Rádios católicas em África: Formar, informar, transformar

São mais de 200, de Angola à Zâmbia*. Chegam a muitos milhões de pessoas. Promovem a paz, os direitos humanos, a educação, a saúde, o desenvolvimento. Tentam curar traumas. Dão voz aos que não têm voz. Às vezes, são silenciadas. Conto aqui três histórias de superação e sucesso: Rádio Sol Mansi, na Guiné-Bissau; Rede de Rádios Católicas do Sudão do Sul e montes Nuba; Projeto Ditunga, na República Democrática do Congo. (Ler mais| Read more…)

Igihozo, 11 anos, escuta atentamente uma aula transmitida pela rádio, depois de a sua escola, no Ruanda, ter sido fechada devido à pandemia de Covid-19. Muitas emissoras católicas foram cruciais neste apoio à educação
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Rádio Sol Mansi

Entre 1998 e 1999, uma guerra civil na Guiné-Bissau “dividiu amigos e familiares”. Vendo que as rádios “foram uma ‘arma’ fundamental” no conflito e que “toda a população escutava ‘religiosamente’ programas com propaganda das partes beligerantes”, o missionário católico italiano Davide Sciocco teve uma ideia: “Se a rádio foi usada para promover a guerra, por que não criar uma rádio para favorecer a paz, a reconciliação e o desenvolvimento?”

Foi assim que, em 14 de Fevereiro de 2001, nasceu a Rádio Sol Mansi (RSM), diz-me, numa entrevista por e-mail, Casimiro Jorge Cajucam, director desde 2016 da estação fundada pelo padre Sciocco e apoiada pelo Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras (Pime) na Guiné-Bissau, aqui presente desde 1947.

Sol Mansi significa ‘Amanhecer’ – amanhecer para um dia melhor, uma nova história, uma nova vida, um novo horizonte”, explica Casimiro Cajucam, um leigo que começou a carreira na rádio como correspondente da sua paróquia, de Cristo Redentor, quando frequentava o terceiro ano da licenciatura em Comunicação Social. Hesitou em assumir a liderança e só a aceitou porque “quando um cristão é chamado a servir não deve dar a luta à costa”.

Num país de maioria muçulmana, como é a Guiné-Bissau, a Rádio Sol Mansi “nunca parou de construir pontes de diálogo com as diferentes religiões e grupos étnicos” (Na foto, uma mesquita na cidade de Bafatá)
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Hoje, segundo um estudo da Universidade Católica de Lisboa conduzido entre 2018 e 2020, “a Rádio Mansi é claramente, sobretudo graças à autoridade da sua informação imparcial, a mais ouvida das 50 emissoras radiofónicas activas na Guiné-Bissau”, destaca o jornal L’Osservatore Romano.

As primeiras emissões da RSM começaram em Mansoa, 60 km a norte de Bissau, a capital, com um pequeno emissor de 250 Watts e um raio de alcance limitado, refere Casimiro Cajucam, que é também correspondente da Rádio Vaticano.

“De início, as pessoas não acreditavam e até gozavam com a iniciativa, porque nada tinha de profissional.” A situação mudou quando um jornalista da Rádio Renascença, a pedido de Sciocco, chegou para dar uma ajuda preciosa.

“Em 2008, a RSM já era a Rádio Nacional da Igreja Católica, com cobertura em todo o território nacional”, regozija-se o director. “O estúdio em Mansoa passou a funcionar como uma rádio-escola, oferecendo semanas de formação prática a todas as 25 rádios comunitárias da Guiné-Bissau – uma média de mais de 50 formandos a cada ano.”

A rádio não é só uma companhia em tempos de solidão, mas um meio de promover a educação, a saúde e a paz num continente onde abundam o sofrimento e as guerras
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Duas décadas após a sua criação, a RSM “é uma das rádios de referência, não só em termos de audiências como de credibilidade”, principalmente porque “nunca parou de construir pontes de diálogo com as diferentes religiões e grupos étnicos” num país onde, segundo o Pew Research Center, 45% dos 1,9 milhões de habitantes são muçulmanos, 31% segue crenças indígenas e 22% são cristãos, diz Casimiro Cajucam.

Em Agosto de 2009, a Rádio Sol Mansi assinou “um acordo histórico de colaboração” com a Rádio Corânica de Mansoa. “Numa particularidade talvez única no mundo, a emissora católica transmite um programa islâmico e a emissora islâmica transmite um programa católico”, salienta Cajucam.

