Daniel Ortega e a Frente Sandinista puseram fim a 43 anos de dinastia Somoza para a substituir por outra tirania. O regime do antigo guerrilheiro silencia, persegue, prende, tortura e força ao exílio qualquer dissidente, incluindo ex-companheiros de luta. A sociedade civil está debilitada, e agora as sanções à Rússia pela guerra na Ucrânia introduziram uma incógnita: o que será das autocracias do hemisfério sem o seu patrono? (Ler mais | Read more...)

© 2018 Oswaldo Rivas | Reuters | Human Rights Watch
O investigador social e professor universitário Diego (nome fictício que escolheu para protecção pessoal) quer “ver a situação com optimismo”, mas reconhece que “é difícil vislumbrar uma saída” para o que alguns descrevem como “a pior crise política dos últimos 40 anos” na Nicarágua, o seu país-natal.
Os sonhos de democracia e justiça foram esmagados em 2018, depois de uma inusitada revolta popular contra um pacote de reformas anunciado, em Abril, pelo Instituto Nicaraguense da Segurança Social (INSS). Os mais penalizados seriam milhares de reformados, que, com pensões equivalentes a 300 ou 500 dólares mensais, passariam a contribuir com 5%, para cobrir despesas por doença.
Dois dias depois do anúncio do INSS, o presidente Daniel Ortega impôs, unilateral e inconstitucionalmente, as reformas, que, alertaram especialistas, sem uma diminuição dos gastos administrativos, iriam aumentar o desemprego no país mais pobre do continente americano.
De imediato, começaram manifestações em Manágua, a capital, e noutras cidades, denunciando o “roubo de décadas de trabalho”. O mais surpreendente foi a participação de sectores que até então apoiavam o governo, como as universidades públicas e o Conselho Superior da Empresa Privada.

© Esteban Felix | AP | The New York Times
Foi uma “rebelião cívica, espontânea e imprevisível”. Mas o regime de Daniel Ortega e Rosário Murillo, primeira-dama e vice-presidente, não olhou a meios para se agarrar ao poder. Balanço da repressão: mais de 300 mortos e cerca de 2000 feridos, a maioria jovens, centenas de prisioneiros, dezenas de milhares de exilados, prejuízos económicos de vários milhões de dólares.
Muitos dos manifestantes estiveram detidos durante meses, sujeitos a tortura, como “choques eléctricos e espancamentos, remoção de unhas, asfixia e violações”, segundo a organização Human Rights Watch. Uma amnistia permitiu a libertação de alguns em 2019, mas garantiu imunidade aos opressores. Ortega promoveu até alguns dos responsáveis envolvidos nos abusos.
“A situação actual é a de uma crise mais prolongada do que se esperava” e que poderá “durar ainda mais alguns anos”, lamenta Diego, numa entrevista que de deu, por e-mail. “Os protestos geraram inicialmente imensas expectativas de mudança política e democratização, mas a resposta repressiva do Estado teve o efeito oposto: a consolidação de um regime autoritário que ainda hoje persiste.”
“Exemplos do colapso terrível da democracia são as prisões frequentes de líderes da oposição, a proibição de novos protestos, o encerramento de espaços públicos de participação política, a censura dos media, das universidades e de organizações não governamentais”, acrescenta o académico nicaraguense. “Hoje, o governo é forte e a sociedade civil é cada vez mais fraca e dispersa.”
Perante a “falta de vontade das autoridades e a ineficácia da comunidade internacional”, há “um sentimento de resignação generalizada e desespero” na sociedade, acrescenta Diego. A possibilidade de mudanças políticas fundamentais “parece distante e difícil de atingir”. Muitos jovens, “incapazes de mudar a nação, mesmo sem ser perseguidos, optam pela emigração, em busca de oportunidades económicas, políticas e sociais”.

