Etiópia: A guerra de um Nobel da Paz

As batalhas no território onde o Reino de Axum se tornou um império cristão ameaçam desestabilizar o Corno de África e desintegrar o mais antigo e segundo mais populoso país do continente. Por que é que Abiy Ahmed decidiu confrontar ex-aliados no Tigré, depois de estender a mão à inimiga Eritreia? Para entender as origens e consequências deste conflito, entrevistei dois académicos etíopes, Asafa Jalata e Kassahun Melesse. (Ler mais | Read more...)

Crianças brincam em frente de uma casa destruída pelos bombardeamentos na região de Tigré, em Dezembro de 2020
© Eduardo Soteras | AFP | Getty Images | The New York Times

A guerra “é a epítome do inferno para todos os que nela combatem, e eu sei porque estive lá e voltei”, declarou o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, em 10 de Dezembro de 2019, ao receber o Nobel da Paz que premiou a reconciliação histórica com a vizinha Eritreia, no ano anterior.

“Não fui apenas um combatente”, mas também “testemunha da crueldade” da guerra e do que “ela pode fazer às pessoas”, disse Abiy. “A guerra torna os homens amargos. Homens sem coração e selvagens”.

Menos de um ano após este discurso, Abiy Ahmed envolveu-se noutra guerra, na região de Tigré, no Norte do país. E porquê, se agora se repete o que ele viu num passado não muito longínquo: “Irmãos a massacrar irmãos, homens idosos, mulheres e crianças a tremer de terror sob chuvas de balas e projécteis de artilharia (…), famílias destroçadas e comunidades permanentemente destruídas”?

Para Abiy, os combates no território do antigo Reino de Axum*, uma civilização que se converteu ao Cristianismo no séc. IV e, no seu apogeu, foi o Estado mais poderoso entre os impérios persa e romano do Oriente, são apenas uma “operação para impor a lei”, contra “terroristas e traidores”, depois de líderes tigrínios terem desafiado “a ditadura não eleita” em Adis Abeba.

A linguagem que desumaniza uns e outros é uma das características da guerra que começou, a 4 de Novembro, com uma ofensiva contra a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT), por esta, segundo Abiy, ter “pisado a última linha vermelha” com um ataque contra o importante Comando Militar Norte da Força de Defesa Nacional.

A região do Tigré desafiou o primeiro-ministro Abiy Ahmed, em Setembro de 2020, ao realizar eleições que haviam sido canceladas no resto do país, devido à pandemia de COVID-19
© Associated Press | NPR

Em 9 de Setembro, o Tigré já havia realizado eleições em desobediência a uma ordem federal que adiara as votações devido à COVID-19, prolongando o mandato do primeiro-ministro. O executivo regional tigrínio, reeleito por maioria e chefiado pelo líder da FLPT, Debretsion Gebremichael, um ex-guerrilheiro que aspira ao lugar de Abiy, foi imediatamente dissolvido e privado de fundos.

“Para já, Abiy conseguiu forçar a retirada do governo regional de Mekelle”, a capital do Tigré, “mas só o tempo dirá se as autoridades federais conseguirão controlar a cidade, porque as forças tigrínias continuam os seus ataques”, diz-me, em entrevista por e-mail, Asafa Jalata, especialista em política e sociedade da Oromia, da Etiópia e do Corno de África.

Sem fontes independentes no terreno, e com telefones e Internet cortados, é difícil avaliar a situação humanitária, mas Asafa, professor de Sociologia e de Estudos Globais e Africanos na Universidade do Tennessee, em Knoxville (EUA), cita várias informações que recolheu: “Milhares de tigrínios foram mortos e mais de 46 mil fugiram para o Sudão; milhares esconderam-se em grutas e nas florestas sem suficientes alimentos, medicamentos e protecção de segurança; uma milícia [da etnia] amara, uma força especial e tropas federais estão a assassinar civis – o que pode ser considerado genocídio”.

A ONU alerta para “o pior êxodo de refugiados etíopes das duas últimas décadas”, salientando que, desde 10 de Novembro e diariamente, “cerca de 4000” pessoas fogem da violência no Tigré, a pé e sem nada nas mãos, em direcção ao Sudão, onde já tentam sobreviver 96 mil refugiados eritreus e 100 mil deslocados etíopes.

A UNICEF estima que 2,3 milhões de crianças precisam de assistência. Bombardeadas, as igrejas já não são abrigos seguros. Os preços dos produtos básicos subiram em flecha. Sem combustível, as ambulâncias deixaram de levar doentes aos hospitais.

