EUA voltaram a ter um presidente católico, 60 anos depois de John Fitzgerald Kennedy. Os fiéis da Igreja de Roma que, em 1960, votaram em bloco no seu candidato já não são um grupo insular e estão divididos como a própria nação. Entrevista com Natalia Imperatori-Lee, professora de estudos religiosos e eclesiásticos em Nova Iorque, para quem o novo inquilino da Casa Branca representa uma mudança de paradigma na política americana. (Ler mais | Read more..)

© Kevin Lamarque | CNS | Reuters | America magazine
Joe Biden, o homem que vai à missa todos os domingos, que em momentos de contemplação ou aflição retira do bolso um rosário que nunca o abandona, que tem uma relação complicada com padres e bispos e prefere os conselhos e ensinamentos das freiras da sua infância, é desde Janeiro o segundo presidente católico dos Estados Unidos da América.
“É à minha religião que vou buscar a ideia de mim mesmo, de família, de comunidade, de um mundo mais vasto”, escreve o sucessor de Donald Trump na autobiografia Promises to Keep: On Life in Politics. Para ele, o que conta “não é tanto a Bíblia, as bem-aventuranças, os Dez Mandamentos, os sacramentos ou as orações” que aprendeu, mas sim “a cultura católica”.
Não tem sido nem será fácil para Biden, o mais jovem senador, aos 36 anos, e o mais velho presidente, aos 78, separar fé e política, sobretudo quando tem de tomar decisões que contrariam a doutrina da sua igreja.
No passado, para desgosto do seu Partido Democrata, Biden havia sido mais intransigente, votando contra a atribuição de fundos federais de apoio a mulheres que abortassem, até mesmo em casos de incesto ou violação. Mas rapidamente se adaptou a uma sociedade mais secular e a uma comunidade católica mais liberal. “

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Ele é fiel aos conselhos do Papa Francisco, que alertou para não nos deixarmos obcecar por questões como o aborto e nos concentrarmos em servir os pobres e oprimidos”, disse ao diário The Washington Post a Irmã Simone Campbell, conselheira de Biden e directora executiva da NETWORK, organização católica em defesa da justiça social.
Aos que hoje questionam se o novo presidente “é suficientemente católico”, ao contrário do que, há 60 anos, acontecia com JFK, quando os americanos receavam que fosse “demasiado católico” para governar uma nação de maioria protestante, Natalia Imperatori-Lee, professora e coordenadora do programa de Estudos Católicos do Manhattan College, em Nova Iorque, ressalva que Biden “não é um teólogo, mas um político”. E acredita que ele governará com “uma visão respeitadora dos direitos humanos” assente no Evangelho.
Cubana-americana natural de Miami, na Florida, um estado onde residem muitos dos que fugiram de ditaduras comunistas na América Latina e que Trump venceu, em parte, graças à falsa mensagem de que Biden “é um socialista”, a autora de Cuéntame: Narrative in the Ecclesial Present e membro do Conselho de Directores da Sociedade Teológica e da Academia dos Teólogos Hispânicos Católicos dos EUA não tem dúvidas de que, com “empatia e compaixão”, o devoto Biden será a antítese do profano Trump.
“Ele quer concentrar-se em curar uma nação dividida, em controlar a pandemia [mais de 23 milhões de casos e quase 400 mil mortos] – e isto é ser pró-vida!”, exaltou ela, numa entrevista que me deu, por e-mail.

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Joe Biden é o segundo presidente católico na história dos EUA. Só por isso é um acontecimento importante?
É um acontecimento importante para os católicos dos EUA, porque alguém que partilha a sua fé chega ao mais alto cargo da nação. No entanto, desde a eleição de Kennedy, outros católicos romanos neste país ascenderam a postos influentes na política e na economia.
Em 1960, JFK teve de afugentar os medos de que seria mais leal à Santa Sé do que à pátria (1), mas obteve uns 80% do chamado “voto católico”. Sessenta anos depois, os católicos estão praticamente divididos ao meio entre os principais partidos – os católicos brancos votaram em Trump e nos republicanos; os católicos latinos votaram em Biden e nos democratas. Como é que explica as mudanças?
As mudanças indicam que o voto católico se aproxima das tendências raciais/étnicas e económicas que dominam a paisagem eleitoral nos EUA.
Em sua opinião, quais foram os temas religiosos que definiram as eleições?
Creio que a pandemia de Covid foi um tema definidor, assim como os protestos [do movimento Black Lives Matter/ Vidas Negras Importam] exigindo justiça racial, no Verão passado.

