“O futuro da Índia é extremamente sombrio”

Os cristãos e outras minorias na “maior democracia do mundo” estão à mercê de uma ideologia que se “inspira no nazismo, no fascismo e no apartheid”, diz sem rodeios o padre jesuíta Cedric Prakash, um dos mais importantes e incómodos activistas do país. Antes, durante e depois do Natal, foram muitos os ataques de hindus extremistas a fiéis e templos católicos. A violência tem vindo a aumentar desde 1998, ano em que o BJP, de Narendra Modi, ascendeu ao poder.   (Ler mais | Read more…)

Aldeões rezam em segredo em Bihar, na Índia, depois de uma onda de violência contra as suas igrejas
© Atul Loke | The New York Times

Cedric Prakash, padre da Província de Gujarat da Sociedade de Jesus, é um dos mais reconhecidos activistas na defesa dos direitos humanos, justiça, reconciliação e paz na Índia. Por se insurgir contra os poderosos em defesa dos marginalizados, foi espancado e recebeu ameaças de morte.

O seu escritório foi assaltado, tentaram confiscar-lhe o passaporte. Embora “o ódio e o veneno” o atormentem diariamente, ele insiste em ser uma “pessoa positiva”. A dedicação a causas nobres levou a França a distingui-lo com a sua mais alta condecoração, a Legião de Honra, em 2006.

A Harmony Foundation atribuiu-lhe o Prémio Internacional Madre Teresa para a Justiça Social, em 2013. O Centro Tanenbaum para o Entendimento Religioso em Nova Iorque colocou-o na lista dos dez maiores Peacemakers in Action do Mundo, em 2010.

O Conselho Muçulmano Indiano deu-lhe o Prémio Rafi Ahmed Kidwai, em 2003. Da Comissão das Minorias de Deli recebeu um Lifetime Achievement Award, em 2020. E, em 2021, a Associação da Imprensa Católica Indiana galardoou-o com o importante prémio Luis Carreño (1) de Excelência em Jornalismo, pelos seus “artigos proféticos” contra o fundamentalismo que ameaça o Estado secular e democrático onde nasceu há 70 anos.

Em 1995, por promover a harmonia entre comunidades, também o então presidente da Índia lhe ofereceu o prestigiado Prémio Kabir Puraskar. No entanto, quando a harmonia se rompeu em 1998 – ano em que o partido ultranacionalista hindu BJP (Bharatiya Janata Party) ascendeu ao poder -, depois de uma série de actos de violência contra cristãos em Gujarat, Cedric Prakash tornou-se num dos maiores críticos do actual primeiro-ministro, Narendra Modi.

Horário das orações afixado numa casa em Bilawar Kalan, no estado indiano de Madhya Pradesh, onde os habitantes foram ameaçados com o pagamento de multas se acolhessem cristãos nos seus lares
© Atul Loke | The New York Times

Em 1998, durante dez dias, centenas de ataques por parte de bandos extremistas visaram o distrito tribal e pobre de Dangs, onde muitos habitantes aceitaram o Cristianismo pregado por missionários que, a partir do século XX, começaram a desenvolver a região.

Segundo a organização não governamental Human Rights Watch, que acusou de envolvimento agentes da polícia e responsáveis do estado, dezenas de igrejas e salas de oração foram destruídas ou incendiadas, assim como escolas e lojas. Numerosas pessoas foram agredidas nas suas próprias casas, insultadas e humilhadas nas ruas.

Em 2002, Gujarat viveu dias ainda mais sangrentos. Em 27 de Fevereiro, depois de um incêndio num comboio ter causado a morte de 50 peregrinos hindus, seguiu-se uma vaga de tumultos do qual resultaram, segundo dados oficiais, quase 2000 mortos (790 dos quais muçulmanos – o alvo principal dos atacantes), 2500 feridos e 223 desaparecidos.

Na altura, quem governava Gujarat era Modi, que foi acusado, mas dez anos depois absolvido pelo Supremo Tribunal de ter “iniciado e encorajado um pogrom”.

Cedric Prakash, residente em Ahmedabad, a maior cidade de Gujarat, passou a ser um dos mais ardentes defensores das “vítimas das forças fundamentalistas que levaram a cabo a carnificina”, participando em várias campanhas pelos direitos dos que sobreviveram, em conjunto com diversos grupos, em particular, o Citizens for Justice and Peace, do qual é membro da direcção.