© Cesar Rodriguez | The New York Times
Entre os milhares de nicaraguenses forçados a abandonar o país está Elvira Cuadra, antiga directora executiva do Instituto de Estudos Estratégicos e Políticas Públicas da Nicarágua. Quando lhe pergunto se agora está em segurança, responde: “Direi apenas que me encontro na Costa Rica como exilada, porque existem perigos significativos para a minha vida e integridade.”
Como explica ela os acontecimentos de 2018 e a violência brutal usada contra os manifestantes? “Ortega voltou à presidência em 2007 [havia perdido três eleições desde 1990] com uma muito fraca legitimidade, e sabia que iria enfrentar o descontentamento social, por isso criou um sistema de dispositivos de vigilância e controlo social para o travar, mas esse sentimento cresceu e transbordou completamente”.
“Antes de Abril de 2018, Ortega já havia recorrido à força para reprimir manifestações de protesto – só que nas zonas rurais”, destaca a socióloga que fez parte da Coordenadora Regional de Investigações Económicas e Sociais para a América Central e Caraíbas.
“Em 2018, quando os protestos eclodiram nos centros urbanos, a polícia e os grupos simpatizantes do governo não estavam preparados. Isso levou-os a uma escalada da violência, incluindo o uso de força letal contra os manifestantes.” Desde então e até hoje, a repressão já passou por 14 fases, “com o objetivo específico de eliminar qualquer expressão pública de insatisfação”.
“A revolução devora-se a si mesma”, foi o título que a revista The New Yorker escolheu para um artigo, em Março, assinado por Alma Guillermoprieto, testemunha dos acontecimentos históricos que, em 1979, levaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) a derrubar Anastasio Somoza Debayle, o últimos dos três déspotas de uma ditadura familiar que durou 43 anos.

© Meridith Kohut | The New York Times
Com o apoio do irmão Humberto, influente estratega sandinista que “preferia controlar o poder nos bastidores”, Daniel Ortega, “o mais apagado” de Los Nueve comandantes da FSLN, tornou-se chefe da Junta Militar de Reconstrução em 1979.
Em 1984, Ortega venceu as primeiras eleições presidenciais da história da Nicarágua, mas perdeu as subsequentes em 1990 (para Violeta Barrios Chamorro), 1996 (Arnoldo Alemán) e 2001 (Enrique Bolaños). As derrotas deixaram ainda mais paranóico um homem que já havia “eliminado toda a concorrência, rodeando-se de incondicionais que, tendo interesse em mantê-lo na liderança, dividiram o Estado entre eles”, como escreveu o jornalista nicaraguense Fabián Medina, autor do livro El Preso 198: Un Perfil de Daniel Ortega.
O que aconteceu ao ex-guerrilheiro para imitar o tirano que ajudou a derrubar? “Ortega é o tipo clássico de revolucionário que degenera para o autoritarismo”, observa Diego, o investigador nicaraguense. “A Frente Sandinista já não é o que era, nem a revolução trouxe as mudanças que prometia.”
“É claro que isso se ficou a dever a ameaças externas (agressão dos EUA) e a erros e abusos internos (controlo excessivo, económico e político, e um alinhamento ideológico marxista). Hoje, entre as novas gerações, há um revisionismo profundo do período revolucionário.”

© Meridith Kohut | The New York Times
“Através de uma série de manobras políticas iniciadas em 1990, após perderem as eleições, a FSLN e Ortega fundiram-se num só organismo”, adianta Diego. O movimento sandinista “foi capturado politicamente” pelo presidente e sua família, suprimindo, de forma eficaz, a dissidência interna. Ao regressar ao poder em 2007, Ortega acelerou este processo e extrapolou-o para o Estado, assumindo gradualmente o controlo dos poderes legislativo e judicial, do exército, da polícia, entre outros.”
“Paralelamente, a violência política aumentava. As políticas de Ortega, que não são de esquerda, foram exibindo cada vez mais matizes neoliberais. Diga-se que as controversas reformas da segurança social, que desencadearam os protestos em 2018, integravam recomendações [de austeridade] do Fundo Monetário Internacional. O país foi regredindo nos indicadores democráticos, como prova o Índice de Democracia da Freedom House”, que certificou “o colapso do Estado de Direito”.
Nas eleições de 7 de Novembro de 2021, “Daniel Ortega e Rosario Murillo asseguraram a continuidade no poder, mas a um preço muito elevado, quando decidiram assumir o controlo de todas as variáveis deste processo”, confirma Elvira Cuadra, na entrevista que me deu.
“O terreno foi sendo preparado em 2020, com a aprovação de um conjunto de leis punitivas que restringem significativamente os direitos dos cidadãos.” A seguir, veio “uma escalada de repressão” com o propósito de afastar qualquer rival.