Este diálogo foi acolhido de braços abertos pelas várias denominações religiosas, assim que a rádio abriu portas em Mansoa. A prova de que a coexistência se preserva está no facto de “o programa Voz do Islão e o programa Voz que grita no deserto, da comunidade evangélica, continuarem na grelha de programação e serem os mais antigos da emissora”.

Nenhum tema é tabu para a Rádio Sol Mansi, nem a mutilação genital feminina, um procedimento proibido por lei só em 2011: pelo menos “metade” das mulheres terão sido sujeitas a esta forma de tortura
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Os programas da RSM (um dos mais ouvidos é Dez Minutos com Deus) abordam todos os temas, até os mais delicados, como a mutilação genital feminina, uma prática só punida por lei em 2011. “Sobre este assunto trabalhamos com o Comité Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas”, esclarece o director da RSM.

Segundo dados oficiais, citados pela DW, “39% das crianças guineenses com menos de 15 anos foram excisadas em 2010 (antes da criminalização)”, estimando-se que “metade das mulheres” tenham sido vítimas deste procedimento que causa lesões permanentes, físicas e psíquicas.

“Também falamos de casamentos precoces e forçados, realidade ainda bem patente na sociedade guineense, sobretudo no interior. Falamos do estado de Direito, de democracia, justiça e igualdade de género. Falamos das mulheres em geral e das mulheres das aldeias.”

“Falamos de saúde, juventude, narcotráfico [o país é, supostamente, usado por traficantes estrangeiros para transportar cocaína e outras drogas da America Latina para a Europa], corrupção, ética profissional, doutrina social da Igreja. Os nossos programas estão de acordo com a realidade e a necessidade do país.”

As emissoras católicas em África, tantas vezes ameaçadas por governos e regimes, são vistas como as rádios dos que não têm voz, porque abrem a sua antena a todos os que querem partilhar as suas mágoas
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No auge da pandemia de Covid-19 (só em Setembro foram levantados o estado de emergência e o confinamento), a Rádio Sol Mansi “assumiu um papel preponderante”, destaca o director. “Com as igrejas fechadas, a Santa Missa, as orações e a catequese em duas dioceses foram asseguradas via rádio. No plano social, continuamos a ter um papel preponderante na sensibilização para e a prevenção do coronavírus.”

Porque ganhou “respeito e credibilidade na sociedade guineense”, é na RSM que as pessoas “confirmam a veracidade das notícias que ouviram noutras rádios”, garante Cajucam. “Mesmo assim, não faltam pressões.”

“[Recentemente] fizemos uma entrevista a uma porta-voz do Departamento de Estado americano sobre um comunicado em que se oferecia 5 milhões de dólares por informações que conduzam à condenação ou detenção de António Indjai, ex-chefe das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Só quando demos esta notícia é que as pessoas acreditaram. Dois dias depois, recebemos uma chamada telefónica do general Indjai, proferindo várias ameaças.”

“Outras pressões vêm da classe política e da elite governamental, cuja estratégia passa, por um lado, por amedrontar os jornalistas, e por outro, por os aliciar ou tê-los sob seu controlo”, critica o director da RSM. “Só fomos silenciados aquando do golpe militar de 12 de Abril de 2012. Aliás, todas as rádios foram silenciadas pelos militares golpistas durante 48 horas.”

Para o seu director, a Rádio Sol Mansi “é verdadeiramente a voz dos que não têm voz”, num Estado onde 88% das pessoas vive abaixo do limiar da pobreza (menos de 2 dólares por dia) e onde a esperança de vida é de 47 anos
© Agência Lusa

Nos actuais três estúdios da Rádio Sol Mansi, trabalham 22 homens e 11 mulheres. A emissora conta também com uma rede de 50 correspondentes em todo o país, “que lhe permite dar voz aos que são excluídos do círculo da comunicação”. Os noticiários são emitidos 50% em português e 50% em crioulo (a língua de mais de 90% da população), mas só 10% dos programas são produzidos em português (falado por 27,1%).

