Foi o seu isolamento depois da anexação da Crimeia, em 2014, que levou o Kremlin a regressar a um continente que abandonara quando ruiu a União Soviética. Agora, com uma guerra total na Ucrânia, Moscovo poderá usar riquezas da região para escapar a sanções mais penosas. A antropóloga Tatiana Smirnova e o politólogo Ebenezer Obadare explicam-me o que está em jogo. (Ler mais | Read more…)

© Florent Vergnes | AP | Getty Images | Foreign Policy
A ambição da Rússia, após o colapso da URSS, era voltar a ser uma potência global e não apenas regional. Para dar esse salto, Moscovo escolheu África, o continente que abandonara abruptamente há três décadas e onde, em alguns países, sobrevive o legado soviético.
O regresso “foi gradual, refletindo um confronto cessante com os países ocidentais”, diz-me, por e-mail, Tatiana Smirnova, antropóloga social e etnologista, estudiosa das relações entre a Rússia e África. “Os acontecimentos de 2014, relacionados com o estatuto da Crimeia, foram o momento crucial; a Rússia precisava de mercados novos, assim como de apoio internacional, e o continente africano era uma excelente oportunidade. A guerra na Ucrânia intensificou esta tendência”.
Em 2014, na sequência da anexação russa da Crimeia, república autónoma da Ucrânia, a Rússia foi expulsa do Grupo dos Oito (G8) países mais desenvolvidos. Os Estados Unidos, a União Europeia, o Canadá e outros impuseram sanções, reforçando o isolamento diplomático de Moscovo e castigando duramente a sua economia.
A alternativa foi olhar para África, aproveitando o desinteresse da Administração de Donald Trump e a vontade de alguns líderes africanos, preocupados com o domínio crescente da China, diversificarem os seus parceiros de negócios e investimentos.

“Hoje, não há dúvida de que, à semelhança de outros, a Rússia tem interesses oportunistas em África, sobretudo o comércio de armas e a exploração de recursos económicos, como minerais raros [a United Co Rusal International explora alumínio na Guiné (Conacri); o grupo Rosatom procura urânio na Namíbia; Alrosa, a maior companhia de minas de diamantes do mundo está activa em Angola e no Zimbabwe]”, adianta Smirnova, investigadora em resolução de conflitos e missões de paz no Centre FrancoPaix da Universidade do Quebeque, no Canadá.
“O mais interessante é a dimensão ‘ideológica’, pois a Rússia está a construir a sua legitimidade à imagem da União Soviética, apresentada como ‘libertadora’ da opressão colonial”, realça. “Esta imagem ainda é poderosa e transcende as fronteiras geográficas dos países com os quais a Rússia lida directamente. O início da guerra na Ucrânia e a extrema polarização do contexto geopolítico fez de Vladimir Putin quase um herói, que é capaz de confrontar e manter a cabeça erguida perante o Ocidente Global.”
“Embora varie de país para país, o poder de atracção russo é muito forte onde o Kremlin pôs em funcionamento a sua possante máquina de propaganda, designadamente na República Centro Africana e no Mali”, observa ainda Smirnova, especialista no Sahel.
“A narrativa russa é alimentada por ideias de multipolaridade e alter-globalismo que são atribuídas à capacidade de Putin de confrontar o Ocidente Global. O grande problema com o discurso promovido pelo Kremlin é excluir qualquer consideração de moralidade, seguindo o lema: ‘atingir os objectivos por todos os meios’. Isto é particularmente assustador, porque o apoio a esta narrativa tem vindo a aumentar, em especial em países afectados por conflitos.”

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No Burkina Faso, repórteres da Voz da América viram bandeiras russas a esvoaçar nas ruas, depois de um golpe de Estado militar, em Janeiro.
Na República Centro Africana, assistiram à inauguração de uma estátua representando soldados nacionais, apoiados por combatentes russos, a proteger civis – e, no entanto, a Human Rights Watch denunciou recentemente graves abusos cometidos aqui por mercenários do grupo Wagner, supostamente ligado ao Kremlin.
No Mali, observaram como a população, cansada de anos de terrorismo jihadista, acolheu calorosamente os “instrutores” russos chamados por líderes golpistas a preencher o vazio deixado pelas tropas francesas.
Como compreender esta popularidade se a Rússia nem sequer é uma grande fonte de assistência ao desenvolvimento em África, se os seus investimentos são mínimos, comparados com os da China, por exemplo? (ver caixa)
“A influência crescente explica-se por vários factores que não se podem reduzir apenas a ‘propaganda’ através das redes sociais ou de actores pan-africanistas radicais”, ressalva Tatiana Smirnova. “A atracção da Rússia é dominadora principalmente nas regiões assoladas por conflitos [como o Mali, o Sudão, a Líbia, a República Centro Africana ou Moçambique/província de Cabo Delgado], onde a prolongada presença de actores internacionais não tem contribuído para a paz.”
“A Rússia promete resolver os problemas de segurança locais onde os ‘ocidentais’ falharam. Ao mesmo tempo, oferece apoio político, e em alguns casos de segurança, às elites que aceitam a presença russa.”