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Foram detidos setes aspirantes presidenciais, acusados de “traição à pátria”, um deles o rosto mais conhecido e popular, Cristiana Chamorro, filha da ex-presidente Doña Violeta, que governou entre 1990 e 1996. Ortega ilegalizou também dois partidos, decapitou o movimento de cidadãos na oposição, ao capturar os seus principais dirigentes, silenciou as vozes mais críticas, perseguindo jornalistas e media independentes, assim como analistas e comentadores políticos, além de organizações da sociedade civil.
A dupla Ortega e Murillo não poupou sequer figuras históricas da Frente Sandinista, como Dora María Téllez, Comandante Dos, e o general Hugo Torres, Comandante Uno – lendários guerrilheiros que, em 1978, com o Comandante Cero, Edén Pastora, tomaram de assalto o Palácio Nacional em Manágua, em 1978, acelerando o fim da ditadura.
Em Fevereiro, Dora María, de 66 anos, para quem Ortega pediu 15 anos de cárcere, foi considerada “culpada de conspiração” num julgamento à porta fechada na infame prisão política de El Chipote, em Manágua. Torres, de 73, que ajudou a libertar Ortega de uma masmorra de Somoza, morreu na cadeia. Da sua residência na Costa Rica, até Humberto Ortega, general e ex-ministro da Defesa, irmão de Daniel, lamentou “doloroso e lamentável desenlace” e apelou à libertação de todos os prisioneiros.
“O estado de terror estendeu-se à população em geral”, salienta Elvira Cuadra, mas, apesar disso, as pessoas “optaram por não ir às urnas” em 2021. O Governo garante que votaram 65,34% dos 4,4 milhões de eleitores registados, mas o Observatório Independente das Urnas Abertas tem a certeza de que a taxa de abstenção chegou a 81,5%.
Na véspera do escrutínio, uma sondagem Gallup dava a Ortega 20% das intenções de voto, uma estimativa muito abaixo do que seria o resultado oficial: 74,9%. O casal presidencial “ganhou sem legitimidade, interna e internacional”, criticou a socióloga nicaraguense.

© Rodrigo Arangua | AFP | Getty Images | The New York Times
“Ortega tem vindo a ‘institucionalizar’ um Estado policial, porque é, na realidade, um regime fraco, só apoiado pela repressão e pelo medo”, reafirma Elvira Cuadra. “Os seus pilares de apoio são apenas o exército, a polícia, grupos paramilitares e simpatizantes fanáticos.”
“Ele sabe que enfrenta um cenário pouco favorável a curto prazo, com a convergência de pelo menos três crises: a sócio-política; a sanitária, devido à política que adoptou em relação à Covid [terá ocultado entre 6000 e 9000 mortes]; e a económica, em consequência das duas anteriores.”
“Há muito descontentamento social [sobretudo de jovens – foram encerradas 14 universidades privadas que deixaram milhares de estudantes sem acesso ao ensino superior] e muita pressão devido às condições de vida da população e ao fluxo de migração [calcula-se que 100 mil nicaraguenses fugiram para a Costa Rica e que outros 50 mil tenham procurado refúgio noutros países], por razões políticas e económicas. Mas também há gente organizada em condições praticamente de clandestinidade”, avalia a socióloga, que vê “um regime forte e simultaneamente débil”.
Em 1978, no assalto ao Congresso em Manágua, 25 guerrilheiros conseguiram neutralizar 3000 homens da temível Guarda Nacional de Somoza. Até que ponto é invencível o aparelho militar que apoia o atual regime? “Embora o exército e a polícia sejam pilares de Ortega, é importante ressalvar que ambos desempenham papéis diferentes”, anota Elvira Cuadra.

