“Os livros ensinam-nos a ser livres”

Os taliban queimaram-lhe a escola, ameaçaram-no de morte, destruíram a sua casa. Matiullah Wesa não se rendeu nem pretende fugir, agora que eles regressaram ao poder. Fundador e presidente da organização Pen Path (Caminho da Caneta), ele mobiliza chefes tribais, líderes religiosos, famílias, voluntários e outros benfeitores para garantir a educação de quase 60 mil crianças e jovens. (Ler mais | Read more...

Matiullah Wesa numa escola só para meninas numa província afegã
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path

Ninguém jamais questionou a devoção de Haji Muhammad Khan. O seu primeiro nome atesta que cumpriu um dos cinco preceitos do Islão, a peregrinação (Haj) a Meca.  No entanto, quando este respeitado chefe tribal pashtun de cinco dos dezoito distritos da província de Kandahar, no sul do Afeganistão, decidiu abrir uma escola, para rapazes e raparigas, a sua ideia foi acolhida com hostilidade.

Muhammad Khan não cruzou os braços. Andou de porta em porta, a tentar convencer as pessoas “a defenderem a educação como se defendessem as suas casas”, porque “a educação é um direito básico, um direito humano, um direito islâmico”.

Vencida a relutância inicial de uma população ultraconservadora, sugeriu-se um compromisso: uma escola segregada. E foi assim que, em 2003, as meninas começaram a ter aulas numa mesquita e os meninos em tendas ao ar livre nos campos verdejantes do distrito de Maruf.

Voluntários da organização Pen Path, fundada por Matiullah Wesa, numa zona inóspita do Afeganistão
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path

Entre os 900 alunos provenientes de sete aldeias estava Matiullah Wesa, filho de Haji Muhammad Khan. É ele, de 29 anos, quem me conta a história , em várias conversas por WhatsApp. “Eu era um adolescente feliz”, recorda. “O meu pai arranjou livros, cadernos, lápis, todo o material escolar de que precisávamos.”

Era uma festa diária, mas toda a alegria se esfumou numa manhã de 2004, quando combatentes taliban – de regresso a Kandahar, o bastião onde, dez anos antes, lançaram as bases do seu primeiro “emirado”, e dois anos depois de derrotados pelas tropas americanas – irromperam para um ataque infame.

“Apontaram armas à cabeça dos nossos professores, ordenaram-nos que fugíssemos e queimaram todas as tendas da escola”, descreve Matiullah Wesa. “Chorámos tanto. Destruíram os nossos sonhos.”

“O que podíamos fazer, se eles eram mais poderosos do que nós?”, comenta Matiullah. Furioso, o pai ainda tentou retomar as aulas. “Doze dias depois, os taliban vieram ter connosco e ameaçaram-nos de morte. Fomos aconselhados pelos nossos líderes religiosos a mudarmo-nos para Spinbaldak”, outro distrito de Kandahar. “Assim que partimos, a nossa casa também seria incendiada. Tínhamos jardins e pomares. Vendíamos frutos secos. Perdemos quase tudo.”

A organização Pen Path numa campanha pelo país, procurando alargar os horizontes das crianças afegãs
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path

Em 2008, Muhammad Khan enviou os dez filhos (seis rapazes e quatro raparigas) para estudarem em Cabul, a capital. Um ano depois, com saudades dos amigos de infância em Merokhil, a sua aldeia, Matiullah perguntou ao irmão Attaullah se ele achava bem lançarem uma campanha para reerguer o que os taliban haviam destruído.

O irmão entusiasmou-se e o pai, agora a viver na cidade de Kandahar, capital da província com o mesmo nome, logo se prontificou a financiar o projeto, para o qual obtiveram também a indispensável bênção dos chefes tribais e religiosos.

Assim nasceu a organização Pen Path (Caminho da Caneta), que, garante, Matiullah, recebe apenas donativos de benfeitores afegãos, muitos deles sensíveis aos seus apelos no Facebook e Twitter. “O nosso primeiro objetivo era reabrir as escolas fechadas, algumas há 10-15 anos, não apenas num distrito, mas por todo o Afeganistão.”

Só em 2009, os dois irmãos reabriram 46 escolas nas zonas mais inóspitas, onde milhares de crianças nunca tinha visto uma sala de aulas. Em 2010, abriram a primeira biblioteca em Kandahar, na casa da família em Spinbaldak.

