Em 7 de Outubro de 2001, os Estados Unidos iniciavam a Operation Enduring Freedom, para se vingarem dos ataques terroristas de 11 de Setembro cometidos pela Al-Qaeda de Osama bin Laden, protegido e patrono dos taliban. Depois de duas décadas de guerra, a América retira-se e os “estudantes do Islão” regressam. Para entender o que se passou, entrevistei Said Sabir Ibrahim, um ex-refugiado que é hoje investigador na Universidade de Nova Iorque. (Ler mais | Read more…)

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Em 1996, quando os taliban conquistaram pela primeira vez Cabul, a capital afegã, Said Sabir Ibrahim e a família procuraram refúgio em Peshawar, no vizinho Paquistão. “[Naquela altura], tal como hoje, a economia colapsou e a pobreza disparou”, recorda, em entrevista que me deu por e-mail. “O regime forçou-nos a usar barbas, as minhas irmãs foram obrigadas a cobrir-se totalmente com burkas [que há séculos são tradicionais nas zonas] rurais, por eles consideradas vestes islâmicas e afegãs. E nós tivemos de partir.”
“Muitos paquistaneses abriram-nos os seus corações e casas, mas nunca fomos um fardo – trabalhámos, pagámos renda e contribuímos para a economia do Paquistão, que recebeu muitos milhões de dólares da comunidade internacional para ajudar os [mais de 3 milhões de] refugiados [de várias guerras]”, diz Ibrahim, que é agora investigador no Centro de Cooperação Internacional da Universidade de Nova Iorque (NYU), onde completou um mestrado em Assuntos Globais.
O regresso à pátria aconteceu em 2002, um ano após a Operation Enduring Freedom dos Estados Unidos e da NATO responsável pelo derrube do regime dos “estudantes do Islão”, um movimento germinado nas escolas corânicas do Paquistão, que emergiu em Kandahar no final de 1994, hoje com cerca de 70 mil a 100 mil combatentes (eram 30 mil há uma década) e rendimentos anuais estimados em 1500 milhões de dólares, 60% dos quais assentes no tráfico de droga (do ópio do Afeganistão é extraída a maior parte da heroína consumida a nível mundial).
Em Cabul, Said Ibrahim colaborou com organizações sem fins lucrativos, como o Conselho Norueguês para os Refugiados e o Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional.
Em 2009, obteve uma bolsa do American Council para continuar os estudos em Nova Iorque, onde se tornou um eloquente activista pelos direitos humanos no seu país.
Por várias vezes voltou ao Afeganistão – a última visita foi em 2018 –, “para tentar contribuir para a prosperidade do país”. Desiludiu-se: “Corrupção e nepotismo impediram-me de querer fazer parte do governo.”

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Em pouco mais de uma semana, no dia 15 de Agosto, os taliban reinstalaram-se em Cabul, após 20 anos de presença militar dos EUA e da NATO, de quase um milhão de mortos e de 23 mil milhões de dólares gastos para os derrotar. Como é que está a lidar emocionalmente com este retorno?
Têm sido dias duros para tantos de nós, excepto para os taliban e os seus simpatizantes. Nunca apoiei nenhum partido político no Afeganistão, mas sinto-me derrotado. Temo pela segurança dos meus familiares e de muitos outros com quem partilhei um país.
Sonhávamos com um Estado democrático para todos, incluindo os talibã, através de um processo de paz. Os taliban reconquistaram o poder pela força e pela violência – agora, muitos cidadãos estão em risco, e eu penso constantemente neles. Seja como for, temos de continuar a pressionar, a viver e a sonhar com um futuro melhor para esta nação.
A saída das tropas americanas, até 31 de Agosto, como determinou o presidente Joe Biden, que manteve o acordo assinado em 2020 por Donald Trump com os taliban, foi caótica e deixou para trás, à mercê de actos de represália, milhares de afegãos que com elas colaboraram. Poderia ter sido uma retirada mais bem organizada?
Compreendo que, caso tivessem ficado para além do prazo definido no acordo EUA-taliban em Doha [no Qatar], as forças americanas e da NATO poderiam ser atacadas. Também compreendo que os Estados Unidos quisessem retirar-se do Afeganistão para se concentrarem noutros objectivos estratégicos, como conter a China e a Rússia.
Eu próprio era a favor da retirada, mas só no contexto de um acordo político entre as facções afegãs – os taliban e outros. No entanto, os EUA retiraram-se sem esse acordo e foi prematuro.
Como é que os taliban conseguiram assumir o controlo tão súbita e inesperadamente?
Há muitos factores que explicam a queda do Governo em Cabul. A retirada dos EUA enfraqueceu o moral das forças de segurança afegãs [cerca de 300 mil homens, que, mal pagos e alvos fáceis, se foram rendendo ou desertaram, entregando armas e abandonando bases].
Os EUA haviam prometido apoio aéreo, mas não forneceram uma assistência consistente. Também se verificou uma guerra por procuração e de serviços secretos envolvendo o Paquistão, o Irão, a Rússia e a China, por um lado, e os EUA e a NATO, por outro.
O Paquistão há muito que quer subjugar o Afeganistão para que não se aproxime da Índia, e conseguiu o que queria. O Irão e a Rússia queriam humilhar os Estados Unidos, e conseguiram igualmente o que queriam.

