A nova (des)ordem pós-soviética

Depois de seis semanas duma guerra sangrenta no Nagorno-Karabakh – o enclave onde começou o fim da URSS –, a Rússia impôs à Arménia e ao Azerbaijão um cessar-fogo que altera a geopolítica do Cáucaso. Para entender este conflito e como Moscovo reorganiza a sua “esfera de influência”, entrevistei Richard Giragosian, um dos mais respeitados especialistas regionais. (Ler mais | Read more...)

A perda da estratégica cidade de Shushi [ou Shusha, para o Azerbaijão] a segunda maior do Nagorno-Karabakh, apenas a 14 km de Stepanakert [Berdzor], “foi um ponto de viragem crucial”
© Sergey Ponomarev | The New York Times

O director do Regional Studies Center (RSC), um think tank independente em Ierevan, capital da Arménia, não tem dúvidas. “Depois de 40 dias e 40 noites de combates intensos” no disputado enclave do Nagorno-Karabakh (N-K), a nação cristã, “orgulhosa, desafiadora e resiliente”, que sobreviveu a um genocídio (1) “tinha poucas opções e ainda menos alternativa”. Ou aceitava um cessar-fogo imposto pela Rússia, cedendo território ao Azerbaijão, ou arriscava-se a uma nova tragédia humana. 

Os combates cessaram à meia-noite de 10 de Novembro, quando, na sua página de Facebook, o primeiro-ministro arménio, Nikol Pashinian, confessou a “indescritível e dolorosa” aceitação de um acordo com os presidentes russo, Vladimir Putin, e azerbaijano, Ilhan Aliev.

As tréguas permitiram “salvar o que resta do Nagorno-Karabakh e poupar a população arménia ao avanço das tropas azerbaijanas”, em posição de superioridade, militar e tecnológica, graças ao apoio da Turquia e de Israel, assevera Richard Giragosian (*), numa entrevista que me deu, por e-mail.

Segundo a lei internacional, o Nagorno-Karabakh, habitado por uma maioria de arménios, pertence ao Azerbaijão, mas tem sido controlado de facto por Ierevan, desde que Baku perdeu a guerra de 1988-1994, que marcou o início do colapso da União Soviética (em 1991), o império a que pertenciam as duas repúblicas beligerantes.

Agora, segundo o acordo imposto por Putin, cerca de 2000 soldados de uma força russa de manutenção da paz vão instalar-se no montanhoso enclave no Cáucaso do Sul, estabelecendo “um perímetro de 5 km”. O objetivo, esclarece Giragosian, é “proteger e defender o vital ‘Corredor de Lachin [ou Berdzor]’ – a última bóia de salvação que liga o Nagorno-Karabakh à Arménia”.

Um velho arménio de muletas, Rafik Arakelyan, vê o noticiário num hotel em Goris
© Sergey Ponomarev | The New York Times
Celebrações em Baku, a capital do Azerbaijão. “Estamos felizes porque finalmente vencemos”, disse um habitante
© Ivor Prickett | The New York Times

Os arménios, forçados a recuar para Stepanakert [ou Xankändi], a capital do N-K, comprometeram-se a evacuar os distritos de Kelbajar, Aghdam e Lachin. Muitas das igrejas e monumentos cristãos do enclave, incluindo o histórico Mosteiro de Dadivank (agora um posto de observação russo), com estelas únicas gravadas em pedra, conhecidas como khachkars, situam-se nas áreas que serão entregues ao Azerbaijão.

“Numa aparente tentativa de estabelecer paridade”, anota Richard Giragosian, Moscovo determinou que “um outro ‘corredor’, muito mais vago, irá ligar o Azerbaijão ao seu exclave de Nakhichevan”, através da província arménia de Siunik, na fronteira com o Irão.”

O acordo também “não clarifica o ‘estatuto’ das restantes partes do Nagorno-Karabakh, ignorando o que se acertou em anteriores negociações”.