Habitantes do Tigré fogem da guerra, num autocarro que os leva para um acampamento temporário em Hamdayet, na fronteira da Etiópia com o Sudão
© Associated Press | Fox News

No Twitter, depois de clamar vitória, Abiy deu garantias de que as suas tropas “não atacam civis” e de que reedificará as vilas e cidades destruídas. Mas será ele capaz de restaurar a confiança dos tigrínios, muitos dos quais fugiram do Tigré Ocidental agora “administrado por burocratas e polícias da região de Amara?”, pergunta a revista The Economist.

Refugiados ouvidos pelo diário The New York Times, relatam horrores: “assassínios, decapitações, tortura, violações e pilhagens”, que atribuem a “milícias aliadas do Governo”.

Desde que a FLPT ajudou a derrubar a ditadura marxista (Derg) de Mengistu Hailé Mariam, em 1991, assumindo-se como “o árbitro com o monopólio do poder e do dinheiro” em Adis Abeba, até 2018, a maior contenda étnica é que a opõe os amaras e os tigrínios.

Estas duas comunidades estão unidas pela religião (cristã ortodoxa), língua e cultura, mas separam-nas um nacionalismo fervoroso e uma disputa irredentista por terras férteis no Norte montanhoso e inóspito, na fronteira com o Sudão e a Eritreia.

A “rápida” conquista de Mekelle e “alguns focos de resistência” foram confirmados por outro académico etíope, Kassahun Melesse. Mas este professor no Departamento de Economia da Universidade do Oregon (EUA), cuja investigação se propõe reduzir a pobreza na África Subsariana, acredita que a ofensiva de Abiy “terminará em breve”, com “a rendição” dos principais líderes da FLPT.

Em entrevista que me deu por e-mail, Kassahun também faz referência a um massacre de 600 amaras, na localidade de Mai-Kadra, confirmado pela Amnistia Internacional, presumivelmente cometido por tigrínios, quando a FLPT, que terá “uns 250 mil” soldados e milicianos, procurava escapar ao avanço do exército federal.

Abiy deu garantias de que as suas tropas “não atacam civis” e de que reedificará as vilas e cidades destruídas, mas os EUA e a Amnistia Internacional denunciam massacres e outras atrocidades
© Eduardo Soteras | AFP | Getty Images

Quem devemos culpar, afinal, por este conflito num país de 110 milhões de habitantes, o segundo mais populoso de África (depois da Nigéria), com dez regiões, 80 etnias, 88 línguas e 200 dialectos, que venceu uma fome devastadora (cerca de 1,2 milhões de mortos, 2,5 milhões de deslocados internos, 400 mil refugiados e 200 mil órfãos), entre 1983 e 1985, para se tornar, a partir de 2000, numa das economias de mais rápido crescimento?

Recordemos primeiro que, durante quase três décadas, a FLPT dirigiu a Etiópia com mão de ferro à cabeça de uma coligação de quatro partidos étnicos – a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE) –, na qual Abiy, líder da Organização Democrática Popular Oromo/ODPO, serviu como chefe dos serviços secretos e depois ministro da Ciência e Tecnologia.  

Em 2018, a FDRPE elevou Abiy à liderança e, consequentemente, à chefia do Governo (o primeiro oromo no cargo), para conseguir travar os protestos populares que se arrastavam desde 2015 e que forçaram a demissão de Hailemariam Desalegn, o sucessor de Meles Zenawi (1955-2012). Este tigrínio visionário, mas autocrático, foi o artífice de um sistema federal com uma Constituição que dá às várias etnias “o direito à autodeterminação”.

Esta licença constitucional para a “secessão” levou o povo Sidama a criar o seu próprio estado, num referendo em Dezembro de 2018. Os Wolayta, outro povo do Sul, exigem o mesmo estatuto, desde Agosto de 2020, mas o plebiscito popular que o legitimaria não foi aceite por Abiy.

Um devoto pentecostal, nascido na cidade de Agaro, na Oromia, filho de um muçulmano oromo e de uma cristã ortodoxa amara, o mais jovem líder africano, aos 44 anos, Abiy Ahmed acredita ter uma “missão divina”. A sua tese de doutoramento, sobre resolução de conflitos, defende a “unidade nacional a partir da diversidade étnica”. É o que ele designa por filosofia medemer, palavra amárica que se traduz por “viver juntos”.