Mulheres cristãs participam numa reunião secreta de oração na casa de um aldeão no estado de Madhya Pradesh
© Atul Loke | The New York Times

Em Junho de 2002, o jesuíta Prakash testemunhou perante a Comissão dos Estados Unidos para a Liberdade Religiosa Internacional (USCIRF), em Washington, sobre a realidade dos muçulmanos em Gujarat. O seu depoimento terá sido fundamental para que, três anos, depois, tivesse sido negado um visto diplomático a Modi para entrar na América.

Nos seus artigos, publicados em várias revistas nacionais e internacionais, Prakash não tem medo de afrontar Narendra Modi, denunciando um projeto que, em seu entender, “rouba a alma da Índia, ao reduzir a cada dia que passa os valores e os direitos consagrados pela Constituição”.

Uma das iniciativas mais recentes de Prakash foi a campanha pela libertação do também padre jesuíta e defensor dos direitos tribais Stan Swamy, um compatriota detido em Outubro de 2020 sob a acusação de terrorismo e de ser um “simpatizante maoísta” do Partido Comunista da Índia.

A prisão de Swamy gerou protestos por todo o país. Gravemente doente, com Parkinson e Covid-19, morreu a 5 de julho de 2021, num hospital para onde, entretanto, fora transferido.

Cedric Prakash está agora mais do que nunca empenhado na “Campanha Nacional para Defender a Democracia”, pela revogação imediata da chamado Unlawful Activities Prevention Act (UAPA), que permitiu o encarceramento de Swamy, e de outras “leis draconianas que têm tido um impacto prejudicial sobre as vidas dos pobres, excluídos e explorados da Índia”.

De 2016 a 2018, Prakash esteve em Beirute, Líbano, como conselheiro do Serviço Jesuíta aos Refugiados (Região do Médio Oriente e Norte de África), onde dirigiu um estudo pioneiro sobre a situação dos sírios que fugiram da guerra que se tornou num instrumento de aprendizagem para as agências das Nações Unidas e grupos da sociedade civil que lidam com migrações.

Os cristãos na Índia são constantemente ameaçados e perseguidos por hindus extremistas, muitos deles ligados ao BJP, partido do primeiro-ministro, Narendra Modi
© Atul Loke | The New York Times

Em 2018, a pedido do Papa Francisco, a editora Loyola Press, de Chicago, publicou o livro Sharing the Wisdom of Time, para o qual contribuíram 31 “sábios”, entre os 65 e os 100 anos, que partilham as suas memórias sobre trabalho, luta, amor, morte e esperança.

“A história do Padre Cedric é maravilhosa”, escreveu o Pontífice. “Ajuda-nos a compreender que devemos ultrapassar as inconveniências da vida… talvez com sentido de humor, e certamente com a convicção de que todos os problemas podem ser resolvidos.”

“A sabedoria da idade, acompanhada do sentido de humor e de um toque de ironia, podem ajudar-nos a olhar para os nossos desafios diários de uma maneira positiva e evitar a dramatização. Temos de olhar para as coisas de uma maneira nova e criativa. O amor é criativo.”

Cedric Prakash continua a ser um generoso facilitador e orador cuja voz é procurada e escutada sobre temas sociais críticos. Deu-me esta entrevista por e-mail.

Um momento de oração em Bihar, onde supremacistas ligados ao BJP aproveitaram uma nova lei contra as conversões, para proibir aos cristãos o acesso aos poços desta aldeia de Madhya Pradesh e visitas às casas de vizinhos hindus
© Atul Loke | The New York Times

Um relatório da organização inter-denominacional indiana Persecution Relief refere que, entre 2016 e 2019, “os crimes contra cristãos na Índia aumentaram 60%”. Em 2021, “sobretudo antes, durante e depois do Natal”, segundo a sua própria estimativa, “registaram-se mais de 300 ataques” em várias regiões do país. Que ataques são estes e por que estão a aumentar?

Sim, é verdade que os crimes contra a minúscula comunidade cristã têm aumentado dramaticamente desde 2019 e, em particular, em 2021. Fomos testemunhas de vários desses ataques em Dezembro: antes do Natal, durante o Natal e no dia imediatamente a seguir!

Os ataques incluíram interromper e mandar parar, usando força bruta, cerimónias de oração e celebração natalícias, protestos ruidosos junto de igrejas contra o que eles [extremistas] chamam de ‘conversões forçadas’, profanação e vandalização de imagens e outros objetos do Cristianismo, ameaças, assédio e discursos de ódio contra cristãos e outras minorias. E muito mais! Infelizmente, tudo isto ocorre com a conivência da polícia e das autoridades locais.