A simpatia pela Rússia e um sinal de que compensou cultivar relações com uma nova geração de dirigentes, dispostos apoiar os objectivos políticos de Moscovo ficou evidente, em 27 de Fevereiro, na votação dos países africanos na primeira reunião de emergência da Assembleia Geral da ONU nos últimos 40 anos, convocada depois do veto russo a uma resolução do Conselho de Segurança que condenava a intervenção militar na Ucrânia e exigia a retirada total e imediata das tropas invasoras.
Na Assembleia Geral, a resolução não vinculativa, que incluía também a condenação da decisão de Putin de “elevar o nível de prontidão das suas forças nucleares”, foi aprovada pela necessária maioria de dois terços. Mas, embora a maioria dos Estados africanos se tenha colocado do lado da Ucrânia – 28 de um total de 54 (tal como fizeram os três representantes africanos – Gabão, Gana e Quénia – no Conselho de Segurança), não deixou de surpreender que um terço (17) tenha optado pela abstenção. Um votou contra (a Eritreia) e oito não participaram na sessão.
Entre os que se abstiveram, estão “regimes autoritários ou híbridos”, como Angola e Moçambique, mas também “democracias com fortes afinidades com o Ocidente”, analisou o investigador Mahama Tawat no site The Conversation.
Se ele entende que a África do Sul e a Namíbia tenham uma dívida de gratidão para com a ex-URSS, que os apoiou na luta contra o apartheid, Tawat notou que o voto do Senegal foi mais intrigante por se tratar de “um país querido” na Europa e EUA. Dacar esclareceu que a sua imparcialidade obedecia aos “princípios de não-alinhamento e resolução pacífica de conflitos”.

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Reagindo a estas votações, Ebenezer Obadare, investigador em Estudos Africanos no think-tank Council on Foreign Relations, em Washington, e no Research Institute for Theology and Religion da Universidade da África do Sul, deu dois conselhos ao Ocidente.
Por um lado, “evitar ser paternalista e desdenhar das nações africanas neutrais”; por outro, “não deixar de expor a hipocrisia e oportunismo de líderes africanos que usam o argumento da ingerência ocidental nos assuntos internos dos outros como cortina de fumo para se perpetuarem no poder.”
Numa entrevista que me deu por e-mail, o politólogo Obadare, autor de livros como Governance and the Crisis of Rule In Contemporary Africa, explicou os dois conselhos, que não acha contraditórios. “Em primeiro lugar, quis sublinhar a legitimidade das queixas africanas contra países ocidentais.
Ao mesmo tempo, sinto que é importante não permitir que atores desonestos usem as queixas como desculpa. Podemos condenar os países ocidentais pela sua hipocrisia e, ao mesmo tempo, denunciar a Rússia e apoiar a Ucrânia.”

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Os países africanos, especificou Obadare, “têm a sensação de ser frequentemente tratados como se existissem apenas para fazer número; que as suas preocupações sinceras com a persistente desigualdade global são facilmente descartadas; que o Ocidente muda muitas vezes as regras a meio do jogo, em suma, que a dor africana é facilmente minimizada.”
“Os Estados Unidos são vistos especialmente como culpados”, prossegue o director das revistas académicas Journal of West African Affairs, Democracy and Development, do Center for Democracy and Development, em Abuja, Nigéria, e Journal of Modern African Studies, da Cambridge University Press.
“O indiscutível polícia do mundo desde o colapso da União Soviética em 1989 tem tido um comportamento errático. Muitos – não só em África – acusam Washington de favoritismo moral, dispensando benesses diplomáticas aos que favorecem os seus interesses, mas saindo de cena assim que percebe uma ameaça a esses interesses, definidos de forma limitada e arbitrária.”

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Uma das razões por que a Rússia ganha aliados e o Ocidente os perde, apesar de investir mais em África, é que Moscovo segue “um modelo de apoio em que uma folha de serviços limpa no que respeita aos direitos humanos não é uma condição de amizade”, reconhece Obadare.
De modo a “renascer como potência global, é fundamental [que o Kremlin] recrute parceiros em África e lhes ofereça algo que, de momento, eles não obtêm do Ocidente. Tal como a China, a Rússia vê no continente a ocasião de aplicar uma governação alternativa, em que subtilezas quanto a direitos humanos são facilmente postas de lado”.
“Dito isto, uma coisa é [os africanos] quererem lembrar ao Ocidente os maus tratos que lhes infligiu no passado; outra coisa, totalmente diferente, é continuarem a fazer isso correndo o risco de confortar um mauzão certificado [Putin] e tolerar violência gratuita contra um povo cuja única ofensa é a de ser um vizinho”, anota Obadare. “Se a primeira atitude é compreensível, de uma perspectiva histórica simples, como vingança pelo sofrimento próprio, a segunda é moralmente indefensável e politicamente imprudente.”
“Os africanos”, insiste o investigador, “não se podem dar ao luxo de sacrificar um princípio sagrado no altar da conveniência política, exactamente o que acusam o Ocidente de fazer. Dificilmente a Ucrânia [que mantém laços excelentes com África] entenderá por que tem de suportar este fardo. A última coisa que os ucranianos precisam agora é de uma lição de história.”