© Oswaldo Rivas | Reuters
“No caso do exército, a aliança com Ortega é de natureza política e económica – não é uma posição subordinada. O exército considerara-se actor com poder próprio e, por isso, optou por não se ligar, directa ou visivelmente, às acções de repressão em 2018.”
“O exército tem um património institucional e os seus altos responsáveis um património individual, que têm sido contruídos e alimentados graças à aliança com Ortega”, informa a socióloga que há mais de 20 anos investiga processos de construção da paz e analisa temas como conflitos, segurança, direitos humanos, jovens e cultura política. “Este património corre riscos, se os EUA e outros lhes aplicarem sanções. O Exército é a peça-chave da base política do regime Ortega-Murillo.”
“O caso da polícia é diferente”, esclarece. “Tem uma posição subordinada e deixou de ser uma instituição com amplo reconhecimento e confiança dos cidadãos para se converter num mero aparelho de repressão política. É mais uma peça na engrenagem de repressão e vigilância que Ortega pôs a funcionar plenamente desde 2018.”
Que papel podem estas forças desempenhar se houver uma transição para a democracia? “Eventuais reformas das duas instituições terão de ser distintas”, responde Elvira Cuadra. “Na polícia, um processo destes teria de começar imediatamente após a mudança de governo, incluindo uma depuração dos efectivos e afastamento das chefias, para apurar responsabilidades nos crimes e graves violações dos direitos humanos que têm sido cometidos. Também será necessário modificar o quadro jurídico institucional, as funções, a estrutura e outros aspectos importantes. Na prática, será uma refundação da polícia.”

© Esteban Biba | EFE
Quanto ao exército, embora seja necessária “uma investigação para saber qual o seu nível de participação na repressão, terá um papel a desempenhar no controlo e desmobilização dos grupos paramilitares organizados por Ortega. Este processo de reforma seria diferente do da polícia, a médio ou longo prazo.”
O investigador Diego insiste em que “não é fácil pensar numa solução rápida [da crise] ou na democratização em que muitos nicaraguenses acreditaram em 2018”. É verdade, admite, que “vários think-tanks, organizações e activistas continuam a resistir e a aproveitar este período para reforçar estruturas, preparar propostas concretas para uma eventual transição democrática e recolher o máximo de provas de violações de direitos humanos”. Mas, em seu entender, “é praticamente impossível supor que haverá novas mobilizações, devido ao controlo político e à repressão que acompanham a consolidação do poder autoritário.”
“A médio prazo, o regime poderá ser pressionado (por factores mais externos do que internos) a iniciar ligeiras mudanças”, conclui. “Duvido muito, porém, que este processo há muito aguardado para democratizar a Nicarágua vá acontecer rapidamente. O regresso à democracia será parcial, com reveses, avanços e nuances.”
Um dos factores externos poderá a ser o impacto da guerra na Ucrânia. Em Março, os Estados Unidos, que cortaram relações com a Venezuela em 2019 e reconheceram Juan Guaidó como “presidente legítimo”, reaproximaram-se do regime de Nicolas Maduro, para o convencer a afastar-se de Vladimir Putin e a oferecer alternativa ao petróleo russo nos mercados globais.

© Joshua Partlow | The Washington Post
Esta é uma mudança geopolítica de grande significado que Diego reconhece: “A situação na Ucrânia está a criar expectativas a países e governos aliados de Putin, incluindo a Nicarágua”, que recebe apoio militar e tecnológico de Moscovo.
“Se o desfecho favorecer a Ucrânia, talvez Ortega fique mais isolado, precisando de apoio e legitimidade da parte de outros, o que poderá abrir possibilidades políticas de democratização – ainda que um tal processo seja sempre lento e não imediato. Um exemplo concreto disso foi o fim da Guerra Fria [com o colapso da URSS], que obrigou os sandinistas a realizar eleições livres em 1990. Poderá ocorrer agora um cenário semelhante, mas é cedo para o achar provável.”
Elvira Cuadra não vislumbra, por enquanto, “sinais claros de eventuais mudanças” nas relações dos EUA com os países do hemisfério, mas, sem especificar, acha “previsível” que as sanções internacionais à Rússia de Vladimir Putin venham a afectar a Nicarágua, a Venezuela e Cuba”.
Analistas como Antonio Maria Delgado, do jornal Miami Herald, surpreenderam-se com a abertura de Washington a Maduro. Em declarações à DW, Delgado realça que a produção actual de petróleo da Venezuela é de menos de um milhão de barris/dia, uma pequena fracção dos 8000 milhões importados pelos EUA. No entanto, com o preço do crude a mais de 100 dólares o barril e com o dinheiro venezuelano parado nos bancos russos, bloqueados do sistema internacional Swift, “percebe-se por que Maduro poderá ceder”.
A Venezuela, a Nicarágua e Cuba “não têm muitos amigos e, por isso, têm poucas opções”, comenta Delgado. Na conjuntura atual, “é plausível que tentem fazer tudo para sobreviver.” Não lhe passou despercebido o facto de, numa recente votação na Assembleia-Geral da ONU sobre a guerra na Ucrânia, Manágua e Havana se terem abstido, e não votado a favor de Moscovo, como é hábito.
Conclui Elvira Cuadra: por um lado, a oposição nicaraguense “teme que o país seja relegado para um segundo plano”, porque as preocupações da comunidade internacional se concentram na Ucrânia; por outro, as sanções à Rússia poderão dar alento, se “enfraquecerem” o que Jacobo García, do diário espanhol El País, descreveu como “o gulag da América Central”
Ortega: O devorador da revolução