Os jornalistas e técnicos recebem formação com colegas de Portugal, do Brasil, ou de Cabo Verde, da Fundação Pro Dignitate, em Lisboa, ou da Rhode Island College, em Providence, nos EUA. Fazem estágios em vários países, de Angola ao Zimbabwe. A RSM tem ainda uma equipa de “crianças jornalistas – dez repórteres e três da área de programas, que saem, fazem reportagens e entrevistas” dirigidas aos mais pequenos.

“Os nossos produtos são de facto muito bons!”, assegura Casimiro Cajucam. “O sucesso está no trabalho. Esta emissora é verdadeiramente a voz dos que não têm voz”, num Estado onde 88% das pessoas vive abaixo do limiar da pobreza (menos de 2 dólares por dia) e onde a esperança de vida é de 47 anos. A RSM afirmou-se uma “rádio modelo, pela isenção, objectividade e conteúdo das suas mensagens”.

Algumas emissoras, como a Bakhita, que pertence à importante Rede de Rádios Católicas do Sudão do Sul e montes Nuba (CRN), chegam a ter mais de 1 milhão de ouvintes e e uma extensa área de cobertura
©i2.wp.com/acme-ug.org

Rede de Rádios Católicas do Sudão do Sul e montes Nuba

Ajudar a construir a paz na mais jovem nação do mundo, independente desde 2011, mas ferida por um conflito que parece não ter fim, é também o objetivo da Rede de Rádios Católicas do Sudão do Sul e montes Nuba (CRN), este ano galardoada com o prestigiado Prémio Internacional Pax Christi.

A rede de nove rádios (**) comunitárias que chega a mais de sete milhões de pessoas foi premiada por “promover a reconciliação, curar os traumas, ser uma plataforma para o diálogo construtivo, oferecer informação de confiança e dar uma atenção especial a grupos marginalizados, incluindo mulheres, crianças e todos os que não sabem ler ou escrever”.

Na sede da CRN em Juba, a capital, a voz da directora da CRN, Mary Ajith Goch, alegra-se quando a contacto, por WhatsApp: “A cerimónia de entrega do prémio será só em Dezembro, mas estamos muito felizes, porque este é o reconhecimento do trabalho que temos vindo a fazer desde há vários anos. Ganhámos um novo ânimo e sentimo-nos encorajados a fazer mais pelo nosso povo.”

E a CRN bem precisa de estímulo. Uma das suas emissoras, Radio Saut Al Mahaba / Voice of Love (Voz do Amor), em Malakal, foi destruída em 2014 durante combates – ou “crimes de guerra”, segundo a Human Right Watch – entre soldados governamentais e grupos da oposição. A própria cidade, a segunda maior do país, ficou vazia depois de tantos horrores e tantas vezes mudar de mãos.

“Só agora começámos a reerguer-nos, porque nada restou, nem as paredes”, informa Mary Ajith. “Pilharam tudo. Mudámo-nos para o perímetro da Catedral, esperando que agora respeitem o espaço da igreja. Queremos ir para o ar em breve, mas ainda nos falta algum equipamento e fundos.”

Nas rádios católicas africanas, muitos profissionais e uma grande parte dos seus ouvintes são mulheres; há um esforço grande para abordar vários temas, incluindo os que são tabu, como a violência doméstica ou a poligamia
© Foundation Hirondelle Media for Peace and Human Dignity

A Voz do Amor pertence à Diocese de Malakal, no estado do Alto Nilo, e é dirigida, desde 2009, pela missionária italiana Elena Balatti. Foram Irmãs Combonianas como ela que iniciaram a CRN, uma forma de celebrarem a canonização do fundador da congregação, Daniel Comboni, em 2003.

“A ideia inicial era termos uma emissora em onda média, a partir do Quénia, porque, nessa altura, o Sudão não nos dava uma licença”, explica-me o padre José da Silva Vieira, que colaborou com as Irmãs na criação da primeira estação, a Rádio Bakhita.

“Só em 2005, com o tratado de paz, é que pudemos avançar, mas desistimos da onda média porque, durante o dia, o calor era intenso. Tínhamos de transmitir de manhã ou à noite e, por isso, decidimo-nos por uma rede de rádios em cada diocese no Sul e nos montes Nuba, área controlada pelos rebeldes do SPLM-N” (Movimento de Libertação do Sudão-Norte).

