A Amnistia Internacional, o maior movimento global de direitos humanos, diz num relatório ter encontrado provas de que os palestinianos estão a ser vítimas de segregação racial e pede sanções contra os responsáveis por um “sistema de opressão e domínio”. É uma acusação já antes feita por duas ONG israelitas. O Governo dirigido por Naftali Bennet e Yair Lapid defende-se, denunciando uma “agenda anti-semita”. (Ler mais | Read more…)

Quatro anos de investigação, entre 2017 e 2021, levaram a Amnistia Internacional a concluir que Israel comete “o crime de apartheid”, ao tratar os palestinianos como “um grupo racial inferior” e “privá-los dos seus direitos”, com recurso a políticas de “segregação, despojamento e exclusão” nos territórios que controla.
Yair Lapid, o ministro dos Negócios Estrangeiros que alterna com Naftali Bennet a chefia do Governo de Israel, acusou o relatório de “não corresponder à realidade” e defendeu o seu país: “Embora não seja perfeito, é uma democracia comprometida com a lei internacional e aberta ao escrutínio”.
A Amnistia, “em tempos uma organização respeitada” segue agora “uma agenda anti-semita”, atacou Lapid. “Odiaria usar o argumento de que, se Israel não fosse um Estado judaico, ninguém na Amnistia se atreveria a criticá-lo, mas, neste caso, não há alternativa”.
A Amnistia recorda que, em 2017, acusou de “crime de apartheid” o regime da Birmânia/Myanmar, pelas políticas de “limpeza étnica” e “negação dos direitos” de minorias muçulmanas, sobretudo da comunidade Rohingya, no estado de Rakhine.
Agnes Callamard, a secretária-geral da Amnistia Internacional, reconheceu que o relatório de 280 páginas, publicado em Janeiro e intitulado Apartheid de Israel Contra os Palestinianos: Um Sistema Cruel de Domínio e um Crime Contra a Humanidade, “pode chocar e perturbar”, mas deixou claro que “criticar as práticas do Estado de Israel não pode, de modo algum ser uma forma de anti-semitismo”.
Porque o maior movimento global de defesa dos direitos humanos, com 10 milhões de apoiantes e delegações em mais de 70 países (incluindo Portugal) sempre se insurgiu “contra actos de anti-semitismo e qualquer outra forma de racismo”.

© AFP | Middle East Eye
“Criticamos o Governo israelita, não o povo israelita ou o povo judeu – insistimos nessa distinção”, vincou a antiga Relatora Especial das Nações Unidas sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias. “A nossa crítica ao Governo israelita baseia-se na lei internacional, e nas provas dos imensos danos e sofrimento que as políticas israelitas causam aos palestinianos” – seja em Israel, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, como noutros países onde eles são refugiados/deslocados.
Antes da Amnistia, já duas ONG israelitas, Yesh Din e B’Tselem, e mais recentemente a Human Rights Watch, haviam usado o termo apartheid para descrever o sistema imposto por Israel aos palestinianos.
Afinal, o que é que a Amnistia concluiu após “analisar leis relevantes, ordens do exército, directivas ministeriais, declarações de responsáveis governamentais e militares, arquivos parlamentares, documentos de planeamento e zoneamento, orçamentos do Estado e processos judiciais”, depois de “dezenas de entrevistas com comunidades palestinianas em Israel e nos territórios ocupados”; e na sequência de “consultas com numerosos representantes de organizações não governamentais palestinianas, israelitas e internacionais, assim como agências da ONU, académicos e peritos legais”?
“O sistema de apartheid começou com a criação de Israel em Maio de 1948, e foi sendo construído e mantido ao longo de décadas por sucessivos governos israelitas [foram os trabalhistas, e não a direita, que iniciaram o processo de colonização após a guerra de 1967] sobre todos os territórios que controlam”, informa a Amnistia.
“Todas as políticas e leis têm sido moldadas com um objetivo abrangente: manter uma maioria demográfica judaica e maximizar o controlo israelita [das áreas ocupadas] à custa dos palestinianos.”