A recomendação de Giragosian é a de que, em futuros esforços diplomáticos, estejam presentes “todas as partes, incluindo os representantes democraticamente eleitos do Nagorno-Karabakh”, e não apenas os da Arménia. “Uma exclusão do N-K só prejudicará o potencial de durabilidade e sustentabilidade” deste compromisso.

Apesar de os inimigos terem aceitado o acordo “sob diferentes graus de coação ou repulsa”, a realidade é que, para os líderes de Ierevan e da autoproclamada “República de Artsakh”, não havia outra saída, assegura o analista arménio. A perda da estratégica cidade de Shushi [ou Shusha, para o Azerbaijão] a segunda maior do N-K, apenas a 14 km de Stepanakert [Berdzor], “foi um ponto de viragem crucial.”

Arménios acendem velas durante a última cerimónia religiosa no Mosteiro de Dadivank
© Mauricio Lima | The New York Times

O número de mortos, num e noutro campo, é estimado em “vários milhares” e o de desalojados em “130 mil”. Os danos causados às infra-estruturas (casas, hospitais, escolas, empresas) são incalculáveis. Arménios e azerbaijanos terão usado bombas de fragmentação e munições de fósforo, proibidas pelas convenções internacionais.

Em Ierevan, milhares de arménios denunciaram a “rendição” de Pashinian, gritando pelas ruas “traidor, traidor!”. Protestos diários tornaram-se violentos, com manifestantes a invadir as sedes do Governo e do Parlamento.

Por ceder às exigências da Rússia (“para evitar a queda de Stepanakert e a captura ou morte de 25 mil soldados arménios”) e recusar demitir-se, Pashinian está consciente de que pôs em risco a sua “vida física e política”. Em 14 de Novembro, o antigo chefe dos Serviços de Segurança Nacional (NSS) e líder de um partido da oposição foi detido com outros conspiradores por “planear o assassínio” do primeiro-ministro e “um golpe para usurpar o poder”.

Em Baku, também milhares as pessoas saíram à rua, não em fúria, mas júbilo, exibindo bandeiras do Azerbaijão e da Turquia, entoando hinos patrióticos. “A minha felicidade não tem limites”, confessou ao site eurasianet Malik Taghizada, veterano da guerra dos anos 1990 que já pode regressar à terra-natal, em Aghdam.

Soldados do Azerbaijão rezam fazem uma pausa nos combates para rezar na mesquita de Aghdam, o único edifício intacto na povoação © Ivor Prickett | The New York Times

Como explicar a ofensiva ordenada por Ilhan Aliev em 27 de Setembro no N-K, onde as sangrentas batalhas dos anos 1990 já haviam causado 30 mil mortos e quase um milhão de deslocados (700 mil dos quais azerbaijanos)?

Aliev, um oligarca que, desde 2002, governa com mão de ferro um país de “elites corruptas” (segundo várias organizações internacionais) e cada vez mais rico em petróleo e gás natural, “sentia-se verdadeiramente frustrado com a ausência de progressos substanciais no processo de paz” no N-K, concede Giragosian.

“É óbvio que Baku e Ancara planearam e coordenaram a ofensiva conjunta para Setembro, porque era o timing certo”, atesta Giragosian. “A Rússia estava distraída com a ameaça de novas sanções por ter envenenado o líder da oposição Alexei Navalni; os americanos estavam concentrados nas suas eleições presidenciais e a União Europeia [cuja falta de apoio a Pashinian o analista arménio critica severamente] estava ocupada em gerir a segunda vaga da pandemia de Covid-19.”

Um conflito congelado tornou-se, assim, repentinamente, uma “guerra cinética”. Com assistência militar e operacional directa da Turquia (que forneceu consultores, mercenários e drones), e de Israel (interessado em desestabilizar as províncias azeris do Irão fronteiriças com o Azerbaijão), a ofensiva de Aliev “obteve conquistas territoriais consideráveis” a norte e a leste do Nagorno-Karabakh”. As forças arménias, pelo contrário, “com defesas aéreas desactualizadas, sofreram pesadas baixas”.