Bandeiras da Etiópia e do povo amara numa manifestação em Adis Abeba de apoio às tropas de Abiy Ahmed no Tigré
© AFP | dailysabah.com

Assim que tomou posse, Abiy apressou-se a demonstrar que era um “reformador”. Permitiu o regresso de opositores exilados, libertou presos políticos, aliviou a censura, legalizou partidos proibidos, prometeu respeitar os direitos humanos, criar instituições eleitorais e judiciais independentes, atrair investimentos. E fez a paz com a Eritreia, o que lhe valeu o Nobel.

“Mais liberdade”, constatou o think-tank International Crisis Group, “contribuiu para intensificar a competição entre elites etno-regionais e outras facções por todo o país que agora reclamam uma mais equitativa partilha de recursos, maior autonomia e o fim das injustiças de que se sentem vítimas.”

Os problemas de Abiy Ahmed começaram quando decidiu marginalizar os antigos chefes e aproximar os oromos (maior grupo étnico, 35% da população) dos amaras (20%, a nobreza que clama descendência da Rainha de Sabá e do Rei Salomão, nostálgica da Abissínia, onde reinou até ao golpe apoiado pelos soviéticos em 1974).

Abiy dissolveu, então, a FDRPE e criou o Partido da Prosperidade (PP), dizendo: “Só temos uma opção, que é unirmo-nos; a outra opção é matarmo-nos.”

A FLPT não aceitou “esta porcaria de pan-etiopismo”, e o primeiro-ministro responsabilizou os dirigentes tigrínios pelos abusos do passado, demitindo-os dos principais cargos políticos e militares, ordenando a detenção de alguns deles. Isso forçou-os a entrincheirar-se no Tigré, de onde, supostamente, têm instigado múltiplos actos de violência que, nos últimos dois anos, causaram mais de 3 milhões de deslocados internos, segundo o Internal Displacement Monitoring Group.

Dezembro de 2020: Civis etíopes fogem dos combates no Tigré, seguindo num autocarro em direcção ao campo de refugiados de Um Rakuba, no Sudão
© Byron Smith | Getty Images

“Os tigrínios e Abiy estão a competir pelo controlo do Estado”, certifica Asafa Jalata, autor de oito livros, entre eles, Contending Nationalisms of Oromia and Ethiopia: Struggling for Statehood, Sovereignty, and Multinational Democracy. Quanto ao chefe do Governo, “recuou drasticamente nas suas promessas”, porque, tal como os amaras, “quer imitar anteriores líderes autoritários/coloniais, designadamente, [os defuntos imperadores] Menelik II [1844-1913] e Hailé Selassié [1892-1975]”.

Asafa critica ainda Abiy por “usar estratégias de pau e cenoura, para corromper e incorporar no PP determinadas organizações políticas, activistas e dirigentes, oferecendo-lhes nomeações [para cargos públicos], terras, casas e vidas de luxo, servindo-se deles contra grupos independentes e instituições cívicas”. E não lhe perdoa ter “renegado o movimento nacionalista oromo” com a justificação de que este “continua prisioneiro dos rancores do passado”.

“Em várias áreas da Oromia, como Wallaga, Guhi e Borana, foi imposta uma ocupação militar”, denuncia Asafa. “Muitos civis têm sido mortos extrajudicialmente, opositores, jornalistas e activistas foram presos” – um deles, Jawar Mohamed, líder do Congresso Federalista Oromo, principal adversário político de Abiy. “O foco já não é uma transição democrática, mas uma consolidação do poder pela violência e pelo terror.”

Se a Etiópia continuar por esta via, “há a possibilidade de se tornar num Estado falhado e se desintegrar”, teme Asafa. Outros analistas receiam um destino semelhante ao da Jugoslávia, nos anos 1990.

O sobrevivente tigrínio Abrahalev Minasbo, 22 anos, natural de Mai-Kadra, mostra os ferimentos com machetes a que foi sujeito num abrigo de refugiados do Tigré no Sudão
© Nariman El-Mofty | Associayed Press | usnews.com

Kassahun Melesse, que viveu durante 25 anos em Adis Abeba, onde mantém família e em cuja universidade se formou (além das universidades da Califórnia e de Harvard), não partilha a opinião de Asafa Jalata. Sim, admite, “este é um conflito com uma dimensão étnica” porque “há velhos e profundos ressentimentos e rivalidades” entre as várias comunidades, “mas a FLPT não está a combater por autonomia e sim pela influência económica que deteve” até 2018.

“O ataque surpresa ao Comando Norte foi planeado pela FLPT para destituir Abiy e recuperar os privilégios do poder federal, por isso, o primeiro-ministro não teve alternativa” a não ser lançar uma ofensiva no Tigré, assevera Kassahun.