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Para conseguir este objetivo, “sucessivos governos têm aplicado, deliberadamente, um sistema de opressão e domínio sobre os palestinianos”, sendo as “componentes-chave” deste sistema “a fragmentação territorial; a segregação e o controlo; a expropriação de terras e bens; a negação de direitos sociais e económicos.” A Amnistia cita vários exemplos.
– “Limitações severas de movimento na Cisjordânia, impostas através de uma rede de checkpoints [postos de controlo] e o encerramento de estradas; isto combinado com um sistema que obriga os palestinianos que queiram deslocar-se a outras zonas dos territórios ocupados a pedir uma autorização militar israelita” para se movimentarem;
– “Um estatuto de nacionalidade superior atribuído aos cidadãos judeus de Israel, que, distinguindo-se do de cidadania, é a base para tratar de forma diferente judeus e não judeus”;
– “Em Jerusalém Leste, a negação sistemática aos palestinianos de licenças de construção, daqui resultando repetidas demolições e despejos [como acontece no bairro de Sheikh Jarrah]; a expansão de colonatos ilegais que força os palestinianos a sair de suas casas e confina a população palestiniana a enclaves cada vez mais pequenos”;
– “A negação do direito internacionalmente protegido de os refugiados palestinianos regressarem; para garantir que Israel controla a demografia, as famílias desalojadas estão proibidas de regressar às suas aldeias e casas [de onde fugiram ou foram expulsas durante e após as guerras de 1948 e 1967]”;
– “Restrições no acesso à terra e a áreas de pesca na Faixa de Gaza, o que exacerba o impacto sócio-económico do bloqueio ilegal israelita [por terra, mar e ar, imposto, quando o movimento islamista Hamas retirou o poder à secular Fatah, principal facção da Autoridade Palestiniana].

© Ryan Rodrick Beiler | fairobserver.com
A Amnistia enumera ainda uma série de “actos inumanos”, que, em seu entender, “encaixam no critério da Convenção do Apartheid”, aprovada em 1973 pela Assembleia-Geral das Nações Unidas: “transferências forçadas, detenção administrativa e tortura, execuções extrajudiciais; negação de direitos básicos e liberdades; perseguição dos palestinianos de Israel e dos territórios ocupados.”
“As autoridades israelitas justificam com argumentos de segurança muitas das políticas mencionadas neste relatório, incluindo a expropriação de terras, a negação de licenças de planeamento e construção, as revogações de residências, as restrições de movimento, as leis discriminatórias em relação à reunificação de famílias”, mas a Amnistia examinou as justificações e, reconhecendo a Israel “o direito – e a obrigação – de proteger a sua população” concluiu que “são um pretexto para acções que visam, de facto, controlar o povo palestiniano e explorar os seus recursos.”
O objetivo do relatório, frisa a Amnistia, é apelar ao Governo israelita para que empreenda “as reformas necessárias no sentido de cumprir as suas obrigações sob a lei internacional”. Até que isso aconteça, faz um apelo ao Conselho de Segurança da ONU para impor sanções a responsáveis israelitas, como “um amplo embargo ao fornecimento, venda e transferência de armas”.
Recomenda ainda que o Tribunal Penal Internacional, com jurisdição desde 2014 na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Leste, “inclua na sua investigação o crime de apartheid, que é um crime contra a humanidade”.

© Middle East Monitor
O relatório da Amnistia Internacional “nega ao Estado de Israel o seu direito de existir como Estado nação do povo judeu”, enfatizou o Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita num comunicado. “A sua linguagem extremista e distorção do contexto histórico pretendem demonizar Israel e alimentar o fogo do anti-semitismo.”
Também o presidente do Congresso Judaico Mundial, Ronald Lauder, criticou o relatório “por não contribuir, em absolutamente nada, para um caminho construtivo e por não ter um interesse real em promover os direitos humanos dos palestinianos ou em avançar com vista à paz e a uma solução duradoura de dois Estados”. Pelo contrário, “só alimenta os fogos dos anti-semitas sob o disfarce do politicamente correcto”.
Que a Amnistia quis “deslegitimar e diabolizar o Estado judaico e democrático de Israel”, foi também a acusação feita por grupos poderosos da direita nos Estados Unidos, como o American Israel Public Affairs Committee (AIPAC).
É uma “falsa narrativa” propagada por aqueles que “pouco criticaram a colaboração militar de Israel com o regime de minoria branca sul-africano, mas que agora se mostram preocupados por o relatório da Amnistia diminuir o sofrimento dos negros africanos sob o apartheid”, anotou Chris McGreal, antigo correspondente do diário britânico The Guardian em Joanesburgo e Jerusalém.

