Dos 22 milhões de habitantes do Sri Lanka, só 7% são cristãos. Na sua história entrelaçam-se um passado colonial de quase cinco séculos e as tensões étnico-religiosas do presente. Para entender a comunidade católica do antigo Ceilão, falei com Bernardo Brown, professor de Antropologia na International Christian University de Tóquio, estudioso do Catolicismo na Ásia. (Ler mais | Read more…)

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Em 1948, quando Ceilão deixou de ser uma colónia da Grã-Bretanha, os católicos da ilha – cingaleses e tâmiles – tinham “uma identidade distinta”, que lhes permitia, por exemplo, içar lado a lado as bandeiras do Vaticano e do novo Sri Lanka.
Tudo mudou em 1960, assim que o Governo assumiu o controlo das escolas da Igreja. Dois anos depois, em resposta a um alegado reforço da presença de budistas nas forças armadas, oficiais católicos e protestantes do exército organizaram um golpe para derrubar o Governo da primeira-ministra, Sirimavo Bandaranaike, e o ressentimento cresceu.
Em 1983, quando o grupo extremista Tigres de Libertação do Eelam Tâmil (LTTE) iniciou uma guerra civil (identitária e cultural, mas não religiosa) para reivindicar uma pátria separada no Norte e Leste, a comunidade católica dividiu-se: os cingaleses tomaram o partido dos militares e da maioria budista; os tâmiles juntaram-se aos rebeldes, predominantemente hindus.

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O fim de 25 anos de guerra não pacificou o Sri Lanka, onde o poder crescente da organização radical Bodu Bala Sena (Força do Poder Budista) tem sido uma ameaça constante às minorias. As divisões só começaram, vagamente, a esbater-se quando, perante uma crise económica, moral e existencial, uma vaga de protestos populares forçou a queda da corrupta família Rajapaksa.
Entre os milhares de manifestantes nas ruas, havia cingaleses e tâmiles, mouros e burghers; cristãos e budistas, hindus e muçulmanos, numa rara demonstração de unidade contra um regime etno-nacionalista.
Poderá estar aberto o caminho para a reconciliação? Numa entrevista por e-mail, o antropólogo Bernardo Brown, especialista no Sri Lanka e professor numa das mais prestigiadas universidades do Japão, explica-me que esta continua a ser uma meta difícil de atingir.

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Numa nação onde Tâmiles hindus e Cingaleses budistas são praticamente homogéneos, o Catolicismo tem sido definido como “a religião que une pessoas de diferentes etnias através de uma fé única”. É uma singularidade?
Esta singularidade é apenas um esforço para simplificar diferentes categorias. No Sri Lanka, trata-se de uma coerência artificial: por exemplo, a etnia (Sinhala /Cingalesa) corresponde à religião (Budismo) e corresponde à língua (Sinhala /Cingalês).
Estas três categorias têm sido apresentadas como se englobassem nitidamente toda a população. Uma “sobreposição” semelhante também acontece com os Tâmiles. Mas a realidade no Sri Lanka é muito mais complexa e muitos grupos religiosos são bastante mais “híbridos”. Quanto ao Catolicismo, é verdade que é a única religião que atravessa a fronteira étnica e linguística.
No entanto, tradicionalmente, tem sido uma relação difícil. É errado pensar que os católicos cingaleses e tâmiles estão unidos pela religião. É mais útil pensarmos que os católicos estão DIVIDIDOS pela língua e pela etnia.

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As fracturas ficaram à vista durante a guerra civil de 1983-2009, durante a qual pelo menos 100 mil pessoas perderam a vida, dezenas de milhares desapareceram e centenas de milhares foram deslocadas. Durante o conflito, o senhor (e outros) constataram que cingaleses católicos foram “apoiantes leais” do exército e tâmiles católicos alinharam com a guerrilha. Como avalia estas posições opostas?
A identidade étnica neste conflito era mais importante do que a identidade religiosa. Um tâmil católico tinha mais em comum com um tâmil hindu do que com um cingalês católico. E durante esta guerra muitas vezes os cingaleses católicos juntaram-se aos cingaleses budistas e às forças armadas em vez de defenderem os direitos dos tâmiles católicos, que eram perseguidos e mortos.
De igual modo, os tâmiles católicos, incluindo vários membros do clero, apoiaram abertamente atividades terroristas do LTTE. Estes problemas causaram um ressentimento profundo entre os católicos no Sri Lanka.