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A dupla Ortega e Murillo não poupou sequer dirigentes da Frente Sandinista, como Dora María Téllez (na foto, ao centro, empunhando a arma, nas ruas de León), a Comandante Dos, e o general Hugo Torres, o Comandante Uno – figuras lendárias da guerrilha que, em 1978, com o Comandante Cero, Edén Pastora, tomaram de assalto o Palácio Nacional em Manágua, acelerando o fim da ditadura. Dora María foi detida, aos 66 anos, na infame prisão política de El Chipote, na capital; Torres, que ajudou a libertar Ortega de uma masmorra de Somoza, morreu na cadeia, aos 73
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Os desafios da Igreja Católica
Na Nicarágua, há uma voz que não se cala: a de uma instituição-comunidade que continua a usar as paróquias e os púlpitos em defesa dos oprimidos. Para a silenciar, o regime em Manágua acaba de expulsar o representante do Papa.

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Em 2018, poucas horas depois de começar a mobilização popular contra uma controversa reforma da segurança social, os líderes religiosos na Nicarágua apelaram a que se evitasse a violência, mas perante uma escalada de repressão, logo se “abriram as paróquias para acolher as vítimas dos ataques da polícia e dos simpatizantes sandinistas”, relata Diego, professor universitário e investigador, ele próprio um ativista católico na oposição.
“A Igreja validou os protestos ao reconhecer como justas as reivindicações dos manifestantes”, salientou Diego, na entrevista que me deu. “Num país de tradição católica, como é a Nicarágua, a mensagem definitiva dos padres e bispos teve um efeito enorme, pois deu à mobilização maior legitimidade e motivação.”
Ortega e a Frente Sandinista “também viam na Igreja, instituição-comunidade, uma fonte de legitimidade num tempo de crise inesperada”, e convidaram os bispos a mediar negociações com os manifestantes, refere o académico nicaraguense. “O processo acelerou-se de tal modo que os manifestantes começaram a exigir democracia e justiça, não apenas a revogação dos planos para a segurança social. Os bispos promoveram esta agenda, e a democratização tornou-se tema central das negociações.”
Com o passar do tempo, as negociações falharam. “Os bispos criticaram a enorme falta de vontade dos delegados governamentais, mas também a falta de moderação dos opositores, que queriam mudanças rápidas e, talvez, inviáveis. Entretanto, os sandinistas acusaram a Igreja de apoiar uma ‘tentativa de golpe’ contra Ortega”, relegando-a à posição de “testemunha”, sem direito a intervir neste “diálogo nacional”.

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Sobre o papel da Igreja para “influenciar o advento da democracia numa região caracterizada pelo autoritarismo e por caudillos, de esquerda e direita”, Diego realça “um elemento crucial”: “Não foi uma acção uniforme. É verdade que, de um modo geral, bispos, padres, mulheres e homens religiosos apoiaram os manifestantes.”
“No entanto, houve casos específicos em que alguns [sacerdotes e prelados] moderaram as suas críticas ou apoiaram abertamente as autoridades, inspirados pela simpatia que sentem pelo partido [sandinista] e por concessões significativas feitas às suas paróquias e dioceses.”
Seja como for, a Igreja “começou a pagar o preço do seu envolvimento com os manifestantes assim que os protestos começaram”, salienta Diego. Por exemplo, “há provas de assédio constante a líderes espirituais, espionagem de serviços religiosos, restrições à obtenção de vistos por parte de missionários estrangeiros, redução de subsídios a obras católicas (como escolas e programas sociais), ataques directos contra infra-estruturas (como a profanação de templos) e à integridade de clérigos (alguns deles feridos).”