Os perpetradores sabem muito bem que tudo o que façam, com impunidade e o apoio dos media, terá imunidade assegurada por parte dos poderosos deste país. Os ataques são cometidos, na sua maioria, nos estados governados pelo BJP [que controla 31 assembleias legislativas], como Uttar Pradesh, Karnataka, Madhya Pradesh ou Haryana.

Uma família cristã na aldeia de Bihar, estado de Madhya Pradesh, que tem sido perseguida por extremistas
© Atul Loke | The New York Times

Nos parlamentos destes estados, além das ameaças e intimidação por parte de indivíduos, estão também a ser aprovadas leis contra “conversões forçadas” – em Karnataka, por exemplo, a lei prevê condenação até dez anos de cadeia. Numa nação onde, segundo as suas palavras, “o Hinduísmo prega a tolerância e Constituição consagra a pluralidade”, como é que explica esta crescente hostilidade para com uma minoria que representa pouco mais de 2% dos 1400 milhões de habitantes da Índia?

Os cristãos na Índia NÃO constituem, de modo algum, ameaça para ninguém! Na realidade, segundo o último recenseamento oficial, a percentagem da população cristã diminuiu na India. Os dados podem ser vistos por TODOS.

As leis anti-conversão que estão a ser aprovadas pelos estados governados pelo BJP são um acto patético, inconstitucional e não democrático para denegrir os cristãos com o ‘fantasma’ das ‘conversões forçadas’; para polarizar a maioria hindu com o recurso a medos infundados e ilegítimos; e, acima de tudo, para avançar em direcção ao principal objetivo: a criação de um Estado baseado na ideologia ‘Hindutva’, que é fascista e raivosa por natureza.

Esta ideologia nada tem a ver com o Hinduísmo. Inspira-se no nazismo, no fascismo e no apartheid. Os principais proponentes pertencem aoRashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), uma organização ultranacionalista, que nunca trabalhou pela libertação da Índia [do colonialismo britânico] e que foi responsável pela morte de Mahatma Gandhi. A maioria dos que hoje governam a Índia é membro do RSS.

Um dos alvos dos hindus extremistas foi a congregação Missionárias da Caridade fundada por Madre Teresa de Calcutá, que oferece assistência aos mais pobres e vulneráveis da Índia
© Bikas Das | AP | VoA

Um dos alvos na campanha contra as conversões foi a congregação Missionárias da Caridade (MC), fundada em 1950 por Madre Teresa, que no dia de Natal viu todas as suas contas congeladas e foi proibida de continuar a receber donativos do estrangeiro para financiar os seus orfanatos e abrigos. Como interpreta esta decisão (entretanto revogada a 8 de Janeiro)?

A Madre Teresa é um dos maiores ícones da Igreja Católica (particularmente na Índia) do último século. Demonizar as Missionárias da Caridade, destruí-las totalmente, parece ser uma estratégia clara dos extremistas Hindutva. Eles esperam, suponho eu, o colapso do Cristianismo se conseguirem destruir as MC. Mas isso é ilusório!

Uma sondagem do Pew Research Center, publicada em Junho de 2021, concluiu que, “apesar de partilharem alguns valores e crenças (…), os membros das maiores comunidades religiosas da Índia não sentem, de um modo geral, que tenham muito em comum”. Mais: embora, “exprimam entusiasmo pela tolerância religiosas”, também demonstram “preferência consistente em manter as suas comunidades segregadas – vivem juntos separadamente”.  É também esta a sua percepção? Como é que caracteriza os católicos da Índia e a sua relação com outras comunidades religiosas?

Tudo isso é verdadeiro! Não era tão evidente até à década de 1990 – quando éramos mais inclusivos. Durante a minha infância e enquanto estudante, fui criado num ambiente multicultural e multi-religioso. Não só respeitávamos a religião dos outros, mas também celebrávamos juntos as festas dos outros. Com a emergência dos elementos Hindutva, a situação mudou muito!

Assim que eles tomaram o poder, os cristãos em várias regiões preferiram manter-se isolados – esta é uma questão séria, porque se tornou muito mais fácil às forças hostis à ideia de uma Índia pluralista serem bem-sucedidas nos seus desígnios nefastos e, em última análise, cumprirem a sua agenda.