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Como é que a fé de Biden vai moldar a sua presidência?
Joe Biden é um homem de uma fé profunda, uma fé que o tem amparado em tragédias que nenhuma família deveria sofrer (2). Numa altura em que milhares de pessoas morrem diariamente de Covid, Biden tem a empatia e a compaixão necessárias para liderar o país. E essa empatia provém da sua fé permanente. Ele assiste à missa todas as semanas e nos dias sagrados de obrigação.
Trump não teve compaixão: fechou as fronteiras a refugiados, incluindo a cristãos perseguidos do Médio Oriente, insultou países africanos, aproximou-se de déspotas e virou as costas a aliados e instituições multilaterais. O que espera de Biden e da vice-presidente Kamala Harris – a primeira mulher negra-asiática a exercer esse cargo, uma protestante da Igreja Baptista, filha de uma hindu e casada com um judeu?
Acho que Biden cumprirá a promessa de, significativamente, aumentar [para 125 mil por ano], o número de refugiados autorizados a viver nos EUA. Esse número foi muito reduzido pela administração Trump (3), o que constitui uma violação dos direitos humanos.

© Samuel Corum | Getty Images
Depois do assalto ao Capitólio por apoiantes de Trump, acha que será possível a Biden cumprir a promessa de reconciliar a América?
Não sei como ele vai lidar com o golpe, mas terá de procurar pôr fim à desinformação e punir os responsáveis. A minha família fugiu do regime comunista de Cuba por causa deste tipo de autoritarismo que agora vemos emergir nos EUA. É um tempo terrivelmente triste.
(1) Ficou para a história um discurso que, em 13 de Setembro de 1960, três meses antes das eleições, John F. Kennedy proferiu num encontro com um grupo de 600 ministros protestantes da Igreja Baptista, em Houston (Texas): – Porque sou católico, e nunca um católico foi eleito presidente (…), é aparentemente necessário que eu afirme, uma vez mais, não só o tipo de igreja em que acredito (…), mas o tipo de América em que acredito. Eu acredito numa América onde a separação da Igreja e do Estado é absoluta, onde nenhum prelado católico poderá dizer ao presidente (se ele for católico) como deve agir, e nenhum ministro protestante deve dizer aos seus paroquianos em quem votar (…) Acredito numa América (…) onde nenhum governante pede ou aceita instruções sobre política pública ao Papa, ao Conselho Nacional das Igrejas ou a qualquer outra fonte eclesiástica (…). Não sou o candidato católico a presidente. Sou o candidato do Partido Democrata que, por acaso, é católico. Não falo em nome da minha Igreja, e a Igreja não fala por mim.
(2) Neilia Biden, primeira mulher de Joe, e a filha de ambos, Naomi Christina, de 13 meses, morreram num acidente de viação em 1972. O filho mais velho, Joseph “Beau” Biden, morreu em 2015 de cancro no cérebro.
(3) Apesar de 80 milhões de pessoas terem fugido de guerras, fome e opressão, Trump quase desmantelou o programa americano que há quatro décadas oferecia santuário a refugiados. Reduziu esse apoio em mais de 80%. Em 2021, aceitaria receber apenas 15 mil.