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Muitos judeus israelitas – como os antigos primeiros-ministros Ehud Barak e Ehud Olmert, o ex-chefe dos serviços segurança interna Amy Ayalon, o ex-embaixador de Israel em Pretória Alon Liel, ou os ex-ministros da Educação Yossi Sarid e Shulamit Aloni – compararam publicamente a ocupação dos territórios palestinianos ao apartheid.
“Serão eles anti-semitas que odeiam Israel?”, pergunta McGreal, citando um artigo que um dos maiores escritores israelitas, A. B, Yehoshua, publicou em 2020: “O cancro de hoje é o apartheid na Cisjordânia. Este apartheid enraíza-se cada vez mais na sociedade israelita, com impacto sobre a humanidade de Israel.”
A Amnistia “gerou um debate mais intenso sobre o uso da palavra apartheid do que sobre a substância do [seu] relatório, mas a verdade inegável é que judeus israelitas e árabes palestinianos não têm direitos iguais”, escreveu no diário The Jerusalem Post o activista Gershon Baskin, que tem dedicado a vida a promover a coexistência pacífica entre os dois povos. “Cinquenta anos após a Guerra dos Seis Dias (1967), temos um controlo israelita sobre uma realidade binacional que representa uma nova forma de apartheid.”
“O Governo de Bennett-Lapid não se compromete em negociar com os palestinianos”, lamenta Baskin. “Os palestinianos não conseguem convencer a comunidade internacional a forçar ambas as partes a negociar. A Administração Biden não tem interesse em liderar um processo de paz, que também seduz poucos na região.”
“O relatório da Amnistia poderá vir a ser a plataforma de lançamento para uma acção global contra Israel, tal como outros relatórios semelhantes geraram boicotes por todo o mundo contra o apartheid sul-africano. As tentativas israelitas de se desviarem com alegações de anti-semitismo não mudarão a realidade no terreno entre o rio [Jordão] e o mar [Mediterrâneo]. O relatório é um espelho da realidade e mesmo que o Governo israelita o rejeite, esta é a nossa realidade.”
Um regime de “supremacia judaica”

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Mais de 14 milhões de pessoas vivem entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, estima a organização israelita de direitos humanos B’Tselem, num relatório divulgado em Janeiro de 2021 no qual denuncia “leis, práticas e violência destinadas a cimentar um “regime de supremacia judaica” sobre os palestinianos nos territórios sob controlo de Israel.
Dos 9,45 milhões de habitantes do Estado de Israel, 17% são árabes palestinianos. O facto de terem cidadania israelita “dá-lhes alguns direitos, mas não os mesmos que os judeus israelitas, seja na lei como na prática”.
Cerca de 350 mil palestinianos vivem em Jerusalém Leste, sector que Israel anexou ao seu território soberano após a guerra de 1967 e que os palestinianos consideram capital de um futuro Estado. São definidos como “residentes permanentes – um estatuto que lhes permite viver e trabalhar em Israel, sem necessidade de autorizações especiais, para poderem aceder a benefícios sociais ou seguros de saúde, e também participar em eleições municipais.”
O problema é que “a residência permanente, ao contrário da cidadania, pode ser revogada a qualquer momento, dependendo da vontade do ministério da Administração Interna; e também pode expirar.”