“Não acredito que outro governo aceitasse negociar com um grupo tão hostil, que matou centenas de soldados e disparou rockets contra cidades e países vizinhos [entre eles, a Eritreia, que terá despachado tropas para o Tigré, em apoio de Abiy]. Isso enviaria uma mensagem errada a actores agressivos e desestabilizaria ainda mais o país.”

“O argumento de que Abiy está a sabotar as suas reformas não é convincente, porque é do seu interesse demonstrar que é capaz de oferecer estabilidade política e riqueza económica, para assim vencer as próximas eleições” em 2021, acredita Kassahun. “A não ser que uma nova geração de líderes tome medidas concretas para acabar com as divisões étnicas, avançando para uma política de ideias e valores, o risco de este tipo de conflitos continuar a afligir o país manter-se-á elevado.”

Abyi Ahmed, primeiro-ministro da Etiópia, no dia em que recebeu o Prémio Nobel da Paz 2019, e Debretsion Gebremichael, o líder do Tigré : aliados que se tornaram inimigos implacáveis
© Ken Opprann | Nobel Media (foto 1) Tiksa Negeri |Reuters (foto 2)

Asafa Jalata não hesita em usar a expressão “guerra civil” e está convencido de que se irá transformar “numa guerra de guerrilha”, um cenário que não está, todavia, nas previsões de Kassahun Melesse.

“Mesmo que os dirigentes da FLPT não sejam capturados em breve”, explicou, “há factores que impossibilitam um regresso à guerrilha: veteranos, como Debretsion Gebremichael, “estão mais velhos [na casa dos 60, 70 anos] e a maioria das novas forças no Tigré não tem experiência em qualquer tipo de batalha”.

“Além disso, a situação de segurança na Etiópia e a geopolítica no Corno de África”, que facilitaram 17 anos de luta armada contra Mengistu, já não existem”, adianta Kassahun.

“O governo militar de então combatia a Frente de Libertação do Povo Eritreu [FLPE] com homens experientes e músculo financeiro, o que lhe permitiu travar uma guerra prolongada. Naquela altura, também os governos do Sudão e da Somália não se entendiam com o governo etíope e apoiavam a FLPT e a FLPE. Actualmente, nenhum dos vizinhos da Etiópia tem vontade ou capacidade de dar esse apoio.”

“A Eritreia travou uma sangrenta guerra fronteiriça entre 1998 e 2000, que depois se tornou num ‘conflito congelado’] com o governo chefiado pela FLPT”, mas assinou a paz com Abiy. O Sudão, depois da cisão do Sudão do Sul (onde Adis Abeba tem uma missão de paz), “atravessa um período de transição, e a instabilidade na Etiópia costuma ter ali efeitos adversos, como se vê pelo fluxo de refugiados”.

Ao Djibuti, “de cujos portos a Etiópia, país sem litoral, depende para a importação e exportação dos seus produtos, interessa um vizinho próspero”. Quanto à Somália, “precisa imenso das tropas etíopes para derrotar [a organização terrorista] Al-Shabab”.

Uma guerra de guerrilha também é improvável, segundo Kassahun, porque se, nos anos 1980, a FLPT lutava contra o Derg, um regime “repressivo e impopular”, o que facilitou o recrutamento de combatentes, “já não conta com a simpatia da maioria dos etíopes, por não ter sido capaz de formar um governo democrático”.

Este é um conflito com uma dimensão étnica , porque há velhos e profundos ressentimentos e rivalidades entre as várias comunidades
© The Economist

Kassahun Melesse não acredita que a guerra no Tigré se alastrará aos países vizinhos: “A probabilidade é mínima.” Já Asafa Jalata teme que uma escalada resulte numa tragédia, sobretudo humanitária. “Isso criará oportunidade para os terroristas somalis alargarem a sua influência ao estratégico Corno de África.”

A guerra no Tigré não é a única crise que Abiy Ahmed enfrenta. Outras são a pandemia causada pelo SARS-CoV-2, chuvas e inundações sem precedentes (mais de 500 mil pessoas afectadas e 200 mil deslocadas desde Julho), uma praga de gafanhotos que destrói colheitas e um contencioso com o Egipto, que ameaça retaliar se a Etiópia avançar com o enchimento da “Grande Barragem do Renascimento Etíope”, um colossal projecto hidroeléctrico, no Rio Nilo Azul, contestado pelo Cairo e Cartum, receosos de que uma redução do fluxo de água venha a prejudicar o seu desenvolvimento energético, agrícola e industrial.