“Conseguimos juntar uns 5500 livros” comprados e doados, exulta Matiullah. “Temos livros sobre o Islão, mas também romances e poesia. Há livros infantis, de gramática, inglês, geografia, filosofia…”

Foto de cima: Matiullah Wesa (ao centro), o seu irmão Atta Muhammad e sobrinhas na biblioteca que abriram em 2013 na casa da família em Spinbaldak, no Sul do Afeganistão ©Andrew Quilty | The New York Times
Foto de baixo: Matiullah Wesa e outros voluntários da sua organização Pen Path numa campanha de alfabetização numa zona remota do Afeganistão © Emroo Photo | Cortesia de Pen Path

Com uma licenciatura em Ciência Política e um mestrado em Direitos Humanos, concluídos em duas universidades indianas, Matiullah está orgulhoso da sua caminhada: “Desde 2009, a Pen Path reabriu 100 escolas que as guerras fecharam. Obtivemos licença para construir e equipar outras 46 onde não havia nenhuma. Pelo menos 57 mil raparigas e rapazes vão à escola graças aos nossos esforços. Abrimos 38 bibliotecas em áreas esquecidas.”

“Organizámos cursos de alfabetismo para 340 jovens nas suas casas. Atribuímos bolsas de estudo a 280 estudantes universitários pobres. Lançámos a iniciativa #1bookforpeace, que permitiu distribuir 345 mil livros. Oferecemos manuais, mochilas e 1,5 milhões de objetos de papelaria. Apoiamos crianças órfãs e demos cadeiras de rodas a 220 portadores de deficiência para que possam deslocar-se à escola.”

Este trabalho é feito com a ajuda de “2300 voluntários, 400 dos quais são mulheres”, destaca Matiullah, que mobilizou também os dez irmãos e irmãs, para cumprir o lema “os livros ensinam-nos a ser livres”. Muitos destes voluntários circulam de motorizada – “o veículo dos taliban”, ironiza Matiullah – com a missão de sensibilizar os pais para a importância de educar os filhos e as filhas, em particular. As motorizadas servem também de bibliotecas ambulantes. “Já percorremos, até agora, 304 distritos das 34 províncias.”

Reunião com os chefes tribais, que têm sido aliados da Pen Path, para convencer as famílias a inscrever as filhas na escola
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path

Entre os voluntários da Pen Path está Zarlasht Wali, 26 anos, professora de inglês, natural de Andar, um dos distritos mais remotos de Ghazni, cidade estratégica no Sudoeste, cuja conquista em 18 de agosto precipitou o regresso dos taliban ao poder em menos de uma semana.

Ghazni, um reduto onde só em 2013 abriu a primeira escola para meninas, caiu sem resistir aos “estudantes do Islão”, mas, quando eles chegaram, Zarlasht já se tinha mudado para Cabul.

“Muitas áreas nunca deixaram de estar sob controlo dos taliban e do Daesh”, diz ela. “Eles não aceitaram bem que os rapazes fossem à escola”, por isso, ao dar aulas particulares e clandestinas a raparigas, a jovem educadora colocou-se na linha de fogo. “Os meus primos avisaram-me que os estava a pôr em risco, que podiam ser degolados.”

Uma aula da Pen Path numa escola para rapazes numa província afegã
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path

Agora, em Cabul, em cuja universidade se licenciou em Literatura Inglesa em 2017, Zarlasht continua a ensinar as alunas por WhatsApp (foi também por este meio que falou comigo), aproveitando as visitas dos primos para enviar livros e outro material de apoio “escondidos em roupas ou tapetes”.

Chegou a ter mais de 400 alunas, do 8º ao 12º ano. Ensina-lhes várias matérias, mas principalmente inglês. Por enquanto, “as escolas até ao 6º ano, continuam a ter autorização de funcionar, mas não há garantias.”

O pai de Zarlasht, viúvo há 18 anos, foi criticado por se ter instalado com os 3 filhos em Cabul, “cidade de pagãos”, onde ela “adorava a atmosfera refrescante, o bulício dos bazares, das praças, dos cafés de Internet e dos restaurantes, o convívio humano sem restrições, a liberdade de andar pela rua e de se vestir como queria.”

“Agora, poucas são as mulheres que se arriscam a sair de casa, a não ser para assuntos urgentes”, constata Zarlasht. “Toda a gente parece muito deprimida. Toda a gente tem medo do novo regime. Toda a gente tem medo do futuro. Também as minhas aulas são agora como consultas de psicologia. As crianças mostram-se angustiadas. O meu papel é ajudá-las a não se sentirem sozinhas, encorajá-las a não desistir.”

Os voluntários da Pen Path percorrem todas as províncias afegãs tentando persuadir os pais a deixarem as filhas frequentar as escolas da organização; os taliban impediram as meninas de continuar os estudos desde que voltaram ao poder
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path

Que aspirações têm os seus alunos? “Muitos deles querem ser médicos, porque há doenças graves na família e porque os serviços de saúde são muito maus. Outros querem ser professores, porque há uma grande falta deles nas províncias, sobretudo mulheres. E todos querem ser voluntários, como eu”, responde Zarlasht.

