Com mais de metade da população em pobreza extrema e um milhão de crianças em risco de morrer desnutridas, o Afeganistão, reconquistado pelos taliban após 20 anos de guerra, enfrenta o que poderá ser, sem ajuda, a pior catástrofe humana de sempre. (Ler mais | Read more...)

© Jim Huylebroek | The New York Times
No início do ano, em apenas uma semana, Matiullah Wesa percorreu 20 das 34 províncias do Afeganistão, das cidades às aldeias mais longínquas, para avaliar o que podia fazer pelo seu povo. O que viu partiu-lhe o coração.
“Há famílias, muitas com 10-12 filhos, que nada têm na mesa ao jantar ou comem um pão por dia”, relata Matiullah, numa entrevista que me deu, por WhatsApp. “São poucos, mas alguns pais vendem bebés para conseguir sustento. Sem roupa ou calçado, eletricidade ou lenha para aquecimento, há quem morra de frio.”
“Milhares de homens e mulheres, sobretudo os que trabalhavam em ministérios, escolas e hospitais públicos ou na polícia, não têm salário porque perderam os empregos. Muitas lojas e empresas também fecharam. Os bancos restringem o levantamento de dinheiro. Várias ONG que ofereciam assistência partiram.”
Com uma seca extrema, que desde Outubro de 2020 afecta mais de 80% do território, e temperaturas de 20 graus negativos em algumas áreas, a situação é dramática num país onde 70% dos quase 39 milhões de habitantes vive em zonas rurais e 85% do rendimento provém da agricultura.

©Jim Huylebroek | The New York Times
Cerca de 22,8 milhões de pessoas enfrentam “níveis extremos de fome”, segundo as Nações Unidas, que temem a maior catástrofe humanitária de sempre. “Só 2% da população tem o suficiente para comer”. Até meados deste ano, a taxa de pobreza poderá elevar-se aos 97%. “Mais de 1 milhão de crianças com menos de 5 anos correm o risco de morrer desnutridas.”
Os mais ameaçados, testemunham os Médicos Sem fronteiras (MSF), são os recém-nascidos, até aos 6 meses. Em algumas clínicas, uma em cada cinco crianças ali internada não sobrevive. Na província de Herat, por exemplo, as taxas de mortalidade infantil ligadas à desnutrição chegam a atingir 15%.
“Sem chuva, sem água, não podemos produzir nada”, lastima-se Matiullah Wesa. Os que, como os seus familiares, “exportavam frutos secos, para o Irão, Índia ou Paquistão, deixaram de o fazer porque se fecharam as fronteiras”, desde que, em Agosto de 2021, após 20 anos de um conflito que matou mais de 200 mil pessoas – quase 50 mil das quais civis –, regressou ao poder “um regime [dos taliban] que não sabe governar”.
Para muitos afegãos, Matiullah Wesa é um herói. Em 2004, a escola que o seu pai, um respeitado chefe tribal, abriu em Maruf, a terra-natal na província de Kandahar, foi atacada por combatentes taliban, que não hesitaram em “apontar armas à cabeça dos professores”.

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Com os “sonhos destruídos”, a casa incendiada e ameaçados de morte, Matiullah e a família foram obrigados a mudar-se para o distrito vizinho de Spin Boldak e depois para Cabul.
Foi na capital, onde ele os nove irmãos continuaram os estudos que Matiullah teve a ideia de criar uma organização não governamental que reerguesse as escolas arrasadas e proibidas pelos seguidores da rígida doutrina deobandita e das mais conservadoras tradições pashtun.
Em 2009, o estudante que haveria de se formar em Ciência Política e Direitos Humanos em duas universidades indianas fundou a Pen Path (Caminho da Caneta). Desde então, levantou do chão mais de 100 escolas e construiu de raiz outras 46 onde não havia nenhuma, abrindo portas a quase 60 mil crianças, rapazes e raparigas.
Foram também criadas 38 bibliotecas, onde se encontram livros infantis e religiosos, de gramática e de línguas, romance e poesia. Centenas de jovens beneficiam hoje de cursos de alfabetização e bolsas de estudo. Recebem gratuitamente mochilas coloridas, manuais, cadernos, lápis, e até cadeiras de rodas para que portadores de deficiência acedam ao que Matiullah não se cansa de designar por “um direito básico, um direito humano, um direito islâmico”.