Estará Abiy Ahmed à altura destes desafios? Kassahun Melesse acha que “só o tempo dirá”, mas ressalva que “nem tudo é escuridão e desgraça”. Na frente interna, está convencido de que o primeiro-ministro vencerá a FLPT, “um inimigo temível”, o que “reforçará a sua autoridade”, e está convicto de que, com a eleição de Joe Biden, os EUA retomarão a ajuda à Etiópia cortada por Donald Trump para obrigar Abiy a fazer concessões. (A alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, não está tão confiante: “A situação é extremamente preocupante e volátil, e está a ficar descontrolada.”)

Asafa Jalata, por seu lado, reconhece que Abiy “tem os conhecimentos necessários para governar um império complexo”, mas repete que não deve ser tolerado o seu “comportamento ditatorial”, que subjuga os tigrínios e sacrifica os oromos a favor dos amaras.

Asafa Jalata, professor de Sociologia e de Estudos Globais e Africanos na Universidade do Tennessee, em Knoxville (EUA)
Kassahun Melesse, professor no Departamento de Economia da Universidade do Oregon (EUA) e um defensor de Abiy Ahmed
Na terra de Preste João, uma pequena comunidade tenta sobreviver

Se, no séc. XVII, o rei Suzeniôs, convertido por jesuítas portugueses, tivesse vencido uma guerra civil que durou cinco anos, talvez a Etiópia fosse hoje um país católico. Mas o conflito foi tão brutal que ainda hoje os fiéis da Igreja de Roma são olhados com desconfiança pelos dominantes cristãos ortodoxos.

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No Tigré, o estado regional onde se trava uma guerra para definir o que é a “nação etíope”, os católicos encontram-se entre as principais vítimas de impiedosos combates iniciados em Novembro de 2020.

“Embora pequena, a comunidade católica no Tigré está a ser muito afectada, porque tem sido desenraizada dos seus lares numa região onde sempre existiu imensa pobreza”, diz-me, em entrevista por e-mailEdward Clancy, um dos directores americanos da fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) que acompanha a situação da igreja local.

“Antes desta crise de violência, já mais de meio milhão de pessoas precisavam de alimentos e, agora, tudo se agravou drasticamente”, salienta Clancy.

As Nações Unidas alertam para “o impacto terrível sobre os civis”, e o Papa Francisco exortou os beligerantes a “rejeitar a tentação do conflito armado”, convidando-os “à oração, ao respeito fraterno, ao diálogo e à resolução pacífica das divergências.” 

“O primeiro-ministro Abiy [Ahmed] pretende acabar com o federalismo étnico, em vigor desde os anos 1990, mas a Frente de Libertação do Povo Tigré [FLPT, que instaurou esse sistema] pegou em armas para lutar pela independência da sua região, o que aumenta o risco de guerra civil e de novo conflito entre a Etiópia e a Eritreia”, avalia Clancy.

“A Etiópia tem uma população muito diversa e, ainda que o federalismo tivesse sido uma maneira de manter a paz, partilhando o poder, acabou por fomentar divisões e xenofobia”, explica Clancy. A violência dos últimos dois anos, que incendiou igrejas e encerrou escolas, clínicas e hospitais católicos, é atribuída pelo director de programas assistenciais da AIS a “uma mistura de divergências étnicas, políticas e religiosas que causam mais instabilidade do que medo”.

© Mihoko Owada | Catholic Standard

Os católicos, apenas 1% dos cerca de 110 milhões de habitantes da Etiópia, contribuem com “90% da ajuda social” (1) –, mas ainda são olhados com suspeição devido a um passado doloroso, relacionado com uma missão de jesuítas portugueses no século XVI. Já lá iremos.

O Cristianismo chegou ao antigo Império de Axum entre 325 e 340, quando dois monges fenícios de Tiro, Frumêncio e Edésio, sobreviventes de um naufrágio e inicialmente prisioneiros da família real, converteram o príncipe herdeiro, Ezana, de quem se tornaram perceptores. Foi Ezana, quando subiu ao trono, que elevou a sua fé a religião oficial da Etiópia – o segundo país a fazê-lo depois da Arménia. O bispo Frumêncio é ainda hoje venerado como santo apóstolo.

Conhece-se mal o período que se seguiu à conversão de Ezana, anota o historiador André Ferrand de Almeida (2) “mas sabe-se que, ao longo dos séculos V e VI, o país esteve sob influência das igrejas síria e grega”, e que “foram, provavelmente, monges sírios, a que a tradição se refere como ‘os nove santos’, que fundaram por essa altura diversos mosteiros na Etiópia (…) e traduziram o Novo Testamento do síriaco para o ge’ez (etiópico antigo).”