As Irmãs fizeram um estudo de viabilidade e, logo em 2005, começaram a formar jovens, muitos deles vindos de campos de refugiados no Uganda e no Quénia, que tinham formação em inglês. Em 2016, um desses refugiados formados pela CRN seria Mary Ajith, mas contaremos adiante a sua história.

Segundo o Banco de Desenvolvimento Africano, a pobreza no Sudão do Sul aumentou de 55,4% em 2020 para 55,9% em 2021. A taxa de desemprego também se mantém elevada: 18%. Para muitos habitantes da mais jovem nação do mundo, a programação das rádios católicas serve para amenizar as suas dores
© Kassie Bracken | The New York Times

A princípio, apesar da ajuda crucial de dois técnicos italianos de alta e baixa tensão, a Rádio Bakhita consistia apenas “em dois contentores, alinhados um ao lado do outro, unidos por uma parede – do lado direito, um estúdio de emissão; do lado esquerdo, o gabinete da directora, a Irmã espanhola Cecília Sierra Salcido, e a redacção; no meio dos contentores, umas mesitas para fazer programas”, especifica José Vieira. “Era uma coisa muito rudimentar.”

“Com temperaturas de 45º, os contentores eram autênticas frigideiras””, adianta o padre português. “Lembro-me de que, quando não podíamos usar o ar condicionado durante as gravações, porque os microfones eram muito sensíveis e captavam todos os barulhos, nós suávamos por todo o lado.”

Mais tarde, a rádio-bandeira da CRN foi ampliada. Fizeram-se estúdios de cimento, insonorizados. “Fomos para o ar na noite de Natal de 2006, numa missão experimental, mas a primeira emissão oficial e regular só arrancou a 8 de Fevereiro de 2008, dia de Santa [Josefina] Bakhita – a primeira santa do Sudão”, uma antiga escravizada que o Papa João Paulo II canonizou em 2000.

As emissoras católicas têm uma ampla projecção, porque muitos dos seus jornalistas são poliglotas. A rádio Bakhita no Sudão do Sul, por exemplo, transmite em Inglês, árabe simplificado, bari e dinka; outras estações da sua rede (CRN) juntam ao árabe e inglês, as línguas tira, otoro, lera, muru, otuho, madi, acholi, didinga, topasa, shiluk, nuer, balanda e zande
© africanstudies.ox.ac.uk/

De início, este foi um projecto integralmente pago pela Família Comboniana. Hoje, toda a rede de nove rádios**, cada uma com “uma média de 10-15 jornalistas”, é propriedade da Conferência Episcopal do Sudão do Sul, embora os Combonianos mantenham “um papel consultivo e de ponte para parcerias”, como refere a actual directora, Mary Ajith.

Para José Vieira, um das grandes qualidades da Rádio Bakhita foi aproveitar sinergias. “Fazíamos noticiários que cobriam todo o país, sem gastar praticamente nada, porque cada um dava e partilhava o que tinha. Esta filosofia atraiu outras emissoras, como a Dom Bosco, dos Salesianos, em Tonj, das primeiras a juntarem-se à rede.”

Outro factor para a conquista de audiências: comunicar em várias línguas. Os cerca de 10 milhões de habitantes do Sudão do Sul pertencem a 64 grupos étnicos (o maior é o povo Dinka – o primeiro a converter-se ao Cristianismo –, seguindo-se as tribos Nuer, Shilluk, Azande, Bari, Kakwa, Murle, Mandari e outras) e exprimem-se em mais de 60 línguas.

Quando foi criada, a Rádio Bakhita, tal como outras congéneres no Sudão do Sul, afirmou-se como um emissora que “forma e informa”, tendo como prioridade “os problemas da comunidade”, o que nem sempre agrada às autoridades (Na foto, estúdio da Rádio Miraya, apoiada pela ONU, que o governo mandou encerrar em 2018 por, alegadamente, “não ter licença”)
© AFP | Getty Images | Bloomberg

A Rádio Bakhita, com os seus “jornalistas poliglotas”, transmite em Inglês, árabe simplificado, bari e dinka; outras estações da rede juntam ao árabe e inglês, as línguas tira, otoro, lera, muru, otuho, madi, acholi, didinga, topasa, shiluk, nuer, balanda e zande.

“Quando a Bakhita chegou, já havia outras emissoras [hoje são mais de 30], como a do governo, que emitia em onda média; as privadas, que só davam música e publicidade; ou a da ONU (Miraya/Espelho), que não tocava em política ou religião para manter a imparcialidade”, relembra José Vieira.