Enquanto Ancara encorajava a ofensiva de Baku, a Rússia manteve-se “apática e quase invisível” durante seis semanas, até conseguir virar o jogo com o anúncio súbito de um armistício.

Soldados da força russa de manutenção da paz, perto do Mosteiro de Dadivank, na região montanhosa de Kelbajar
© Maurício Lima | The New York Times

Para a Rússia, esta “foi uma vitória por várias razões”, realça Giragosian. A primeira, porque lhe outorga “uma presença militar directa” no Nagorno-Karabakh – “o único conflito no espaço da antiga URSS de onde estava ausente e que a impedia de projectar, efectivamente, poder e influência”.

“Um segundo dividendo” é que a Rússia passou a exercer “maior controlo” sobre o Governo arménio. “Depois de uma reacção incaracteristicamente passiva e pensativa face à ‘Revolução de Veludo’ de 2018 [a sublevação popular que elegeu Pashinian], Moscovo perdeu a paciência e aproveitou a oportunidade de maximizar a pressão” sobre o Governo em Ierevan.

Putin está empenhado não apenas em “manter a Arménia na órbita da Rússia”, convenceu-se Giragosian, “como em limitar as opções da Arménia, evitando que estabeleça relações mais estreitas com o Ocidente”. O risco agora é o de a Arménia sacrificar a sua independência e soberania em benefício da Rússia.”

Giragosian observa, igualmente, que o cessar-fogo foi uma “iniciativa individual russa”, fora do âmbito do Grupo de Minsk da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), do qual a França e os EUA [que negligenciaram região] são co-presidentes.

“Como mediador oficial” no N-K e “único guardião de uma paz ténue”, a Rússia retirou a iniciativa diplomática” a Paris e a Washington, ainda que este conflito “tenha sido o único em que a Rússia colaborou com o Ocidente, e não contra o Ocidente”, como aconteceu, por exemplo, na Ucrânia (Crimeia) ou na Geórgia (Ossétia do Sul e Abkházia).

Novas campas da guerra de 2020 ao lado de velhas sepulturas da guerra dos anos 1990, num cemitério militar em Stepanakert
© Sergey Ponomarev | The New York Times

Outros analistas vêem a Turquia, e não a Rússia, como principal vencedor de uma guerra do século XXI com raízes antigas e profundas, porque a expressiva vitória do Azerbaijão “cimenta a influência de Ancara no Cáucaso, ‘quintal’ de Moscovo”.

“As consequências geopolíticas são desastrosas, não apenas para a Arménia, mas também para a Rússia”, garante Ruslan Pukhov, director do think-tank russo Centro para a Análise de Estratégias e Tecnologia, em declarações ao jornal britânico The Financial Times.

Sim, Putin “afirmou-se como árbitro regional indispensável, mas à custa de reconhecer a Turquia [sua rival na Síria e na Líbia] como actor geopolítico no Cáucaso”, acrescentou Pukhov.

“Por muito difícil e desagradável que tenha sido submeter-se” a Vladimir Putin, para a Arménia, “a Turquia representava uma ameaça maior, desestabilizadora e destrutiva”, concorda Giragosian.

Erdogan convenceu Aliev a aceitar o acordo de Putin, porque será um dos beneficiários, mesmo sem poder juntar os seus soldados às tropas russas que vão “manter a paz” no N-K. Com a devolução de Nakhichevan ao Azerbaijão, Ancara passa a ter acesso ao mar Cáspio, às repúblicas de expressão turca na Ásia Central e às “Novas Rotas da Seda” [Belt and Road Initiative] da China.

(1) Entre 1915 e 1923, autoridades turcas do Império Otomano levaram a cabo o extermínio e deportação maciça de 800 mil a 1,5 milhões arménios.