O Reino de Axum foi dos mais poderosos da passagem da Antiguidade para a Idade Média. Entre os séculos III e IV, conquistou territórios na Península Arábica, na Etiópia do Norte e na Pérsia. Destruiu Meroé, capital do Império Kush, conduzindo ao colapso deste centro político do Sul do Egito, assumindo o controlo das rotas comerciais que atravessavam o Mar Vermelho. (3)

© geeskaafrika.com

No século VII, apesar de os axumitas acolherem companheiros perseguidos de Maomé, começaram a multiplicar-se conflitos marítimos com mercadores muçulmanos. Foi uma “expansão muito lenta”, mas, ao longo dos séculos IV e X, o Islão já estendia a sua influência a “toda a orla costeira da Etiópia e também no Sul”, observa Ferrand de Almeida, e Axum acabou por cair. Seguiram-se várias dinastias.

A partir de 1434, o negus (imperador) Zara Jacob atribuiu a si próprio a missão de acabar com as quezílias que dividiam a Igreja Etíope. Usou todos os recursos para “estabelecer uma fronteira clara entre costumes cristãos e costumes pagãos ou heréticos”, e mobilizou as principais comunidades monásticas para um grande esforço de evangelização. O objetivo era criar “uma sociedade religiosamente homogénea, assim fortalecendo a unidade de um reino constituído por povos linguística e culturalmente diferentes”.

A opção de Zara de defender práticas judaicas do Antigo Testamento (como a observação do Shabat ou a circuncisão), aceites pela maioria da população, afastava a igreja etíope da comunhão com Roma e até de Alexandria/ Egipto, da qual dependia. Ainda assim, manteve sempre o interesse em aliar-se aos príncipes cristãos do Ocidente contra o Islão.

Ferrand de Almeida constata que a ideia de uma aliança com o Ocidente cristão “para combater os muçulmanos do Egipto e libertar a Terra Santa” surge, pela primeira vez, no início do século XVI. “Terá sido o dominicano Jordão de Severac quem identificou o imperador etíope como o lendário Preste João”.

© Chris Roche | selamtamagazine.com

Portugal, no reinado de João II, começou a busca (atribulada) daquele império em 1487, com os emissários Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, ambos fluentes em árabe, mas só em 1520 é que chegou à Etiópia a primeira embaixada oficial. Chefiava-a D. Rodrigo de Lima, que entregou ao negus Lebna Dengel uma carta do governador Diogo Lopes de Sequeira, traduzida para ge’ez (amárico), obtendo dele “luz verde” para a construção de fortalezas em Suaquém, Maçuá e Zeila.

Em Abril de 1521, D. Manuel recebeu notícias da chegada da embaixada de D. Rodrigo de Lima e, em Maio, escreveu ao Papa a Carta das Novas que vieram a El rei Nosso Senhor do Descobrimento de Preste João – “o primeiro documento impresso em português sobre a expansão”, segundo Ferrand de Almeida.

O problema é que o rei morreu em Dezembro, o que pôs fim aos “projectos de cruzada contra os muçulmanos” e adiou “maior envolvimento político e militar [português] no Oriente”.

Isso mudou em 1541, quando a rainha etíope Sabla Vangel fez chegar um pedido de auxílio a uma armada comandada pelo vice-rei da Índia, que se encontrava no Mar Vermelho para destruir bases navais dos turcos.

A situação era grave, constata Ferrand de Almeida: “Desde 1527 que o imã Ahmed ben Ibrâhim, do sultanato muçulmano de Adal e conhecido como Granhe (“O Canhoto”), fazia incursões consecutivas em território do império abexim [da Abissínia], varrendo o país a ferro e fogo. Quase todas as províncias tinham sido saqueadas, inúmeros mosteiros incendiados e as principais igrejas de Axum saqueadas.”

© The American University in Cairo Press | qz.com

Graças às suas vitórias militares (conquistou todo o Sul da Etiópia, mantendo “uma ameaça permanente” sobre o Tigré e Gojam), o Granhe conseguiu ainda convencer muitos etíopes, incluindo nobres e governadores de províncias, a abandonar o Cristianismo e a juntarem-se a ele.

“Num momento em que a civilização etíope cristã se encontrava à beira do aniquilamento às mãos dos invasores muçulmanos” (4), foi crucial o envolvimento de um corpo expedicionário de 400 soldados vindos de Goa e comandados por D. Cristóvão da Gama. Este foi capturado e morto numa das batalhas, mas o Granhe também morreu, em 1543, às mãos dos portugueses, e o seu exército de afaris e somalis pôs-se imediatamente em fuga.