“Nós anunciámo-nos como uma rádio comunitária que forma e informa. Os problemas da comunidade eram a prioridade. Tínhamos programas religiosos, claro, mas também de saúde, com dois médicos. Usávamos teatro educativo, orientado por algumas ONG, dirigido a crianças e jovens. Dávamos aulas de inglês. Procurava-se aliviar as dores da guerra.”

“Noticiávamos a actualidade internacional, nacional e local. Para as eleições de 2010 e referendo de 2011, entrevistámos todos os candidatos, mesmo os unipessoais, sem agenda, e ensinámos as pessoas a votar – preparando blocos de 10 minutos e linguagem simples. Cada um dos nossos radialistas explorava o que era novo no seu bairro para ser debatido diariamente.”

Todas as rádios são uma companhia, mas em aldeias remotas em África elas desempenham um papel fundamental na vida dos seus habitantes, tantas vezes negligenciados pelo poder central
©www.uncdf.org

A missão da Bakhita, observa a directora da CRN, Mary Ajith, “ainda assenta em quatro pilares: evangelização, informação, educação e entretenimento”. “Continuamos a abrir a emissão com o Rosário e orações matinais e seguimos com o noticiário e programas diversos.”

“Os mais ouvidos são a Santa Missa e os que abordam a construção da paz. Porque, em tempo de instabilidade, as pessoas querem saber se as suas aldeias, muitas delas remotas, são seguras – e a rádio é, quase sempre, o seu único meio de comunicação.”

Saber por exemplo se vai recomeçar a guerra (quase permanente desde 1955, apenas com 4-5 anos de paz; desde Agosto que há combates mortíferos entre fiéis e rivais do vice-Presidente, Riek Machar, que terá sido afastado do seu partido) ou se as raras estradas transitáveis desapareceram.

Em Outubro, o Sudão do Sul enfrentou o que a ONU descreveu como “as chuvas mais implacáveis das últimas décadas”, que inutilizaram vias rodoviárias, inundaram campos, destruíram colheitas e deixaram sem abrigo “mais de 700 mil pessoas”, muitas delas já em risco de fome.

Os ouvintes da Rádio Bakhita adoram entrar em directo na rádio, para falar sobre a falta de água e de higiene ou o mau funcionamento das escolas; sobre corrupção na indústria petrolífera (receitas têm sido, alegadamente, desviadas e usadas para enriquecer alguns e financiar bandos que cometem atrocidades) ou sobre casamentos infantis
© Stephanie Glinski | AFP | Getty Images | Foreign Policy

Os ouvintes adoram entrar em directo na rádio, para falar sobre a falta de água e de higiene ou o mau funcionamento das escolas; sobre corrupção na indústria petrolífera (receitas têm sido, alegadamente, desviadas e usadas para enriquecer alguns e financiar bandos que cometem atrocidades) ou sobre casamentos infantis.

No Sudão do Sul, “52% de todas as meninas casam-se antes dos 18 anos, por vezes aos 12, o que as priva de direitos básicos e até da vida, alerta a UNICEF. “Cerca de um terço engravida antes dos 15. Bebés nascem prematuros, o que os predispõe a doenças crónicas. Com o encerramento das escolas, devido à Covid, e mais tempo passado em casa, muitas meninas ficaram mais expostas a abusos sexuais.”

Se a antena aberta para desabafar mágoas é o que mais atrai os ouvintes, é também um gerador de pressões por parte das autoridades. Tal como José Vieira, também Mary Ajith diz que a CRN foi intimada pelo governo a “dedicar mais tempo à palavra de Deus e menos à política”.

Um dos programas “altamente vigiados” é Wake Up Juba (“Desperta Juba”), “um talk-show em que quem participa não se abstém de criticar os dirigentes”. Certos tópicos, que ela não especificou, tornaram-se “linhas vermelhas”.

São muitas as dificuldades que as rádios em África enfrentam, desde falta de fundos para modernizar os equipamentos e pagar salários até pressões políticas e militares que, por vezes, levam os seus jornalistas para a prisão
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“A censura e a insegurança, o nosso maior desafio, não nos poupam”, confirma-me, por e-mail, Bogere Charles Mark Kanyama, 35 anos, director interino da Bakhita, emissora que chega a mais de 1 milhão de ouvintes e tem uma área de cobertura de 300 km2. “Em 2015, a nossa estação foi encerrada só porque um dos jornalistas falou com Riek Machar, na altura o líder da oposição.”