© 7 Margens
No dia 2 de Março, o regime de Ortega declarou persona non grata o representante do Papa e expulsou-o. O arcebispo polaco Waldemar Stanislaw Sommerstang, núncio apostólico em Manágua, foi obrigado a deixar o país e a mudar-se para Roma, noticiou o site Crux Now.
O “ponto de viragem” nas relações entre Ortega e a Santa Sé deu-se em 18 de Novembro de 2021, quando o governo anulou, por decreto, a função de “decano do corpo diplomático”, que, nos países de maioria católica é desempenhada pelo núncio papal.
Sommerstang caiu em desgraça assim que começou a usar o termo “prisioneiros políticos” e a criticar “as muitas mentiras” do Estado, pondo fim à neutralidade que assumira nos três anos anteriores, enquanto serviu de interlocutor entre o regime e as famílias de centenas de opositores atrás das grades.
O ano passado, Ortega chamou aos bispos “filhos do diabo”, “terroristas” e agentes estrangeiros”, acusando-os de propagarem uma “cristandade falsa”. Chegou a colocar uma cabine policial na rua em frente à residência do cardeal e arcebispo de Manágua, Leopoldo Brenes Solorzano.

© Mayela Lopez | Reuters | CNC
“As acções contra a Igreja chamam a atenção pelo seu poder simbólico, político e social”, afirma Diego. “Cada ataque à Igreja demonstra a falta de contenção por parte das autoridades nas represálias contra todos os opositores. Este custo evoca o antagonismo histórico entre sandinistas e católicos, que atingiu o pico nos anos 1980.”
“Não é correcto e é simplista dizer que, a partir de 2007, passou a haver uma aliança entre os bispos católicos e Ortega, só porque o Governo proibiu o aborto terapêutico. A Igreja na Nicarágua sempre viu Ortega com suspeição, e há ampla documentação e provas sólidas a este respeito.”
“Hoje, longe de se desmobilizar em face da repressão acrescida, a Igreja transformou as suas lutas, adoptando uma nova abordagem: continua a ser uma voz crítica, mas transferiu o seu campo de acção para um domínio onde pode mais facilmente vencer as autoridades.”

© Oswaldo Rivas | reuters | Newscom
E que domínio é esse? Apesar de explicitamente proibidas as manifestações no espaço público, “padres continuam a admitir este tipo de protesto nas igrejas”, garante Diego. De igual modo, “sacerdotes e bispos influentes persistem nas críticas ao sistema político”, enquanto “cartas pastorais, tuítes, comunicados e sermões dominicais nos púlpitos denunciam o autoritarismo e realçam a necessidade de dar aos nicaraguenses uma voz e direitos.”
“Os leigos nicaraguenses recorrem igualmente à liturgia para protestar. Símbolos de resistência são frequentemente usados, por exemplo, nos altares à Virgem Maria.” Depois de um incêndio que destruiu um venerado Crucifixo na Capela do Sangue de Cristo em Manágua, o cardeal Brenes condenou um “ataque terrorista premeditado”. O prelado deixou a imagem queimada “como símbolo eloquente da agressão à Igreja”, salientou Diego, referindo que “este tipo de linguagem é subversivo, por natureza, e encoraja os nicaraguenses (que a entendem perfeitamente)”.
A Igreja “é obviamente cautelosa, tentando evitar a repressão e acusações frontais, mas continua a influenciar, e não só simbolicamente”, afirma Diego. “Vários padres organizam reuniões de grupos da oposição nas suas paróquias e comunidades, enquanto outros facilitam o exílio de jovens perseguidos” por um presidente que ainda se identifica como católico (em 2005, Ortega e a companheira de muitos anos, Rosário Murilo, casaram-se pela Igreja numa cerimónia presidida pelo defunto cardeal Miguel Obando Y Bravo), mas que se aproximou dos evangélicos neo-pentecostais – o grupo religioso que mais cresce -, numa “aliança estratégica puramente com objectivos políticos”.

© Luisa Grañena | El País
Estes artigos foram publicados originalmente na edição de Abril de 2022 da revista ALÉM-MAR | These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, April 2022 edition