Na sequência desta “devastadora guerra”, e porque a Etiópia pedira a continuação da ajuda de Portugal, chegou ao país, em 1557, um primeiro grupo de missionários jesuítas, “cuja função foi, originalmente, de prover às necessidades espirituais da pequena comunidade católica composta por portugueses e indianos, e dos seus descendentes, na região de Adwa (Fremona, [antiga cidade no Tigré actual])”, informa o antropólogo Manuel João Ramos.

A influência destes missionários na corte etíope foi crescendo, gradualmente, não apenas devido à “sofisticação da sua doutrinação teológica e à qualidade da sua actuação na intriga política”, mas também “às expectativas autóctones de apoio militar e técnico português, aos conhecimentos de arquitectura e engenharia proporcionados pelos irmãos leigos vindos da Índia”.

Em 1620, o rei Suzeniôs anunciou publicamente a adesão à fé latina, “com a intenção estratégica de reforçar o seu poder político e a sua independência face ao influente clero ortodoxo”. (5) Imediatamente chegaram à Etiópia numerosos sacerdotes jesuítas que introduziram reformas católicas na liturgia, “alterando radicalmente práticas religiosas ancestrais”.

O próprio rei, que instituiu o Catolicismo como religião do Estado, proibiu a Igreja Ortodoxa e adoptou medidas repressivas para que o povo emulasse a sua conversão.

© Tiksa Negeri | Reuters

O resultado foi uma “guerra civil devastadora” que durou cinco anos e obrigou o negusa negast (rei dos reis) Suzeniôs a abdicar da coroa, a favor do filho, Fasiladas. Este rejeitou o Catolicismo e, em 1633-34, perseguiu expulsou ou matou todos os missionários jesuítas.

Para “obliterar a sua memória”, também mandou “destruir grande parte dos vestígios materiais da sua presença”: o interior de igrejas e residências foi pilhado, objectos litúrgicos foram destruídos, livros foram queimados.

“Tivesse Suzeniôs vencido, e a Etiópia seria hoje um país católico” (6), mas estava profundamente isolado dos súbditos. A guerra fez com que os europeus fossem proibidos de entrar neste “Sião Africano” durante 200 anos, uma decisão, argumentam alguns, que acabou por preservar a independência da nação durante a chamada “Partilha de África”, a divisão do continente selada na Conferência de Berlim de 1884-1885, que conduziu à exploração de recursos e à opressão de povos. A antiga Abissínia orgulha-se de ter sido “o único império africano não colonizado pelos europeus”.

No século XIX, ainda se verificou, porém, outro esforço missionário para evangelizar o reino etíope, desta vez concentrado nas províncias do Norte da Eritreia (independente desde 1993) e na região do Tigré. Esta comunidade católica cresceu durante a ocupação italiana da Eritreia, de 1882 até 1947.

© vittoriosciosia.com

Actualmente, a grande maioria dos católicos vive em aldeias remotas e muitos queixam-se de ainda serem vistos com “desconfiança”, devido à guerra de Suzeniôs. “É triste que conflitos de há vários séculos continuem a causar problemas, apesar de a comunidade católica ter uma influência positiva”, lamenta Edward Clancy, da AIS.

“Na Etiópia, a Igreja Católica construiu duas dúzias de hospitais e mais de uma dúzia de centros de apoio a pessoas idosas e portadoras de deficiência. São instituições que não servem apenas católicos, mas todos os que precisam. A Igreja continua a apoiar os mais pobres e os mais vulneráveis.

Escolas católicas educam mais de 120 mil alunos, ajudando, especialmente, jovens raparigas a aceder a uma educação superior. Cerca de mil missões servem comunidades que sobrevivem com o mínimo e ensinam-lhes a viver em paz com outros grupos étnicos que sempre consideraram inimigos. Seria de esperar que este serviço aos outros contribuísse para que velhos rancores fossem esquecidos ou perdoados”. Mas ainda não.

No entanto, realça Clancy, “há muito em comum” entre a Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo e a Igreja de Roma. À primeira vista, os ritos ortodoxos etíopes são mais parecidos com os do Judaísmo e estranhos aos ritos católicos, mas a realidade é que a nossa Missa e muitos dias festivos também têm profundas raízes judaicas.

É simbólico o facto de estas duas igrejas serem, ao mesmo tempo, diferentes e semelhantes. Se repararmos bem, cada uma delas procura educar, evangelizar e ajudar as pessoas a crescer.”