No entanto, o presidente, Salva Kiir Mayardit, é um católico, cujos pés o Papa João Paulo II beijou quando o recebeu, a ele e a Machar, em Abril de 2019, para os convencer a consolidar um ténue acordo de armistício, firmado no ano anterior, depois da guerra civil que começou logo após a independência e causou 400 mil mortos, 2,1 milhões de deslocados internos e 2,5 milhões de refugiados (cálculos da ONU) – uma das maiores crises humanas desde o genocídio ruandês de 1994.

“A popularidade da Bakhita – embora esteja a perder-se devido a circunstâncias que escapam ao nosso controlo – deve-se ao facto de ser a única rádio católica que aborda questões sociais e políticas”, crê o director interino.

A rádio é um meio de comunicação essencial no Sudão do Sul, onde apenas 1 em cada 4 pessoas sabe ler e escrever
© Ryeng | UNICEFSouthSudan

Wake Up Juba é um programa essencialmente político”, adianta Bogere Charles. “Hoje, a censura impede muitos jornalistas de elucidar o público, e este tem cada vez mais dificuldade em encontrar plataformas para responsabilizar o governo. Nós, sendo uma instituição da Igreja, não abdicamos de criar fóruns que permitam às pessoas exprimirem-se livremente.”

Outro problema que a Bakhita e a CRN enfrentam é a míngua de fundos, apesar de significativos apoios à formação e programação, por parte de várias ONG, da Voz da América ou da BBC Media Action, e da ajuda na aquisição de equipamento por parte de organizações como a Internews, da Califórnia.

A publicidade pode servir de almofada financeira, mas quando há princípios a defender, às vezes perde-se dinheiro, como aconteceu com José Vieira. Não aceitou difundir anúncios da companhia malaia Petronas, por estar envolvida numa “violenta campanha de expulsão de populações em Unity State, para uma exploração de petróleo sem critérios, que polui terras e cursos de água”, com metais pesados e químicos tóxicos.

Para muitos jornalistas africanos, trabalhar na rádio é um sonho, e os seus ouvintes reconhecem a dedicação e o serviço que eles oferecem às comunidades, muitas delas pobres e vulneráveis
©www.uncdf.org

Tal como Mary Ajith, o jovem Bogere Charles juntou-se à CRN em 2016. Recebeu formação da agência Journalists for Human Rights (JHR), com sede em Toronto, no Canadá e entrou na Rádio Bakhita como estagiário do Media Development Institute of South Sudan.

Foi depois repórter, editor, gestor de programas e agora substitui o anterior director, Alfred Soka, que saiu do país para continuar os estudos. “Foi a minha dedicação ao trabalho e a Deus que me fez chegar tão longe”, exulta.

Mary Ajith, que teima em “lançar sementes de paz e esperança”, baseia o optimismo na sua experiência de vida. Tinha 2 anos, em 1991, quando escapou de um massacre na terra-natal, Bol. Toda a população fugiu e milhares foram mortos, incluindo o pai e a maioria dos familiares.

“Fiquei inicialmente ao cuidado de uma escola de freiras, numa terrinha entre o Sudão do Sul e o Quénia, mas depois atravessei a fronteira para viver num campo de refugiados”, revela. “Foi um tempo duro. Eu, a minha mãe e os meus quatro irmãos não fomos bem acolhidos. Dependíamos totalmente da ONU, mas consegui estudar e licenciar-me em Comunicação na Universidade de Nairobi. Em 2010, regressei ao meu país.”

Hoje, o papel de Mary Ajith é coordenar as várias estações da CRN, angariar fundos e recursos, trabalhar 12h por dia e ainda levar trabalho para casa. “O futuro parece sombrio, mas se continuarmos com determinação, veremos luz ao fundo do túnel e o futuro será brilhante”.