© Emmanuel Dunand | AFP | Getty Images | Middle East Monitor
Quanto à Cisjordânia, embora ocupada, mas não formalmente anexada, vivem aqui 2,8 milhões de palestinianos, em “dezenas de enclaves descontínuos, sob rígido poder militar e sem direitos políticos”. Em cerca de 40% do território, Israel transferiu alguns poderes civis para a Autoridade Palestiniana, mas esta “mantém-se subordinada a Israel e só pode exercer competências limitadas com autorização de Israel”. Desde 1967, instalaram-se em Jerusalém Leste cerca de 200 mil colonos judeus e uns 475 mil na Cisjordânia. A lei internacional considera ilegais todos os colonatos.
A Faixa de Gaza é habitada por cerca de dois milhões de palestinianos, igualmente sem direitos políticos. Em 2005, Israel retirou daqui as suas tropas e desmantelou os colonatos, mas, dois anos depois, quando o movimento islamista Hamas tomou o poder, Israel impôs um bloqueio, por terra, mar e ar, que continua em vigor. “De fora, Israel controla praticamente todos os aspectos da vida em Gaza”, salienta a ONG fundada em 1989.
“O regime israelita não tem de se declarar um regime de apartheid para se definir como tal, nem é relevante que os representantes do Estado o proclamem uma democracia”, conclui o B’Tselem, recordando que, em 2018, uma controversa “Lei do Estado-Nação” conferiu ao povo judeu “o direito à autodeterminação, em detrimento de todos os outros”. Com esta lei, a “supremacia judaica é agora um princípio constitucional obrigatório.”
“Um crime contra a humanidade”

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A palavra apartheid, que nos idiomas africâner e neerlandês significa “separação”, tornou-se num regime maldito quando a África do Sul o implantou em 1948, com base em leis e políticas que, desde o século XVII, segregavam e discriminavam a maioria negra, privilegiando a minoria branca. Esta detinha o direito exclusivo ao voto e todo o poder político e económico.
Até ser desmantelado em 1994, este sistema assentava em três leis: o Black Land Act (1913), que atribuía aos negros apenas 7% das terras, embora constituíssem 75% da população total; o Native Urban Act (1923), que empurrava os negros e outros não brancos para townships e bantustões, em condições degradantes, na periferia das cidades, proibindo-os de aceder às áreas exclusivas dos brancos (Whites Only); e o Immorality Act (1927), que punia com prisão os casamentos e relações sexuais entre brancos e não brancos.
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD, na sigla inglesa), aprovada em 1965 pela Assembleia Geral da Nações Unidas foi o primeiro instrumento legal de direitos humanos a proscrever o apartheid. Sem o definir, condenava as “políticas governamentais baseadas na superioridade racial ou no ódio, como as políticas de segregação ou separação”.
Actualmente, são três os principais tratados internacionais que proíbem e/ou criminalizam explicitamente o apartheid: a ICERD, a Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid (vulgarmente conhecida como Convenção do Apartheid) e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (ou apenas Estatuto de Roma).

© Ernest Cole | Magnum Photos
Para a Amnistia Internacional, “o ponto de partida para uma definição do apartheid” é o Artigo II da Convenção do Apartheid, que diz: “(…) o termo ‘crime de apartheid’ que deve incluir políticas de segregação racial e discriminação semelhantes às que eram praticadas na África do Sul, deve aplicar-se a todos os actos inumanos cometidos com o objectivo de estabelecer e manter o domínio de um grupo racial de pessoas sobre outro grupo racial de pessoas e de os sistematicamente oprimir…”
Abrindo o seu relatório com uma declaração do ex-primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu – Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos… [mas] o Estado-nação do povo judeu e só dele -, a Amnistia concluiu, depois de quatro anos de investigação, que no país criado em 1948, ironicamente o ano em que a África do Sul instituiu o seu sistema de segregação racial, os palestinianos têm sido vítimas de apartheid: “uma grave violação dos direitos humanos protegidos internacionalmente e um crime contra a humanidade, segundo a lei penal internacional”.

© Times of Israel
Estes artigos foram publicados originalmente na edição de Março de 2022 da revista ALÉM-MAR | These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, March 2022 edition