Richard Giragosian fundou e é director do think-tank independente Regional Studies Center, em Ierevan, a capital da Arménia, onde vive
© newsroom.aua.am

(*) Analista especializado em relações internacionais, com foco especial na política, segurança militar e economia da antiga União Soviética, Ásia e Médio Oriente, Richard Giragosian vive na Arménia, onde nasceu, fundou e é director do “think-tank” independente Regional Studies Center (RSC, www.regional-studies.org). É também professor visitante no Natolin Campus do Colégio da Europa em Varsóvia (Polónia), investigador no Centro de Estudos Europeus (CES) da Universidade Estatal de Ierevan e investigador associado no Instituto para a Análise da Segurança Global (IAGS), em Washington. Foi consultor da OCSE, dos departamentos de Estado e da Defesa dos EUA, da ONU e do Banco Mundial, do International Crisis Group e da Iniciativa para a Estabilidade Europeia (ESI). É ainda comentador regular da Rádio Europa Livre e da Rede de Segurança Internacional (ISN).

Nagorno-Karabakh: Um “espaço sagrado” de cristãos e muçulmanos

O conflito entre a Arménia e o Azerbaijão no enclave que, em russo, se traduz por “montanhoso” (Nagorno) e, numa amálgama de russo e persa, significa “jardim negro” (Karabakh), tem raízes profundas.

© Ivor Prickett | The New York Times

Situado no Cáucaso do Sul, entre a Ásia e a Europa, com menos de 150 mil habitantes, o Nagorno-Karabakh (N-K) faz remontar as suas actuais fronteiras à antiga província arménia de Artsakh, formada em 189 a.C.

Em 387 d.C., o Reino da Arménia foi dividido entre romanos e persas depois de uma longa guerra. Artsakh foi integrada na “Albânia Caucasiana”, assim designada para não se confundir como a Albânia dos Balcãs. Do ponto de vista étnico e até linguístico, nada separava os albaneses caucasianos dos primeiros habitantes de Karabakh.

Em 461 d.C., a Albânia Caucasiana passou a fazer parte de Arran, província do Império Sassânida. No séc. IX, os arménios revoltaram-se contra os conquistadores árabes e criaram o Principado de Khachen em Artsakh.

Persistiram também face às investidas do Império Bizantino, a ocidente, e de outros invasores, a leste: os seljúcidas; os mongóis e timúridas; e as federações turcas de Kara Koyunlu e Aq Qoyunlu. A vida política e cultural arménia foi capaz de sobreviver em “cinco principados” (Khamsa Melikdoms), entidades feudais e semi-independentes, que formavam o N-K.

Em 1724, a Pérsia foi dividida entre a Rússia e o Império Otomano, e o Nagorno-Karabakh incluído na província turca mais a leste. Doze anos depois, o general persa Nader Shah recuperou estes domínios com a ajuda dos melikdoms arménios e recompensou-os com mais soberania.

© Ivor Prickett | The New York Times

Tudo lhes corria bem até o príncipe Melik Shahnazar II Shahnazarian, do melikdom de Varanda, ter aceitado a suserania do líder turco Panah-Ali Khan Javanshir, forçando os restantes principados a integrar o Canato de Karabakh. Tal decisão provocou um êxodo arménio e uma vaga de imigração turca.

Em 1805, o Canato tornou-se estado vassalo do Império Russo. Em 1813, foi anexado pela Rússia e, em 1823, incorporado na Província Russa de Karabakh, onde nómadas azerbaijanos constituíam dois terços da população.

As autoridades russas favoreciam os cristãos arménios em detrimento dos muçulmanos azerbaijanos, que partilhavam a língua e a religião dos otomanos. Graças a este apoio, durante o século XIX, a população arménia de Karabakh foi aumentando de forma constante, ao mesmo tempo que um número cada vez maior de azerbaijanos partia para o Irão e para a Turquia.

O caos da Revolução Russa de 1905 foi propício à eclosão de um conflito: milhares de azerbaijanos e arménios mataram-se em vários massacres nas principais cidades da região. Uma escalada tornou-se inevitável após a queda do Império Russo em 1917.