© Thomas Coex | AFP | Getty Images | Financial Times
A antropóloga Tatiana Smirnova admite que os recursos do Kremlin, para se expandir em África, “não são os mesmos que tinha antes do início da invasão da Ucrânia”. Tem, porém, a certeza de que “a guerra e o isolamento deram mais uma razão à Rússia para reforçar os seus interesses” no continente. “Creio que não se trata sequer de uma questão de capacidade, mas sim de sobrevivência. A Rússia vai tentar alargar a sua influência a países onde ainda não está presente.”
Haverá o risco de Putin “usar os recursos naturais pilhados em África para fugir às sanções e manter em funcionamento a máquina bélica russa”? Esta hipótese foi aventada num artigo pulicado na revista TIME por George Clooney, John Prendergast e Justyna Gudzowska, responsáveis da organização The Sentry, dedicada a desmantelar redes multinacionais predadoras que beneficiam de conflitos violentos, repressão e cleptocracia? “É difícil prever a próxima jogada”, responde a antropóloga.
O investigador Ebenezer Obadare admite: “Não é inconcebível que Putin possa usar as relações com alguns países africanos para neutralizar os efeitos das sanções ocidentais, mas é uma questão em aberto se, a longo prazo, conseguirá fazer isso com sucesso”.
Já os receios de que África se “poderá tornar palco de uma repetição das lutas imperialistas” que caracterizaram a Guerra Fria, considera-os “enganadores”. Porque “isso seria assumir que os países africanos não são donos do seu destino”.
Clooney, Prendergast e Gudzowska sugerem que o melhor, para os países africanos, seria adoptar uma política de “nem Rússia, nem Ocidente, nem China”. Obadare discorda. “Há quem veja o conflito ucraniano como apenas uma luta intra-europeia pela supremacia entre duas hegemonias sedentas de poder e cujo resultado não afectará os países africanos. Isto é absurdo.”
Seria um grande erro se os países africanos abandonassem o Ocidente”, conclui. “Não vejo benefícios a longo prazo num mundo em que os valores dominantes são os de Vladimir Putin. Os países africanos estão numa importante encruzilhada histórica; como tal, não podem dar-se ao luxo de seguir um caminho errado.”
Muitas armas, poucos investimentos
Ao reforçar a sua presença em África, a Rússia aumentou para cerca de 20 mil milhões de dólares as trocas comerciais com o continente – mais do dobro em relação a 2015, segundo o African Export-Import Bank: mais de 14 mil milhões em exportações e menos de 5 mil milhões em importações (80% das quais provenientes da Argélia, do Egipto, de Marrocos, da Guiné, da Costa do Marfim e da África do Sul; as compras de trigo representam 90% deste comércio).
O total continua, porém, a ser muito inferior ao da China, cujo volume anual de trocas com África ascende a 254 mil milhões. Em termos de investimento estrangeiro directo, o da Rússia equivale apenas a 1%.
A exportação de armas para África representou 18% do total das vendas de armamento da Rússia, entre 2016 e 2020 – um aumento de 23% face ao período 2011-2015. No entanto, a fatia da Rússia no mercado mundial diminuiu 22% em relação à década 2011-2020, sinal de um mercado muito competitivo no continente (envolvendo os EUA, a França, a Alemanha e a China). A Argélia compra à Rússia 69% do seu armamento, Angola 64% e o Egipto 41%, revela o Danish Institute for International Studies.
África compra mais de 1/3 das suas armas à Rússia, segundo o Instituto de Investigação para a Paz em Estocolmo, salientando que “os contratos entre a companhia estatal Rosoboronesport e 20 Estados africanos incluem praticamente todo o tipo de armamento” – caças, helicópteros e sistemas de defesa aérea, carros de combate, espingardas e munições. Os principais compradores são o Egipto e a Argélia, mas também a Nigéria, o Sudão e o Mali.
Há um década, os mercenários contratados por empresas de segurança russas estavam presentes apenas em dois países. Agora, estão activos em 27, sendo 16 deles em África, diz o Center for Strategic and International Studies, em Washington.
Os mercenários do grupo Wagner, com supostas ligações ao presidente Putin, têm entre 3000 e 5000 homens na África subsariana. Entre 800 e 1000 estão no Mali, onde recebem um total de 10 milhões de dólares por mês para “treinar” as forças de segurança, mas principalmente, para “proteger” o regime militar em Bamako, informa Harry G. Broadman, autor do livro Africa’s Silk Road.
Estes artigos foram publicados originalmente na edição de Junho de 2022 da revista ALÉM-MAR | These articles were originally published in the June 2022 edition of the Portuguese news magazine ALÉM-MAR.