Infelizmente, a Igreja Católica na Índia entrega-se ao simbolismo e não tem feito esforços suficientes para se envolver num diálogo inter-religioso e numa acção de bases. Não temos sido capazes de cumprir o sonho do Vaticano II de uma Igreja presente para todos!

O telhado danificado de um templo cristão numa aldeia de Madhya Pradesh, depois de um ataque de hindus extremistas, com a ajuda de agentes da polícia local
© Atul Loke | The New York Times

Pode explicar melhor esta sua crítica à Igreja, que, na sua opinião ‘tem estado (salvo poucas excepções) oficialmente muito silenciosa’?

Sim, espero que a Igreja oficial, como o Papa Francisco nos recorda constantemente. ‘eleve uma voz profética’ sempre que houver tentativas de destruir a santidade da nossa Constituição ou de atacar e perseguir as minorias (cristãos, muçulmanos, sikhs, etc.), os Adivasis [tribos, povos indígenas] e os Dalits [os que ocupam o último lugar do sistema de castas, outrora tratados pejorativamente por “intocáveis’”], os camponeses e os trabalhadores migrantes, ou tentativas de atacar o ambiente.

Isto NÃO aconteceu. Lamentavelmente, a Igreja Católica na Índia tem muito medo de perder os seus privilégios e bens, e muito medo dos escândalos em que muitos dos seus funcionários estão envolvidos. Só Deus sabe por que se calam [os responsáveis]!

Mas, se acham que isto é uma tática dita ‘diplomática’, gostaria de lhes lembrar que Jesus nunca foi diplomata, que acreditou na Verdade e na Justiça, que se revoltou contra o Herodes e o Pilatos do seu tempo!

Encontro entre o Papa Francisco e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, no Vaticano, em 30 de Outubro de 2021
©CNS | Vatican Media

Em 2021, depois do seu primeiro encontro, Modi convidou o Papa Francisco a visitar a Índia. Se essa visita se realizar, o que espera dela?

Bem, isso terá várias dimensões!!! O Governo da Índia não emitiu nenhum comunicado oficial em relação a uma eventual visita, depois de um sonoro convite pessoal; além disso, o comunicado do Vaticano também não fez qualquer referência a uma visita.

Enfim, pelo menos em 2022, uma tal visita estará fora de questão., porque parece que as viagens do Papa ao estrangeiro para este ano já foram organizadas. Eu adoraria, com toda a certeza, que o Papa Francisco viesse á Índia.

Quando me encontrei com ele, no Vaticano, em Dezembro de 2019, perguntei-lhe sobre essa possibilidade, e ele respondeu que também adoraria fazer a visita.

Ninguém sabe se irá concretizar-se. Contudo, se e quando ele vier, espero e rezo que não só se sinta seguro aqui, mas que a Igreja da Índia não o impeça de abrir o seu coração e falar fracamente sobre o que se passa no nosso país – principalmente sobre a liberdade religiosa!

“Gostaria de lembrar que Jesus nunca foi diplomata, que acreditou na Verdade e na Justiça, que se revoltou contra o Herodes e o Pilatos do seu tempo”, diz o padre Cedric Prakash
© Aleteia

Diz-se que Narendra Modi culpa Cedric Prakash por lhe ter sido negado um visto diplomático para entrar nos EUA em 2005, depois do seu testemunho perante uma comissão de liberdade religiosa sobre o massacre de Gujarat em 2002. Hoje em dia, porém, o primeiro-ministro indiano é acolhido com passadeira vermelha pelos líderes mundiais, apesar do seu brutal autoritarismo. Como explica esta mudança de atitudes? Como vê o futuro da Índia se ele permanecer no poder (apesar da sua desastrosa política em relação à covid-19, continua um líder popular, sem uma oposição forte)?

Seria pura arrogância da minha parte pensar que SÓ por minha causa e pelo meu testemunho perante a USCIRF é que Modi viu negado o seu visto para os EUA. A verdade é que isso resultou dos esforços de muitas coligações, grupos e indivíduos, que apresentaram provas convincentes para que o visto não fosse atribuído. Mas sim, desempenhei [nesse processo] um pequeno papel!

Assim que ele foi eleito chefe do Governo [central], a Administração americana não tinha alternativa se não oferecer-lhe o necessário protocolo. No entanto, na sua última visita aos EUA, ao contrário do que aconteceu sob o regime de Trump, não lhe estenderam a passadeira vermelha! Sob a sua liderança, o futuro da Índia é extremamente sombrio!