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E por que foi tão rápido o colapso do governo do presidente Ashraf Ghani? Poderia este governo ter sido salvo?
Sim, poderia sido salvo se tivesse chegado a um acordo político com os taliban. Mas o Governo afegão era, intrinsecamente, corrupto e fraco – não só por culpa da insurreição taliban. Dizia-se que o Governo em Cabul era dirigido por três pessoas: o presidente Ghani e os seus dois conselheiros – Hamdullah Moheb e Fezel Fazly. Cabul nem sempre enviava reforços para que as forças de segurança nas províncias repelissem os avanços dos taliban.
Era suposto que Moheb, inexperiente conselheiro nacional de segurança, ‘liderasse’ a guerra ignorando as chefias militares. Também havia uma luta pelo poder, predominantemente entre pashtun e tajiques [os maiores dos 14 grupos étnicos].
Em retrospectiva, vários comentadores têm apontado para um “erro crucial” por parte da Administração de George W. Bush em 2001, quando se terá recusado a aceitar a proposta dos taliban de uma rendição com amnistia, optando por dar poder a milícias e senhores da guerra, rivais e vingativos. Ao exigir nada menos do que uma capitulação incondicional, abrindo caminho a uma guerra “sem inimigo”, mais civil do que militar, terão os EUA facilitado o ressurgimento dos taliban?
Sim, a Administração Bush deveria ter tentado negociar, mas não tenho a certeza de que os talibã se tivessem rendido naquela altura. Não creio que a Rede Haqqani [o grupo mais violento, responsável por raptos e pelos mais sanguinários ataques contra soldados afegãos, activistas, intelectuais, jornalistas…] tivesse alguma vez mostrado interesse em negociar com os americanos ou com o governo de Cabul em 2001.
Além disso, se os EUA e a NATO tivessem permanecido no Afeganistão, veríamos certamente a emergência de outros bandos de insurrectos, porque invasões ou ocupações estrangeiras atraem sempre resistência.

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Nos últimos 20 anos, apesar da violência, registaram-se mudanças importantes na sociedade afegã, sobretudo nas cidades – havia, por exemplo, tantas mulheres no Parlamento em Cabul como no Congresso em Washington. Até que ponto essas mudanças impedirão os taliban de governar como nos anos 1990, quando impuseram a sua ideologia deobandita, assente na rígida interpretação da escola hanafita do Islão e em severas tradições pashtun?
Muita coisa mudou, sim. Apareceu uma nova geração de afegãos [63,7% dos quase 40 milhões de habitantes tem menos de 25 anos]. Muitos afegãos lutaram arduamente para terem educação em vários campos. Havia liberdade de expressão.
A nova geração irá desafiar o poder dos taliban [tem havido manifestações de protesto, principalmente de mulheres], mas não tenho a certeza durante quanto tempo isso será possível sem apoio político da comunidade internacional.
Por outro lado, milhares de quadros afegãos deixaram ou estão a abandonar o país. Os taliban dizem que vão ser pragmáticos e que encorajam as pessoas a ficar, mas as pessoas têm medo dos taliban. Eles continuam a suprimir e a oprimir os dissidentes. Já limitaram a liberdade de imprensa vários jornalistas têm sido detidos e torturados] e segregaram as mulheres nas escolas superiores. Receio que esteja a formar-se um Estado policial semelhante aos das repúblicas islâmicas do Paquistão e do Irão.

©Victor J. Blue | The New York Times
Das 34 províncias afegãs, o Vale de Panchir, no Leste e 144 km a norte de Cabul, era o último reduto da oposição, mas, no início de Setembro, os talibã reivindicaram vitória. A derrota não foi assumida pela Frente Nacional de Resistência do Afeganistão (NRFA), o grupo multiétnico liderado pelo filho de Ahmad Shah Massoud, lendário comandante da Aliança do Norte que a Al-Qaeda assassinou, em 2001, como um favor aos anfitriões talibã. O que se passa?
Os taliban garantiram ter conquistado Bazarak, o centro da província, e cortaram as linhas de comunicação com Panchir. É difícil sabe o que se passa na realidade. A NRFA assegura que continuam os combates contra os taliban [apesar de uma dramática situação humanitária – sem alimentos, água e medicamentos].
É possível que os taliban se tenham apoderado da maior parte da província e que estejamos agora perante uma guerra de guerrilha – semelhante às dos anos 1980 contra a ocupação soviética.
Especulou-se, sobretudo após a recente visita do chefe dos espiões de Islamabad a Cabul, que, no ataque a Panchir, região rica em recursos minerais, os taliban receberam apoio do Paquistão e da Al-Qaeda. Confirma?
Há múltiplos relatos de que estiveram envolvidos combatentes estrangeiros, designadamente paquistaneses, árabes, tchetchenos e outros da Ásia Central. É plausível que tenham sido usados drones do Paquistão, mas não há confirmação por parte de fontes independentes. A resistência deverá continuar, à semelhança da luta [dos mujahedin financiados pela CIA] contra a URSS ou à semelhança da insurreição talibã contra os americanos.