Em 1918, quando um Azerbaijão independente reivindicou o Karabakh, as províncias controladas por arménios resistiram e formaram o Conselho Nacional Arménio de Karabakh. Em 1920, atacaram quartéis azerbaijanos. Em retaliação, os azerbaijanos arrasaram as guarnições arménias em Shushi/Shusha, na altura a maior cidade de Karabakh, e chacinaram milhares de civis.

Em Abril de 1920, focado no Nagorno-Karabakh, o Azerbaijão perdeu o controlo de Baku, a sua capital, conquistada por forças bolcheviques. Em 1921, todo o Cáucaso do Sul estava sob controlo da URSS. O plano inicial era incluir o N-K na recém-criada “República Socialista Soviética da Arménia”, mas o novo Comissário das Nacionalidades, Josef Estaline, não o aprovou, apesar de 94% da população do enclave ser arménia.

© Reza | Getty Images | The New York Times

A situação geopolítica havia mudado – soviéticos e turcos normalizaram laços bilaterais –, e o N-K foi integrado, como oblast (província) autónoma, na “República Socialista Soviética do Azerbaijão”, numa cedência à Turquia.

Os arménios queixavam-se de que Baku restringia a sua autonomia, linguística e cultural, mas a URSS, que não tolerava nacionalismos étnicos, ignorou sempre os protestos contra o statu quo – até 1988. Neste ano, tirando partido das políticas de glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação) de um novo líder comunista em Moscovo, Mikhail Gorbatchov, os arménios no N-K começaram a exigir plena reunificação com a Arménia. Começaram ataques contra arménios, nas cidades azerbaijanas de Baku e Sumgait, e ataques contra azerbaijanos, no N-K e na Arménia. Moscovo impôs a lei marcial.

Em 1989, os confrontos intensificaram-se. Em 1991, a situação descontrolou-se, quando o Azerbaijão se declarou independente da URSS, em Outubro, e o N-K se declarou independente do Azerbaijão, em Dezembro, autoproclamando-se “República de Artsakh”.

Baku e Ierevan embrenharam-se numa guerra total. Cerca de 30 mil pessoas, incluindo civis, foram mortas. Mais de um milhão tornaram-se deslocados internos ou refugiados. Os dois campos envolveram-se em campanhas de limpeza étnica e massacres.

© Sergey Ponomarev | The New York Times

Em 1994, os arménios forçaram a retirada das forças de Baku de “Artsakh” e expandiram as suas fronteiras ocupando sete distritos adjacentes azerbaijanos. Em 12 de Maio, foi assinado o Protocolo de Bishkek, um cessar-fogo negociado pela Rússia que deixou o N-K no Azerbaijão e as tropas beligerantes separadas por uma “linha de contacto”, hoje uma das três fronteiras mais militarizadas do mundo. Nunca foi assinado um acordo de paz.

No último quarto de século, “Artsakh”, que deu dois primeiros-ministros a Ierevan, tornou-se num Estado de facto, apoiado pela influente e próspera diáspora arménia, mas apenas reconhecido pelas repúblicas da Abkházia e da Ossétia do Sul e da Transnístria – nenhuma delas reconhecida pela ONU.

Em Setembro de 2020, depois de 45 dias de uma guerra implacável, o N-K e a Arménia, militarmente débeis, foram obrigados pela Rússia a ceder território ao Azerbaijão, fortalecido pela Turquia e Israel.

Será possível um compromisso entre duas comunidades que reclamam a posse de um “espaço sagrado” para ambas? “É possível e essencial”, garante Thomas De Waal, autor de Black Garden: Armenia and Azerbaijan Through Peace and War, um dos raros livros sobre o N-K. “Arménios e azerbaijanos vivem lado a lado e pacificamente na Geórgia e foram vizinhos amigáveis durante longos períodos da história”, afirma De Waal. Esta narrativa “não pode continuar ausente”, mas precisa de “ajuda e pressão” da comunidade internacional.