Projecto Ditunga

Em países assolados por conflitos e guerras como a República Democrática do Congo ou o Burundi (na foto, a Radio Publique Africaine, em Bujumbura), muitos profissionais precisam de ajuda internacional para chegar aos seus ouvintes ou para evitar serem perseguidos por dirigentes políticos e grupos armados
©ifex.org

Na República Democrática do Congo (RDC), assolada por vários conflitos armados, insegurança alimentar (19,6 milhões de pessoas precisam de ajuda urgente) e várias epidemias – cólera, sarampo, Ébola e agora a Covid-19 -, uma outra rádio, na província de Kasai-Oriental, procura oferecer a quem a ouve um “conforto holístico”, assim descrito pelo fundador e director, padre Apollinaire Cibaka Cikongo, numa entrevista que me deu, por e-mail.

“O Projecto Ditunga [PRODI] é uma associação sem fins lucrativos criada em 2006, graças a “pessoas de boa vontade” e ao financiamento da fundação pontifical Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que “acreditaram no sonho de apoiar o trabalho da Igreja e das comunidades rurais na região de Ngandanjika e arredores”, informa o sacerdote.

A rádio com o mesmo nome começou as emissões em 17 de Julho de 2010. Está no ar, ininterruptamente, das 5h50 às 23:00, transmitindo em Ciluba (80%), uma das quatro línguas nacionais da RDC e a principal de Kasai-Oriental, e em francês (20%).

Nos últimos 15 anos, numa missão que “integra todos os eixos do desenvolvimento humano”, o Projeto Ditunga, embora de cariz religioso, num país onde 55% da população é católica e a Igreja de Roma é umas principais forças políticas, sociais e morais, não cuida apenas do espírito.

Fomenta também a vida associativa, a agricultura, a criação de gado – “soberania alimentar” – e a protecção do ambiente. Dinamiza a escolarização de crianças e a formação permanente de adultos. Contribui para o desenvolvimento cultural, social e económico das mulheres. Promove a nutrição, a saúde e a higiene. Defende os direitos humanos e a cultura democrática.

São mais de 100 os projectos da iniciativa Ditunga. Beneficiando “2146 famílias de camponeses”, precisa o sacerdote da diocese e professor da Universidade Oficial de Mbuji-Mayi, capital do estado de Kasai-Oriental e a segunda maior cidade da RDC, depois de Kinshasa.

A programação das rádios católicas em África é diversificada; não se limita à componente religiosa e espiritual A maioria destas emissoras promove também actividades culturais e artísticas ou a protecção do ambiente, por exemplo
© freepressunlimited.org

Numa “fazenda-escola”, são criadas galinhas e porcos e aqui se plantou uma “floresta artificial” de 32 hectares, um palmeiral, campos de mandioca e de outras culturas. Abriram-se 72 escolas, do ensino pré-escolar ao universitário, e um instituto superior de construção civil. Edificaram-se dois hospitais e cinco centros de saúde. Construíram-se 11 centros de formação especial dirigidos a mulheres, em particular camponesas e analfabetas.

Na defesa dos direitos humanos, é dada ênfase a “433 crianças órfãs”, acolhidas em três grandes centros, “244 pessoas com albinismo, reclusos e protagonistas de delitos comuns e conflitos intercomunitários”.

O Projecto Ditunga desenvolve ainda actividades culturais, artísticas e científicas, assim como “a formação e a informação crítica e objectiva”, através de seminários, ateliers e media. Organiza, igualmente, obras pastorais e sociais da Igreja Católica e de outras comunidades de fé.

No que toca ao apostolado da Igreja, especifica Cikongo, 54 anos, autor de várias obras como La maison du Nègre, Libérer la théologie africaine ou Le mal congolais, o apoio “consiste em conceder-lhe espaços privilegiados na Rádio Ditunga, em construir igrejas e capelas para as comunidades pobres (há seis), em atribuir bolsas de estudo a seminaristas e apoio logístico a sacerdotes”.

Graças a uma “altitude favorável – 805 metros – e a potentes transmissores,” a Rádio Ditunga, com 16 jornalistas na redacção e 4 correspondentes, nacionais e locais, pode ser ouvida num raio de 350 km em linha recta. Cikongo, estima a audiência em cerca de 5 milhões de pessoas.

Várias rádios em África têm recebido prémios, nacionais e internacionais, pelo seu valioso contributo para a promoção de sociedades desenvolvidas, sustentáveis, democráticas e pacíficas
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Em 11 anos de existência, a emissora “reinventou-se na fidelidade à sua identidade eclesial e comunitária. Conseguimos dotar-nos de uma grelha que vai ao encontro das expectativas de um público bastante complexo e heterogéneo.”