© Mohammad Ismail | Reuters
Como define a resistência em Panchir e quem os pode apoiar?
A resistência em Panchir representa muitas pessoas no Afeganistão – pessoas que trabalharam durante os últimos 20 anos para estabelecer um sistema quase democrático que possa garantir direitos humanos básicos – não uma utopia liberal.
É difícil imaginar que Panchir, isoladamente, consiga criar um equilíbrio de poder e reconquistar o país – pelo menos não a curto prazo. Seria preciso apoio de outras províncias e de actores externos.
Infelizmente, isto poderá conduzir o país a uma nova guerra civil ou a uma guerra por procuração. Nesta fase, não imagino quem é que poderia financiar a resistência em Panchir, mas se os talibã arranjaram quem financiasse a sua rebelião no início dos anos 2000, a resistência também encontrará o seu caminho.

© Reuters | BBC
O governo do segundo “Emirado Islâmico do Afeganistão” foi anunciado em 7 de Setembro. O que acha da sua composição?
É o que se poderia esperar de um regime repressivo. Não é representativo nem inclusivo. Não tem minorias nem mulheres [o Ministério dos Assuntos da Mulher foi substituído pelo Ministério do Amr bil Ma’ruf wa Nahy aan al Munkar – “Promoção da Virtude e Prevenção do Vício”].
Quase todos os ministros pertencem a um único grupo étnico [o dos pashtun, com 30 pastas; aos tajiques foram atribuídas 2 e aos uzbeques apenas uma – os hazaras, a minoria mais perseguida, continuam excluídos], e são exclusivamente dirigentes religiosos [33 mullahs] sem experiência técnica.
Muitos dos nomeados fazem parte das listas de terroristas dos EUA e da ONU [o FBI, por exemplo, oferece 5 milhões de dólares pela captura de Sirajuddin Haqqani, o indigitado ministro do Interior]. Isto só irá dividir ainda mais o país.
Quais os desafios que este governo vai enfrentar e quem o vai reconhecer?
Os principais desafios são uma economia moribunda [dependente de ajuda externa – 75% das despesas públicas são comparticipadas pela comunidade internacional]; um elevado número de desempregados; os [cinco milhões de] deslocados internos ; a seca [que afecta pelo menos 3 milhões de afegãos e deixou mais de 12 milhões em situação de insegurança alimentar], a Covid-19, a resistência política e armada contra o novo regime [incluindo da parte dos rivais do Estado Islâmico de Khorassan, ISIS-K, grupo ainda mais extremista, nas palavras e actos].
O Paquistão continua a ser o principal aliado dos talibã. No entanto, outros países, como o Irão, o Qatar e, até certo ponto, a Rússia e a China também não se deverão abster de apoiar o movimento.

© Rahmat Gul | Associated Press | Wall Street Journal
Como é que imagina o futuro a curto e longo prazo?
No curto prazo, os taliban vão tentar dominar todo o país. Precisam de ser bem-sucedidos neste curto prazo porque têm agora todo o poder. No longo prazo, porém, mesmo esmagada a resistência em Panchir, outros grupos poderão surgir para desafiar os taliban, por meios violentos ou não.
Disto poderá resultar uma guerra prologada, mais deslocados e refugiados, mais derramamento de sangue e mais miséria. E se o regime dos taliban continuar as políticas repressivas dos anos 1990, provavelmente irá ser sujeito a novas sanções por parte do Ocidente.
Vários analistas descrevem o Afeganistão como um país turbulento, dividido, ingovernável. Partilha dessa opinião?
Ainda não encontrámos uma fórmula em que as facções rivais possam viver lado a lado e competir por meios não violentos.
Os taliban insistem num emirado islâmico; outros querem um sistema democrático islâmico, não necessariamente uma democracia liberal ocidental. O Afeganistão é um Estado falhado e não apenas um país fragmentado. É o produto de divisões internas, de guerras por procuração, regionais e internacionais, e de jogos geopolíticos.
Esta entrevista, agora actualizada, foi originalmente publicada na revista ALÉM-MAR, edição de Outubro de 2021 | This interview, now updated, was originally published in the Portugueses news magazine ALÉM-MAR, October 2021 edition