© Cortesia de | Courtesy of Natalia Imperatori-Lee
Brancos e latinos: retrato de um eleitorado dividido
Estima-se em cerca de 51 milhões o número de católicos adultos nos Estados Unidos da América, representando 25% do eleitorado nacional, segundo o instituto de sondagens Pew Research Center.
É uma igreja que tem vindo a registar um declínio no número de membros, em grande medida devido à escassez de sacerdotes e aos escândalos de abusos sexuais entre o clero, os quais obrigaram o Vaticano a abolir a política de secretismo que permitiu durante anos proteger os abusadores do castigo das autoridades do Estado.
O Catolicismo, destaca o Pew Center, foi a religião que, na América, mais sofreu com a perda de fiéis – aproximadamente 13% das pessoas educadas em lares católicos identificam-se hoje como “não-católicas”, porque perderam a fé ou aderiram a outras crenças.
Por outro lado, é entre os católicos que se encontra a maior diversidade racial e étnica. Seis em cada 10 adultos são brancos, 1/3 são latinos e outros afirmam-se negros, asiáticos-americanos, etc. O grupo que mais cresce é o dos latinos.
Em comparação com outras comunidades religiosas, os católicos americanos estão “bem distribuídos” por todo o país; 27% vivem no Sul, 26% no Nordeste, 26% no Oeste e 25% no Centro-Oeste. Porque muitos latinos são católicos, “o seu crescimento contínuo está, gradualmente, a mudar o centro geográfico do Catolicismo”, do Nordeste e Centro-Oeste para o Sul e Oeste, onde totalizam agora três quartos da população.
Nos inquéritos do Pew Center, muitos católicos americanos reclamam “reformas significativas” na Igreja. Por exemplo, seis em cada dez defendem o casamento dos padres e o sacerdócio das mulheres. E quase metade quer o reconhecimento dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Em termos políticos, o voto católico está dividido, quase uniformemente, entre os que votam ou tendem a votar no Partido Democrata e os que favorecem os republicanos do GOP (Grand Old Party). A maioria dos católicos latinos é democrata, enquanto 54% dos católicos brancos são republicanos.
Nem sempre se verificaram estas divisões. De início, o que alguns analistas definem como uma “subclasse de imigrantes” católicos (muitos de origem irlandesa como a família de Joe Biden, outros com raízes portuguesas, polacas, italianas ou canadianas) mudou-se para os centros urbanos, aderiu a sindicatos e votava no Partido Democrata.
No entanto, a segunda e terceira gerações de católicos, inspiradas pelo sucesso de John F. Kennedy, mudou-se para os subúrbios brancos, “tornou-se mais culta, mais próspera economicamente e mais conservadora”.
Em 1972, quando o candidato presidencial democrata George McGovern apoiou o acesso livre ao aborto, e em 1973, quando o Supremo Tribunal legalizou esse direito nos 50 Estados americanos com o caso “Roe vs Wade” (os juízes deram razão a Jane Wade, que queria interromper uma gravidez fruto de violação, contra os argumentos de um procurador de Dallas/Texas, Henry Wade), muitos católicos sentiram que o seu partido já não os representava.
Aproveitando-se desta tendência, estrategas republicanos começaram a apelar aos valores morais dos católicos no Nordeste e no Centro-Oeste e dos evangélicos brancos no Sul.

© Michael Chow | The Republic
A partir dos anos 1980, o GOP convenceu muitos católicos a mudar o seu voto ou a tornarem-se independentes. Entre 1980 e 2000, só um candidato democrata ganhou a maioria dos votos católicos: Bill Clinton, um protestante ligado à Igreja Baptista, reeleito em 1996. O católico John Kerry não teve essa sorte em 2004 – foi derrotado pelo metodista George W. Bush.
Em 2016, Donald J. Trump conseguiu a presidência em grande parte porque conquistou estados tradicionalmente democratas – Pensilvânia, Michigan e Wisconsin – onde o número de católicos é muito superior ao de evangélicos.
Os católicos e os evangélicos brancos, mais conservadores, têm posições semelhantes em relação a muitos temas, partilhando por exemplo a oposição ao aborto e aos direitos LGBTQ. Trump enfatizou o apoio a essas posições e, há quatro anos, obteve 60% do voto católico. Em 2020, votaram em Trump 50% dos católicos – ou 22% do eleitorado. Biden obteve 49%.
O fosso segundo linhas étnicas e raciais foi enorme: entre os católicos brancos, 57% apoiaram Trump e 42% elegeram Biden. Entre os católicos latinos, 67% votaram em Biden e 32% em Trump.
“Os resultados mostram que a Igreja Católica está tão dividida como a nação, mas a verdadeira divisão é a raça e a etnia – não a teologia”, concluiu, em declarações à revista jesuíta America, David Gibson, director do Centro de Religião e Cultura da Universidade de Fordham, em Nova Iorque.

© Andrew Harnick | AP
Estes artigos, agora actualizados, foram publicados originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Fevereiro de 2021 | These articles, now updated, were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, February 2021 edition