Desde que há seis anos se juntou à Pen Path, em part-time, Zarlasht vem notando progressos importantes. “De início, os líderes tribais e religiosos em Ghazni nem sequer me queriam ouvir. Não estavam dispostos a aceitar sequer aulas para rapazes. Mas insisti e eles cederam. Noutras províncias, não foi tão duro. Assim que contactávamos as famílias, éramos recebidos com sorrisos.”

“Nas últimas duas décadas, as mentalidades foram mudando e tem havido progressos”, reconhece Zarlasht. A taxa de literacia entre os jovens, por exemplo, aumentou para 65%, embora permaneça um fosso entre raparigas (29,8%) e rapazes (55%); o número de crianças inscritas nas escolas também aumentou de 3,8 milhões em 2003 para os atuais 6,3 milhões. Mas será que os taliban mudaram?

Em 2010, os irmãos Wesa abriram a primeira biblioteca em Kandahar, na casa da família em Spin Boldak. “Conseguimos juntar uns 5500 livros” comprados e doados
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path

Zarlasht não acredita nisso, mas acha que é preciso “dar tempo ao tempo”. Que as manifestações de protesto de mulheres, nas quais têm participado as suas amigas, podem ser “contraproducentes”, e que “seria melhor encontrar outros fóruns que não as ruas para dizer, na cara dos taliban, que a sua interpretação do Corão é uma fraude”.

Zarlasht quer lembrar-lhes que as mulheres de Maomé, profeta do Islão, foram empresárias, como Khadija, ou participaram em batalhas, como Aisha. “Não há suratas nem hadiths que neguem os direitos das mulheres.”

Apesar do medo e da angústia gerados por um movimento cujos dirigentes se gaba de não terem frequentado universidades e que quer reduzir as mulheres – metade da população – ao papel de mães, fechadas em burcas, Zarlasht Wali não tenciona abandonar o Afeganistão. 

“Se nos formos embora, quem vai ficar para continuar a missão de salvar o país?”, pergunta ela. “Tenho responsabilidades para com o meu povo. Não receio perder a vida. Morreremos todos, mais cedo ou mais tarde. Para que a nossa luta na Pen Path não tenha sido em vão, temos de ser fortes e continuar.”

Mulheres e homens, voluntários da Pen Path, desafiam as regras dos taliban, por vezes sob condições climáticas adversas, para promover a educação da meninas nas zonas mais inóspitas do Afeganistão
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path
Zarlasht Wali, professora e voluntária da Pen Path, ergue um cartaz onde se lê “As meninas não devem ser privadas da educação”
© Cortesia de Zarlasht Wali

Em Kandahar, Matiullah Wesa suspira e dá uma gargalhada quando lhe perguntamos se os novos governantes o assustam, ainda mais depois de ele ter decidido alargar a sua missão educativa à “promoção dos direitos humanos, contra a discriminação e a violência, contra a exploração infantil [pelo menos ¼ das crianças afegãs entre os 5 os 14 anos trabalham ou mendigam nas ruas para alimentar as famílias] e contra o tráfico de drogas” (que representa 60% das receitas dos talibãs).

A Pen Path também distribui alimentos aos mais necessitados e envolveu-se numa campanha de prevenção da Covid-19. “É um trabalho humanitário e social”, assevera, confiante de que não será visto como uma “ameaça política”.

“A situação é difícil, mas estou disposto a correr todos os riscos”, assegura. Incansável, continua a percorrer as zonas rurais onde vivem mais de 70% dos afegãos, enfatizando a mensagem de que “educar uma menina, da primária à universidade, é educar uma nação”.

Numa gravação áudio em pashto que Matiullah traduziu para inglês, Gualai, uma garota de 13 anos, partilha a tristeza de a escola feminina Mohammad Akbar, em Spin Boldak, ter sido encerrada em 2019, e a alegria de poder continuar a estudar em casa graças aos livros distribuídos pelos voluntários da Pen Path.

“Só estou no 4º ano, mas já poderia estar no 6º, como os meus primos – a escola deles não fechou”, lamenta Gualai. “Espero que a comunidade internacional nos ajude a manter abertas as escolas para as meninas. Gostava de ser piloto de aviões. É o meu sonho.”

Matiullah e Attaullah Wesa, os irmãos fundadores da organização sem fins lucrativos Pen Path
© Emroo Photo | Cortesia de Pen Path
 
Zarlasht Wali, professora de inglês, uma das voluntárias da organização Pen Path
© Cortesia de Zarlasht Wali

Este artigo, aqui na íntegra, foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO, edição de 17 de Setembro de 2021 | This article was originally published in the Portuguese weekly newspaper EXPRESSO, September 17, 2021 edition

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