Ele é extremamente autocrático, por natureza, e quanto mais tempo ficar no comando, mais o tecido democrático do país se vai sendo destruindo. A Índia precisa urgentemente de líderes visionários, sagazes, honestos, inclusivos e compassivos. Agora! Isto, se queremos preservar e promover os valores consagrados na Constituição.

* O salesiano espanhol José Luis Carreño Echandía (Bilbau Biscaia, 1905- Pamplona, Navarra, 1986), padre, poeta, escritor e músico, é considerado “o maior missionário da Índia e das Filipinas”, onde fundou vários seminários e escolas.

Cedric Prakash, padre da Província de Gujarat da Sociedade de Jesus, é um dos mais reconhecidos activistas na defesa dos direitos humanos, justiça, reconciliação e paz na Índia
© Indian Catholic Matters

A fé de Devendra e Dayyakar

As notícias que Devendra Bhuriya, reitor do antigo Seminário do Verbo Divino e pároco de Tortosendo, na Covilhã, recebeu nos últimos dias da família que ainda tem em Jhabua, cidade do estado de Madhya Pradesh, não o tranquilizam.

“Estávamos a construir uma catedral, mas dois grupos fundamentalistas vieram interromper a obra”, conta-me Bhuriya, por telefone. “Disseram que não tínhamos licença de construção, mas o templo estava quase pronto após um ano e meio de trabalho intenso. O que havemos de fazer, se estes grupos actuam com apoio das autoridades locais?”

Em Jhabua, salienta Bhuriya, 50 anos de idade e 24 a residir em Portugal, ainda não se registaram ataques violentos como os que, no Natal de 2021, vandalizaram e destruíram igrejas, escolas e casas de cristãos noutras povoações de Madhya Pradesh.  

Mas ele não tem dúvidas de que os perpetradores destas acções e os que mandaram parar a construção da catedral estão ligados ao Bharatiya Janata Party (BJP), o partido ultranacionalista hindu do primeiro-ministro, Narendra Modi, e a força dominante naquele que é o segundo maior estado da Índia em termos de área e o quinto maior em termos de população (mais de 72 milhões de habitantes).

Se está preocupado com o presente e o futuro, Bhuriya está igualmente determinado a resistir, tal como a sua tribo, Bhil, um povo indígena da Índia Central convertido ao Cristianismo há mais de 100 anos. “Toda a minha família é cristã”, salienta.  “Um dos meus primos, que morreu de covid recentemente, era bispo. A nossa fé é muito forte. Estamos prontos a morrer por ela. Se nos atacarem, estaremos unidos para nos defendermos.”

Foi o que aconteceu em 2008, o ano em que o BJP chegou ao poder. “Quando [hindus extremistas] tentaram apoderar-se da escola da nossa igreja”, relata Bhuriya. “Saímos à rua com paus, dispostos a matar ou a morrer.”

Tensões comunitárias não faziam parte da infância e adolescência do pároco de Tortosendo. “Cresci a conviver com hindus e muçulmanos”, recorda. “A minha religião não era mais importante do que a dos outros. Havia uma inocência genuína. Olhávamos para os outros como irmãos. Naqueles tempos, ninguém manipulava a religião. A maldade começa na manipulação, que gera todo o tipo de confusões.”

“Lembro-me de experiências bonitas, quando os hindus nos visitavam no dia de Natal e nós participávamos no festival das luzes [Diwali]”, adianta Devendra Bhuriya. “Na escola, rezávamos juntos. Os cristãos por vezes liam um trecho do Corão, os muçulmanos, uma excerto da Bíblia. Isso já não existe.”

Na Índia, existem 645 tribos reconhecidas pela Constituição, como a de Bhuriya. São povos indígenas, muitos dos quais aceitaram o Cristianismo como uma porta para escapar à pobreza e ao abandono. “As escolas dos missionários formaram novas gerações e ensinaram-nas a ser livres e independentes. A educação tornou-nos iguais e deu-nos direitos num país onde ainda existe um sistema de castas.”

Fiéis católicos numa missa celebrada ao ar livre na aldeia de Mitrapur, estado de Bengala Ocidental, em 26 de Fevereiro de 2020
© Zvonimir Atletic | licas.news
Forças paramilitares patrulham as ruas de Imphal, capital do estado de Manipur, no nordeste da índia depois de ataques bombistas, um deles contra uma escola católica
© CNS | Reuters

Por pertencer ao que descreve como uma “casta exclusiva”, Dayyakar Reddy Thumma, pároco de Cabanelas, em Braga, nascido em Hyderabad, cidade do estado Andhra Pradesh, no Sul da Índia, não vive tão angustiado como o compatriota Devendra Bhuriya.