Não há temas tabu, garante Apollinaire Cikongo, que anima um programa dominical em francês e em Ciluba, no qual aborda “todos as questões sociais e da actualidade”, organizando depois debates contraditórios. Em Março e Abril, por exemplo, fez três emissões sobre poligamia, assunto sobre o qual diz divergir da “maioria dos pastores das seitas cristãs”.

As uniões polígamas são legais na RDC. Todavia, enquanto os homens podem ter várias mulheres, estas não têm protecção legal, nem direitos sobre o registo e a custódia dos filhos, nem direitos de propriedade ou de herança.

Outro tema muito discutido é o da violência doméstica, mas, apesar de “as mulheres serem muitas vezes cúmplices do sofrimento que lhes é imposto por tradições arreigadas na sociedade”, Apollinaire Cikongo realça que a situação “está a evoluir bem”. A Rádio Ditunga contribuirá para “lutar contra os casamentos precoces” e encorajar as meninas a ir à escola. Pelo menos 8000 seguiram este caminho, graças a bolsas de estudo.

Para vários radialistas em África, “não é fácil trabalhar com liberdade”, mas, apesar dos sacrifícios pessoais, são muitos os que acreditam valer a pena a sua missão de ajudar a construir um mundo melhor
© umnews.org

O importante papel da emissora de Cikongo ficou evidente durante a Covid-19, sobretudo em 2020, com todas as medidas de distanciamento social. Durante três meses, foi “a escola primária e secundária de muitos alunos, uma escola de saúde e higiene, mas sobretudo um laço entre comunidades, a capela de muitos católicos e não católicos.”

“Não é fácil trabalhar com liberdade” na RDC, admite director. No entanto, “a situação tem melhorado desde a alternância política em Dezembro de 2018”, quando Félix Tshisekedi sucedeu a Joseph Kabila. “Antigamente, era habitual sermos interpelados por autoridades locais e provinciais, e pelos serviços de segurança. Os períodos de campanha eleitoral eram os mais perigosos, com ameaças de encerramento ou de morte contra um ou outro jornalista. Mas, graças a Deus, nunca passaram de ameaças e de intimidação.”

“Somos ‘Projecto’ porque somos um sonho”, lê-se no site da Rádio Ditunga. “Somos o sonho de um mundo em que cada ser humano tem o que comer e pode viver com saúde, em condições ambientais dignas; o sonho de um mundo em que o ser humano não é um analfabeto, à mercê da destruição causada por ignorância, superstição e manipulação; o sonho de um mundo em que o ser humano, plenamente responsável pelos destinos políticos da sua aldeia, goza dos seus direitos e deveres.”

*Dados de Cameco (Catholic Media Council) https://www.cameco.org/fr/repertoires/radios-tv-catholiques-en-afrique/

**Bakhita Radio, Juba; Radio Voice of Peace, El Obeid; Radio Emmanuel, Torit; Radio Saut al Mahaba – Radio Voice of Love, Malakal; Good News Radio, Rumbek; Radio Easter FM – The voice of Truth and Love, Yei; Radio Anisa – The Voice of Truth and Peace, Yambio; Voice of Hope, Wau; Radio Dom Bosco, Tonj.

Casimiro Jorge Cajucam, director da Rádio Sol Mansi na Guiné-Bissau, uma emissora criada para “favorecer a paz, a reconciliação e o desenvolvimento”, em cooperação com a maioria muçulmana do país e outras comunidades religiosas
© Cortesia de | Courtesy of Casimiro Cajucam
Padre comboniano José da Silva Vieira, que ajudou a criar a Bakhita, umas das emissoras da reconhecida e premiada Rede de Rádios Católicas do Sudão do Sul e Montes Nuba (CRN)
© Revista Além-Mar
Apollinaire Cibaka Cikongo, o padre que fundou e dirige a Rádio Ditunga, um grande projecto que engloba várias áreas de acção, na província de Kasai-Oriental, na República Democrática do Congo
© Cortesia de | Courtesy of Apollinaire Cibaka Cikongo

Este artigo foi publicado originalmente na edição de Novembro de 2021 da revista Além-Mar | This article was originally published in the November 2021 edition of the Portuguese news magazine Além-Mar. A summary of it in English can be read here

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