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Com a necessária bênção de líderes tribais e religiosos, que ajudam a convencer pais relutantes, os 2300 voluntários da Pen Path, 400 dos quais mulheres, andam por todo o país, e não só ensinando a ler e a escrever. Cuidam da saúde física e mental dos que se cruzam no seu caminho.
Promovem direitos básicos, pregando “contra a discriminação e a violência, contra a exploração infantil [pelo menos ¼ das crianças afegãs entre os 5 e os 14 anos trabalham ou mendigam nas ruas] e contra o tráfico de drogas” (que representa 60% das receitas dos talibãs).
Porque as raparigas voltaram a ser proibidas de frequentar o ensino secundário e a universidade desde que o Afeganistão caiu de novo sob o controlo dos taliban, Matiullah Wesa redobrou os esforços para garantir que o seu trabalho continuará a dar frutos.
“Temos agora 29 escolas secretas para meninas em aldeias remotas”, anuncia ele, orgulhoso, na entrevista que me deu. “Algumas destas áreas nunca tiveram uma escola nos últimos 20 anos. As crianças e as suas famílias estão felizes pela oportunidade que lhes damos.” [Matiullah criou, entretanto, escolas-bibliotecas móveis que percorrem as zonas mais remotas, sempre correndo riscos de vida.]

© Jim Huylebroek | The New York Times
Com milhões de pessoas desesperadas, a enfrentar o dilema “morrer de fome ou de frio”, a educação não fica para trás? “A nossa campanha é agora também humanitária”, esclarece Matiullah. “A nossa nação precisa de nós mais do que nunca. Temos de erradicar a pobreza. Apoiamos os professores que ficaram sem salário, oferecemos comida e vestuário, mas não abdicamos de, ao mesmo tempo, reabrir as escolas.”
Mais tarde, no Twitter, Matiullah acrescentaria: “Sempre que entrego um livro a uma criança e alimentos a uma família, sinto-me realizado. Posso dormir em paz à noite. Ganho energia para batalhar ainda mais.”
Nas redes sociais, o popular educador Matiullah vai detalhando a sua missão, levada a cabo graças a muitos benfeitores afegãos, dentro e fora do país. O seu papel, ainda que crucial e reconhecido, não é suficiente, e ele exige responsabilidades à comunidade internacional. “Os Estados Unidos, a Europa e o Reino Unido têm a obrigação de nos auxiliar.
Em 2001, vieram para cá [com milhares de soldados, como represália pelos ataques terroristas de 11 de Setembro cometidos pela Al-Qaeda, hóspede e patrono dos taliban], mas, depois de 20 anos de destruição, foram-se embora. Sentimo-nos isolados. Precisamos que apoiem o nosso povo, os nossos professores, a nossa agricultura.”
Matiullah repete que não tem medo de desafiar as autoridades e que não tenciona desistir. “A guerra, as minas [nas estradas provinciais que diariamente percorre], as ameaças não interrompem a minha luta”, assegura. “Sou independente. Nunca trabalhei para nenhum governo em Cabul. Tenho uma rede ampla de contactos que, espero, possa também funcionar como rede de segurança pessoal. Não abandonarei a minha pátria.”