“Os Reddy são uma casta alta, fechada, com poder político e económico”, explica-me Dayyakar, em entrevista por telefone, “Somos uma minoria, mas temos peso na sociedade, ao contrário de outros cristãos. Inicialmente dominávamos a agricultura, mas agora muitos deixaram a Índia, para seguirem sobretudo engenharia informática, da América à Austrália, onde ganham imenso dinheiro e são uma diáspora próspera.”

A proibição de conversão ao Cristianismo agora imposta por lei em vários estados indianos, mas não ainda em Andhra Pradesh, apesar de ser essa a vontade do BJP local, “limita a evangelização, a transmissão da boa-nova”, comenta Dayyakar, que olha para a situação atual como “uma guerra religiosa”.

É por querem “sobreviver” no meio desta guerra, e sobretudo pela “sobrevivência da fé”, que os cristãos Reddy vivem isolados na sua própria aldeia, só acessível à própria casta. “Estudamos nas mesmas escolas – há hindus e muçulmanos nos colégios internos de padres e freiras, vamos às compras juntos, trabalhamos juntos, mas não há casamentos mistos, nem frequentamos as casas uns dos outros.”

“O Sul tem escapado às convulsões”, anota Dayyakar, “mas no Norte há muitos cristãos que estão a ser obrigados a uma ‘reconversão’ ao Hinduísmo. O BJP está a aumentar os ataques, a semear a anarquia. É por isso que preferimos viver num ‘condomínio fechado’, para não perdermos a nossa liberdade religiosa. Sem poder económico, já teríamos sido aniquilados.”

Em Portugal há 19 anos e a dirigir, desde 2013, a paróquia de uma freguesia com 2100 pessoas, “um sítio muito diferente” da terra-natal, o padre formado num seminário do Verbo Divino diz que, devido às perseguições, muitos cristãos do indianos praticam a fé de forma clandestina. “Os extremistas continuam a tentar atacar o nosso ‘castelo’. Não entraram, mas esperam que morramos devagarinho.”

Devotos católicos acendem velas antes de uma missa de celebração do nascimento da Virgem Maria, numa igreja em Hyderabad, em 8 de Setembro de 2011
© Noah Seelam | AFP | Getty Images

A Índia tem uma das maiores populações de cristãos na Ásia, mas os “19.762.000 católicos”, segundo estatísticas da Santa Sé, representam apenas uma pequena minoria (1,6%) numa nação de 1400 milhões de habitantes, maioritariamente hindus (72,5%).

  • “Há 175 circunscrições eclesiásticas dos ritos latino e orientais”, escreve Fernando Altemeyer no site Consolata América. “Existe atualmente o Patriarcado das Índias Orientais, um Arcebispado maior dos Siro-malabares e um Arcebispado maior dos siro-malankares, 25 arquidioceses de rito latino, quatro arquieparquias de ritos orientais, 126 dioceses de rito latino e dezessete eparquias de ritos orientais. O episcopado conta atualmente com 248 bispos, sendo seis cardeais, 48 arcebispos, um núncio apostólico e 193 bispos diocesanos, auxiliares, eparcas e os eméritos.”
  • A evangelização”, adianta Altemeyer, “principia com a chegada do apóstolo São Tomé, no século primeiro, à região de Kerala”, mas o trabalho missionário só “recomeça efetivamente com a chegada dos Portugueses a Goa em 1510”, onde se registará “uma forte presença de religiosos jesuítas, dominicanos, franciscanos, agostinianos”.
  • Em Agosto de 2022, o Papa proclamou o primeiro cardeal-patriarca de Goa, Filipe Neri António Sebastião do Rosário Ferrão, e também o primeiro cardeal Dalit, Anthony Poola, ambos com direito a voto no conclave que nomeará o sucessor de Francisco.
Em Agosto de 2022, o Papa Francisco ofereceu aos cristãos Dalit da Índia o seu primeiro cardeal, Anthony Poola (na foto)
© Mahesh Kumar A. | Associated Press | economictimes.indiatimes.com

Fontes: Union of Catholic Asian News | Pew Research Center | consolata.america.org

Estes artigos, agora actualizados, foram publicados originalmente na edição de Fevereiro de 2022 da revista ALÉM-MAR | These articles, now updated, were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, February 2022 edition

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