em marcha planos de colonização cingalesa no Norte e no Leste, e radicalizou os mais jovens nestas regiões. Em 1975, com a maioria dos tâmiles receptivos à ideia de uma pátria separada e a maioria dos cingaleses hostis a quaisquer concessões, emergiram os Tigres de Libertação do Eelam Tâmil (LTTE), com uma ala política e militar. Gradualmente, o LTTE foi eliminando outros grupos dispostos a compromissos, até se tornar uma força poderosa e temível. No seu auge, chegou a ter 23 mil combatentes, alguns deles crianças, retiradas de casa e da escola, além de 4000-5000 mulheres, muitas das quais integravam a unidade Black Tigers, responsável por atentados suicidas. Seguindo o lema “a vida é uma arma”, os bombistas andavam sempre com uma cápsula de cianeto à volta do pescoço, que usariam antes de ser capturados. O LTTE, de Vellupilai Prabhakaran, era o único grupo de guerrilha do mundo com uma armada, Sea Tigers, com vários navios e uma unidade de mergulhadores para operações submarinas. Tinha ainda uma divisão aérea, com dois helicópteros e dois aviões ligeiros, e outra antiaérea, com mísseis terra-ar. O grupo identificava-se como “secular, socialista e feminista”, mas muitos não hesitaram em classificá-lo de “fascista”, pela sua doutrina de “um líder, uma nação, um povo”. A guerra civil durou de 1983 até 2009 e causou, segundo a ONU, cerca de 100 mil mortos e 100 mil desaparecidos. Os crimes atribuídos às tropas governamentais foram tão ou mais horrendos que os imputados ao LTTE: atacar e cercar aldeias e privá-las de água, alimentos e medicamentos, execuções extrajudiciais com corpos a arder nas ruas durante dias; múltiplos actos de tortura e violações… A guerra acabou com a derrota do LTTE e a morte de Prabhakaran. A minoria tâmil continua a pagar um preço elevado. A justiça prometida pelos vencedores nunca chegou.

MOUROS

* A comunidade muçulmana (composta por Mouros do Sri Lanka, Mouros Indianos e Malaios) representa 9,2% da população da ilha. A maioria dos fiéis segue o Islão sunita, mas há também discípulos do Sufismo. Em termos linguísticos, o tâmil é o idioma principal, mas, para enfatizarem as “raízes árabes” e se distinguirem dos Tâmiles, os “Mouros de Ceilão” – nome dado pelos Portugueses no séc. XVI, insistem em promover esta “identidade única”. Consideram seus antepassados os mercadores árabes que se instalaram na ilha entre os séc. VIII e XV, casando com mulheres cingalesas e tâmiles. Muitos muçulmanos chegaram antes dos Portugueses; outros (os Memon, os Bohra e os Khoja) vieram depois dos Britânicos, oriundos de várias partes da Índia. Quanto aos Malaios, têm origem no Sudeste Asiático. Muitos dos primeiros imigrantes eram soldados que a administração colonial holandesa colocou em Ceilão; outros eram condenados ou membros de famílias reais exilados, que não abandonaram a ilha. Continuam a falar a língua malaia (bahasa melayu), que absorveu vocábulos cingaleses e tâmiles. Durante a guerra civil de 1983-2009, alvo de massacres e limpeza étnica, os muçulmanos foram aliados do exército contra os guerrilheiros tâmiles, mas quando o LTTE foi derrotado, a maioria cingalesa e budista fez deles o “novo inimigo”.

BURGHERS

* O nome – Burghers – é uma invenção holandesa (deriva da palavra burger, que refere o cidadão de um berg, bairro ou cidade,), mas esta comunidade permanece, na sua maioria, de origem portuguesa. Mantém a religião e as tradições cristãs, e concentra-se em zonas urbanas, como Batticaloa, no Leste, e em Colombo, a capital, mas diminuiu em número e influência desde a independência em 1948, sobretudo devido à emigração. Inicialmente dois grupos separados em bases raciais, religiosas, linguísticas e até compleição física –, só em 1833, sob domínio britânico, é que os “Burghers Portugueses” (católicos) e os “Burghers Holandeses” (protestantes) foram classificados como um só grupo de “descendentes de portugueses, holandeses e todos os europeus nascidos no Sri Lanka”. Portugal encorajava os casamentos mistos. Os filhos destas uniões, desprezados pelos holandeses, eram conhecidos como Tupase pelos cingaleses e Tuppai pelos tâmiles. Sob domínio holandês, a língua portuguesa foi proibida, mas estava tão disseminada que ainda hoje se mantém viva, na forma de “crioulo do Sri Lanka”. Essa influência é visível em apelidos, como “Fonseka”, “Fernando”, “Perera” ou “Silva”; e em nomes comuns, como “iskolaya” (escola), “sumanaya” (semana), “kamisaya” (camisa), “lensuwa” (lenço), “mesaya” (mesa), tuwaya” (toalha), ou produtos como “saban” (sabão) ou “simenti” (cimento).  

VEDAS

* Os Vedas, literalmente, “o povo da floresta”, são os últimos descendentes dos antigos habitantes do Sri Lanka, uma sociedade de caçadores-colectores que, segundo estudos arqueológicos e antropológicos, remontará ao Neolítico. Já habitariam a ilha, em cavernas e abrigos de pedra, antes da chegada dos Cingaleses. Animistas, que veneram plantas, objetos inanimados, fenómenos naturais e o espírito dos antepassados, não conseguiram preservar a língua veda nem os costumes próprios, adoptando os dos colonizadores. Hoje, na sua maioria, estão confinados à aldeia de Dambana, perto de Mahiyangana, que foi o seu primeiro povoado. Mais uma casta do que um grupo étnico, os Vedas são, para a ONU, “uma tribo em extinção”, devido a projectos governamentais que afectaram os seus meios de subsistência e à guerra civil de 1983-2009.

Estes artigos foram publicados originalmente na edição de Setembro de 2022 da revista ALÉM-MAR | These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, September 2022 edition

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