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Com o exército e o LTTE responsabilizados por crimes de guerra horríveis, como compreender a cumplicidade, o silêncio e a inabilidade da hierarquia da Igreja Católica [nenhum bispo recomendou ou aceitou tréguas no Natal, por exemplo]? Por que não serviu de mediador para acabar com a carnificina?
Era limitada a capacidade de a Igreja agir como intermediário, em parte porque todas as forças nacionalistas (nos dois campos) a acusavam frequentemente de ser uma potência colonial e estrangeira. Contudo, é importante clarificar que entre os clérigos no Sri Lanka (alguns deles estrangeiros) havia defensores activos dos direitos humanos.
Muitos padres foram mortos e outros desapareceram durante aqueles anos de violência. Por isso, embora como instituição a Igreja Católica pudesse ter feito mais com um papel de mediação, a verdade é que várias paróquias serviram frequentemente de santuário [às vítimas] e houve muitas iniciativas de paz lançadas por padre.
Um deles, por exemplo, o sacerdote jesuíta americano Harry Miller, em Batticaloa [onde criou uma comissão para recolher queixas de familiares desaparecidos. Em missão no Sri Lanka desde 1948, onde morreu, foi “testemunha, intermediário e protector de todos os que lhe pediam ajuda”.]

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Em 2014, o senhor reparou que, terminada a guerra, “sectores da Igreja” continuaram a apoiar os Rajapaksa e a receber “uma série de benefícios materiais”, confirmando divisões não apenas entre leigos, mas na própria hierarquia eclesiástica. Porquê esta “colaboração”?
O cardeal Malcolm Ranjith [arcebispo de Colombo e antigo núncio apostólico em Timor-Leste, hoje o maior país católico da Ásia (97%) depois das Filipinas (83%)] apoiou o Governo durante [a fase final da] guerra para eliminar o LTTE, entre 2006 e 2009.
Nesse período, milhares de civis foram mortos, muitos deles católicos, e a Igreja pouco fez para os proteger. (Recordo, porém, que padres tâmiles católicos e o bispo de Mannar [no Norte] denunciaram o que estava a acontecer e fizeram os possíveis para salvar vidas).
[Com os Rajapaksa], a Igreja beneficiou de múltiplas maneiras. Por exemplo, quando o Governo lhe deu o controlo de algumas escolas ou apoiou financeiramente os seus esforços de reconstrução. Muitos destes apoios foram para o clero e leigos cingaleses católicos, não tanto para os tâmiles, os que mais sofreram.

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Será que algo mudou desde o sangrento Domingo de Páscoa de 21 de Abril de 2019 [quando três igrejas foram destruídas em ataques suicidas coordenados, atribuídos a militantes islamistas, que causaram mais de 275 mortos e cerca de 500 feridos]?
O cardeal Ranjith continuou a apoiar a família Rajapaksa e quase fez campanha a favor deles, mesmo após os ataques na Páscoa de 2019. No entanto, algo aconteceu no ano seguinte, e ninguém sabe explicar ainda o quê. Ranjith deixou de ser um apoiante dos Rajapaksa para se tornar num dos maiores críticos durante os protestos que conduziram ao colapso do Governo.
Por que mudou ele tão drasticamente de opinião? Não encontrei ainda uma explicação convincente. Há quem argumente que se sentiu traído pela falta de vontade dos Rajapaksa em revelar a verdade sobre os atentados.
[Ranjith, de 74 anos, acusou o regime de “ocultar a verdade sobre os ataques e a identidade dos criminosos, para fins pessoais”; há informações de que Nova Deli alertara Colombo para uma ameaça terrorista, mas o aviso terá sido ignorado para que Gotabaya Rajapaksa, o ex-secretário da Defesa que derrotou o LTTE, se apresentasse de novo como “homem forte”, desta vez contra os muçulmanos, para poder ser – e foi – eleito presidente, em Novembro de 2019].
É possível. Mas creio que há outras razões que o transformaram de melhor amigo em pior inimigo em menos de um ano. Talvez venhamos a saber um dia.