As duas igrejas enfrentam também um outro desafio: o proselitismo de cristãos evangélicos por toda a África. “Pregadores do ‘Evangelho da Prosperidade’ tentam, cada vez mais, atrair católicos e ortodoxos, pouco catequisados, com promessas de riqueza e uma vida melhor”, reconhece Clancy.

“Infelizmente, isto é um subproduto das profundas divisões entre os cristãos. Os católicos etíopes necessitam de maior apoio da Igreja de Roma, porque, sendo uma comunidade pequena, e dadas as necessidades extraordinárias de tantos pobres, é-lhe difícil ser eficaz e sobreviver.”

FONTES: (1) Estimativa do bispo colombiano D. Rodrigo Mejía Saldarriaga, vigário-apostólico de Soddo-Hosanna, em entrevista ao portal católico pt-zenit.org; (2) André Ferrand de Almeida, “Da Demanda do Preste João à Missão Jesuíta da Etiópia: A Cristandade da Abissínia e os Portugueses nos Séculos XVI e XVII, Lusitania Sacra, 2º série, 11 (1999); (3) Cláudio Fernandes, “O reino de Axum”, Brasil Escolahttps://brasilescola.uol.com.br/historiag/o-reino-axum.htm(4) Manuel João Ramos, “O Património Português na Etiópia” in Fernando Cristóvão et al. “Dicionário Temático da Lusofonia, ACLUS – Texto Editores, 2005; (5) “De Fora, da Terra: Presença Jesuíta na Etiópia do Séc. XVII”, em https://home.iscte-iul.pt/~mjsr/html/expo_jesuits/indice.htm(6) James Jeffrey, The Trials of Ethiopian Catholics”, Catholic Herald.

Um mosaico étnico-religioso

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  • A República Democrática Federal da Etiópia é um dos Estados mais antigos do mundo e um dos mais estratégicos, no Corno de África, fronteiriço com a Eritreia, a norte; o Sudão, a oeste; o Sudão do Sul, a sudoeste; o Quénia, a sul; a Somália, a leste; e o Djibuti, a nordeste.
  • A Etiópia, predominantemente agrícola (mais de 80% da população vive em zonas rurais) não tem litoral. Perdeu toda a sua costa, ao longo do mar Vermelho, quando a Eritreia se tornou independente de jure, em 1993. Mas tem o Nilo Azul, que é o principal curso de água, em termos de volume, do rio Nilo, que nasce no Lago Tana, no Noroeste.
  • Com mais de 102,5 milhões de habitantes, A Etiópia é o segundo Estado mais populoso de África, depois da Nigéria. À excepção de cinco anos de ocupação da Itália de Mussolini, também nunca foi colonizado.
  • A Igreja Ortodoxa Tewahedo, das primeiras do Cristianismo, faz parte da sua singular herança cultural, mas, embora seja a religião dominante (43,5%), não é a única no país. Há também muçulmanos (33,9%), pentecostais ou protestantes (18,6%), crenças tradicionais (2,6%) católicos apostólicos romanos (1%) e outros (0,7%).
  • Os seus habitantes repartem-se por cerca de 80 grupos étnicos, sendo os principais os oromo (35,3%), amara (26,2%), somali (17,3%), tigrínio (6%), sidama (5,9%), gurage (4,35), wolayta (2,7%) e outros (2,3%).
  • Os etíopes exprimem-se em 88 línguas e cerca de 200 dialectos. As línguas semitas, predominantes no Norte e no Centro, incluem o ge’ez (usado hoje só para as escrituras religiosas ortodoxas), o amárico, o tigrínio, o gurage e o hareri (no Leste e no Sul). As línguas de origem cuxítica são as dos grupos étnicos oromo (nas áreas ocidentais e orientais, no Sul e no Sudoeste), somalis (dominante entre os habitantes das regiões de Ogaden e Hawd) e afar (comum na Planície Denakil). As línguas de origem omítica, a mais importante da qual é a da etnia wolayta, são faladas no extremo Sudoeste. Entre as línguas de origem nilótica (da família do Nilo-Sara), a dominante é a kunama (com dialectos quase imperceptíveis), usada quer na Etiópia como na Eritreia.
  • A Etiópia elegeu em 2018 a primeira mulher para a Presidência da República, Sahle-Work Zewde, no ano em que também ascendeu à chefia do governo o primeiro oromo: Abiy Ahmed.
© Eduardo Soteras | AFP | Getty Image | Foreign Policy

Estes artigos foram publicados originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Janeiro de 2021 | These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, January 2021 edition

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