© Victor J. Blue | The New York Times
Nas últimas duas décadas, o orçamento de Estado do Afeganistão dependia em cerca de 80% de contribuições financeiras do estrangeiro. A ajuda internacional representava 40% do produto interno bruto (PIB). Cerca de 90% da população – três milhões são deslocados internos que vivem em condições desumanas nos arredores das cidades, em parques e outros espaços abertos onde improvisam abrigos – depende da ajuda externa.
A guerra, a corrupção (o anterior presidente terá esvaziado os cofres antes de fugir do país), a pandemia de Covid-19, a seca prolongada, as sanções internacionais (só a Reserva Federal dos EUA congelou fundos no valor de 7000 milhões de dólares), o desemprego galopante, a implosão de preços de alimentos e combustíveis, a violência que persiste (confrontos, raptos e execuções extrajudiciais), a miséria exacerbada pelo vício das drogas (há um milhão de toxicodependentes num país que produz anualmente 4000 toneladas de ópio – a base da heroína), tudo contribui para dilacerar a sociedade afegã.
O Programa de Desenvolvimento da ONU alertou que, até meados deste ano, 97% dos afegãos poderão estar abaixo do nível de pobreza. O rendimento per capita, que era de 408 dólares em 2020, deverá baixar para 350 em 2022. Economistas ouvidos pela agência Reuters prevêem que vai ser necessário pelo menos 2000 milhões de dólares (1750 milhões de euros) “só para retirar as pessoas da pobreza extrema para a linha de pobreza”.
Em Janeiro, as Nações Unidas apelaram a um auxílio urgente de 5000 milhões de dólares (cerca de 4 mil milhões de euros) – a maior quantia jamais pedida pela organização para um único país. Cerca de 4400 milhões destinam-se a ajudar os que vivem no Afeganistão, sendo o restante para distribuir por milhões de outros cidadãos que se refugiaram nos países vizinhos, como o Paquistão e o Irão. “Sem estes fundos, não haverá futuro”, avisou o coordenador da ajuda de emergência, Martin Griffiths, citado pelo jornal The Washington Post.

© Wakil Kohsar | AFP | Getty Images | VOX
“O Afeganistão enfrenta um tsunami de fome”, alertou, por seu turno, Mary-Ellen McGroasrty, responsável do Programa Alimentar Mundial (PAM), em entrevista à Associated Press (AP). Numa recente visita à província de Badakhshan, no Nordeste, camponeses que ela encontrou queixaram-se de que já passaram por 19 governos, mas nunca se depararam com uma provação tão grande.
“Jamais tiveram de estar numa fila, de mão estendida, à espera de comida”, contou McGroasrty. “Alguns disseram que a fome, hoje, é pior do que as várias guerras das últimas cinco décadas. Conseguem imaginar não poderem alimentar nem aquecer os vossos filhos? É um sofrimento inimaginável. Muitos afegãos enfrentam uma de duas escolhas: ou morrem de fome ou deixam o país.”
As taxas de desnutrição duplicam de semana para semana. Crianças em pele e osso chegam todos os dias aos hospitais. Em algumas maternidades, enfermeiras dizem que só têm um aquecedor portátil e que, por vezes, colocam três bebés numa incubadora, porque não têm equipamento suficiente para cuidar deles.
O sistema de saúde, que era financiado em 75% pelo Banco Mundial, entrou em colapso. Só cinco unidades hospitalares, com um número de camas reduzido e sem condições, oferecem tratamento para a Covid-19, depois de 33 terem sido obrigadas a encerrar nos últimos meses, por falta de médicos e medicamentos, constatou a AP.

© Kiana Hayeri | The New York Times
Numa modesta padaria de Cabul, uma mulher identificada pelo repórter da agência France-Presse como Muhajira Amanallah, revela que todos os dias, sob um frio intenso, a sua família espera horas numa fila para comprar pão. “Se não houver, vamos para a cama com fome. Até pensei em vender as minhas filhas, mas caí em mim e entreguei-me a Deus”.
Na mesma fila, outra mulher, Nouriya, mãe de cinco crianças, descreve a alimentação diária: “Comemos sopa de nabos e cenouras, a que juntamos pedacinhos de pão. Não há carne.” O dono da padaria, Makram El-Din, está consciente das dificuldades dos clientes: “A maioria das pessoas perdeu o salário. Costumávamos usar quatro sacos de farinha por dia, mas agora gastamos apenas um e meio.”
“É uma corrida contra o tempo”, enfatiza Shelley Thakral, porta-voz do PAM em Cabul, em declarações ao site The Diplomat. “Temos de chegar rapidamente às pessoas nas zonas mais duras e inacessíveis. É o inverno, é o frio, é a neve. O custo da ajuda humanitária, só para este ano, foi estimado em 260 mil milhões de dólares. Se parcelarmos esta quantia, teremos 220 milhões por mês, ou seja, 30 cêntimos por pessoa e por dia. É isto o que pedimos.”

© Cortesia de | Courtesy of Matiullah Wesa | Pen Path
Este artigo foi publicado originalmente na edição de Março de 2022 da revista ALÉM-MAR | This article was originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, March 2022 edition