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Nos protestos do movimento Aragalaya contra os Rajapaksa participaram pessoas de todas as etnias e religiões. Este é um fenómeno passageiro, porque as divisões são mais profundas do que o sofrimento comum, ou é um genuíno “processo de reconciliação”?
É difícil dizer. Por um lado, concordo que tem havido muitos sinais bons de colaboração inter-étnica e que o movimento encontrou interesses comuns para lutar e ultrapassar as suas tradicionais divisões. Da perspectiva de um conflito inter-étnico, são realmente sinais positivos.
Por outro lado, é importante não nos concentramos apenas em Colombo. Os protestos realizaram-se quase exclusivamente na capital. É indiscutível que Colombo sempre foi uma cidade diversa e relativamente tolerante. Mas, quando vamos para o Norte [de maioria tâmil] e para o Sul [de maioria cingalesa], é possível que as velhas divisões ainda permaneçam muito mais fortes do que qualquer vaga de unidade contra a corrupção [dos Rajapaksa].

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O senhor tem seguido grupos de fiéis que viajam pelas comunidades rurais para “organizar actividades multi-étnicas e promover o diálogo entre tâmiles e cingaleses católicos”. O que nos pode dizer sobre essa experiência?
Há muito boas iniciativas por parte de grupos da Igreja para superar as divisões étnicas. Pelo menos até começar a pandemia de Covid-19, esses grupos envolveram-se em acções muito interessantes, viajando para diferentes regiões, celebrando missas em várias línguas, etc.
Alguns católicos lamentaram que não fossem iniciativas “ao nível da Igreja”, por isso o seu impacto foi limitado, mas foi bom ver o desejo de muitos cingaleses e tâmiles católicos de se encontrarem com outras pessoas e partilharem as suas diferentes culturas.

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Foi o colonialismo português que abriu as portas ao Catolicismo Romano no Sri Lanka em 1505. O que resta do legado português?
As obras do padre jesuíta Vito Perniola [autor de uma história da Igreja no Sri Lanka, de 1505 até 1920, obra em 19 volumes, cada um com cerca de 500 páginas] continuam a ser o registo histórico mais completo sobre a introdução do Catolicismo em Ceilão.
Quando chegaram, os Portugueses (tal como fizeram na Índia) só estavam interessados em estabelecer enclaves costeiros, por isso, raramente se aventuravam para o interior ou então só alguns quilómetros. O Catolicismo era, pois, uma religião sobretudo costeira (de certo modo, como o Islão), e os convertidos estavam, na sua maioria, ligados ao comércio do peixe.
Ainda hoje, algumas localidades onde os Portugueses se instalaram continuam a ser o coração do Catolicismo, e a maioria dos pescadores são católicos. ‘Perera’ e ‘Fernando’ são os apelidos mais comuns na região. Na cidade de Negombo, a norte de Colombo, 93% da população é católica.
Algumas cidades para sul, como Galle, foram dos primeiros postos missionários. Com a chegada do colonialismo holandês, a partir de 1650, o Catolicismo foi proscrito [tal como a língua portuguesa] e manteve-se clandestino durante mais de 100 anos, até à chegada de São José Vaz, que veio escondido de Goa para [em 1687] começar de novo a pregar aos milhares de católicos que não abandonaram a sua fé, apesar de mais de um século sem clero.

© Cortesia de | Courtesy of Bernardo Brown
Fontes:
“Catholicism’s Overlooked Importance in Asia”, Bernardo Brown e Michael Chambon, The Diplomat; “Mission, humility and the study of Fr. Vito Perniola”, Melani Manel Perera, PIME Asia News; “The Louisiana Jesuit who fought for truth and justice in war-torn Sri Lanka”, Jeannine Guthrie, America Magazine; “Who are Sri Lanka’s Christians?”, Mathew Schmalz, College of the Holy Cross, The Conversation.
A entrevista foi publicada na edição de Setembro de 2022 da revista ALÉM-MAR | The interview was published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, September 2022 edition
Portugueses na Taprobana
Foi com o colonialismo português que a Igreja de Roma entrou em Ceilão, em 1505, mas o Cristianismo terá chegado antes à ilha que Luís de Camões refere na primeira estrofe d’Os Lusíadas.

©Alfredo Roque Gameiro (1864-1935) | Bibblioteca Nacional de Portugal | National Geographic
Leonard Pinto, autor de Being a Christian in Sri Lanka: Historical, Political, Social and Religious Considerations, divide a história nacional da Cristandade em Ceilão em três períodos: pré-colonial (72-1505); colonial (1505-1948); pós-colonial (1948-presente).
Na era pré-colonial, diz ele, já viviam no que é hoje o Sri Lanka dois grupos de cristãos, “os discípulos de São Tomé (que pregou aos brâmanes na Índia) e os Nestorianos”. Como prova, cita três cruzes desse período descobertas em posteriores escavações arqueológicas.
Para a investigadora Silvana Roque de Oliveira (Dicionário da História Religiosa de Portugal), “a referência mais antiga à presença de cristãos em Ceilão data de 535, e deve-se a Cosme Indicopleustes”, monge e mercador de Alexandria (Egipto) que ali chegou em 550. Oliveira e Pinto citam-no, atestando que a comunidade “tinha uma igreja de cristãos persas, com um presbítero ordenado na Pérsia, um diácono e um ritual eclesiástico completo”.
Se Silvana Oliveira não encontra “rastos de nenhuma comunidade cristã, no século I ou II, numa ilha que desde o imperador indiano Axoka se convertera ao Budismo (272-232 a.C.)”, Leonard Pinto destaca que o cartógrafo siciliano Muhammad Al-Idrisi, que visitou Ceilão, entre 1100 e 1166, ali encontrou “16 cristãos conselheiros do rei”.
E diz ainda que, “depois de Yahbalaha III [patriarca da Igreja do Oriente], o Primado Nestoriano aceitou unir-se à Igreja Católica”, tendo o padre Jordanus Catalha chegado à ilha em 1329 e o padre Giovanni de Marignolli vindo como representante do Papa em 1348-49. “Havia, portanto, cristãos em Ceilão antes da chegada dos Portugueses no século XVI”, sublinha Pinto.
Silvana Oliveira realça que só com os Portugueses “se deu um encontro consequente entre a Cristandade e a civilização cingalesa”, numa ilha que, nos primórdios de Quinhentos, se dividia em três reinos autónomos; “Jaffna, no Norte; Kandy ou Cândia, nas montanhas centrais; e Kotte, a sul, que depois se desdobraria dando origem ao reino de Sitawaka ou Sitavaca”.
“A partir de 1506”, adianta Oliveira, “em todos os tratados de amizade e comércio que se ratificaram entre a Corte Portuguesa e os reinos locais figurava um cláusula que assegurava a liberdade para evangelizar o povo cingalês”.
Esta evangelização tornar-se-ia “sistemática” a partir da década de 1540, quando começaram a aportar os primeiros missionários: os Franciscanos, activos em Kotte e Jaffna, em 1543; os Jesuítas, em 1602; os Dominicanos, em 1605; e os Agostinianos, em 1606.
Foram estes missionários, observa Leonard Pinto, que “introduziram o estilo de educação de massas” em Ceilão. Até então a educação estava “reservada aos pirivenas, os filhos dos ricos”, que podiam pagar o ensino em casa”. Eles “construíram e geriram escolas, orfanatos e enfermarias”.
No colégio franciscano de Colombo, os alunos aprendiam “religião, boas maneiras, leitura, escrita, aritmética, cânticos e Latim”. Outras escolas franciscanas leccionavam em cingalês e tâmil. Os colégios jesuítas em Jaffna e na capital “foram pioneiros da educação gratuita e secular” no país.
“Os missionários também deram a conhecer ao mundo ocidental a língua e a gramática cingalesa, através de livros escritos em português”, salienta Pinto, evocando os exemplos de Ars Cingalensis Linguae (“A Teoria da Linguagem Cingalesa”), de Emanuel Costa, e Arte Grammatica de Língua Chingala, do padre jesuíta Pierre Berguin. Também houve obras literárias escritas por católicos em cingalês e tâmil.
Os progressos conseguidos não foram suficientes para travar a hostilidade de monges budistas que viam com maus olhos as conversões de famílias reais cingalesas e tâmiles. A chegada dos holandeses no séc. XVII pôs fim a 163 anos de colonização portuguesa das regiões marítimas de Ceilão.
A perseguição aos missionários católicos foi inscrita na lei: um decreto de 1658 proibia, sob pena de morte, que se albergasse ou protegesse sacerdotes católicos, mas o clero era muito influente e o apostolado continuava em segredo, referiu Silvana Oliveira.
Os holandeses dominariam o Ceilão durante 138 anos, e os Britânicos, que vieram depois, ali estiveram 152 anos, até à independência da ilha (em 1948) que passou na chamar-se Sri Lanka em 1972.
Seja como for, anota o investigador Karel Staněk (A Tentativa Portuguesa de Colonizar o Sri Lanka (1580-1630), “os vestígios do período português” na antiga Ceilão “são mais fortes” do que os dos holandeses ou ingleses, “o traço mais marcante” da sua influência representado pela língua dos membros da comunidade luso-cingalesa [Burghers], o português crioulo, e pela religião católica, que até cingaleses e tâmiles professam.