Fontes: 

The Economist; brittanica.com; carnegieeurope.eu; geohistory.today; nationalgeographic.com

O “quintal” de Putin está a arder

O presidente russo arrefeceu os ânimos no Nagorno-Karabakh, mas outros “fogos” alastram, enfraquecendo a sua autoridade em territórios da antiga União Soviética, 30 anos após a queda do império comunista.

MOLDOVA

Maia Sandu fala com apoiantes em Chisinau, capital da Moldova, um dia depois de ter vencido a segunda volta das eleições presidenciais © Sergei Gapon | AFP | Getty Images

No dia 15 de Novembro de 2020, Maia Sandu, candidata que defende a adesão à União Europeia (UE), tornou-se a primeira mulher presidente da antiga república soviética da Moldova, ao derrotar, na segunda volta das eleições, o chefe de Estado cessante, Igor Dodon, aliado do homólogo russo. Foi um embaraço para Vladimir Putin, que havia apelado, publicamente, a que o amigo fosse reconduzido no cargo. Maia Sandu, 48 anos, que trabalhou para o Banco Mundial e foi primeira-ministra por um breve período, obteve 57,7% dos votos contra 42,25 de Igor Dodon. Prometeu combater a corrupção endémica que aflige um dos países mais pobres da Europa, encaixado entre a Ucrânia e a Roménia – membro da UE ao qual está ligado por uma língua e herança cultural comuns (dois terços dos moldovos são de ascendência romena). Putin congratulou Maia Sandu, dizendo esperar que ela “facilitará o desenvolvimento construtivo das relações” entre Chisinau e Moscovo. Importa lembrar que a Moldova é dependente da energia russa e que a Transnístria, região autónoma da Ucrânia antes de 1940, quando a URSS a juntou com a Bessarábia para formar a “República Socialista Soviética da Moldávia”, continua ocupada por tropas russas. Foi a perspectiva de laços mais estreitos com a Roménia que levou a Transnístria a declarar, unilateralmente, a independência em 1990. Seguiram-se violentos combates, a soberania nunca foi reconhecida e a região permanece num limbo.

GEÓRGIA

Em Tbilisi, a capital da Geórgia, manifestantes desafiam tropas de choque, que usaram canhões de água para os dispersar
© Euronews

No Cáucaso, além do Nagorno-Karabakh, a Geórgia, uma nação de 3,7 milhões de habitantes onde um quinto do território permanece controlado por separatistas pró-russos (da Abkházia e da Ossétia do Sul), depois de uma breve guerra em 2008, é mais um problema para o Kremlin. Dezenas de milhares de pessoas não desistem de contestar os resultados oficiais das eleições de 31 de Outubro que deram novamente a vitória ao partido Sonho Georgiano, fundado por Bidzina Ivanishvili, o homem mais rico do país e ex-primeiro-ministro. O Movimento Nacional Unido (MNU), uma aliança de vários partidos duma oposição fragmentada, ameaçou boicotar o novo Parlamento, denunciando “compra de votos, fraude durante a contagem e intimidação de eleitores e observadores”. Curiosamente, tanto o governo (que defende laços mais estreitos com a Rússia) como o MNU gostariam de ver a Geórgia na União Europeia – um desejo a que Vladimir Putin se opõe, porque lhe interessa manter esta antiga república soviética “vulnerável e dependente”. Em Tbilisi, a capital, manifestantes continuam a desafiar tropas de choque, que usam canhões de água para os dispersar. Ao MNU foram atribuídos 27,18% dos votos, contra 48,23% do Sonho Georgiano (no poder desde 2012), mas a oposição, que antes havia forçado importantes reformas eleitorais, acusa o oligarca Ivanishvili de ter dado um “golpe” e de governar nos bastidores” (não exerce qualquer cargo). Por isso, exige a repetição das eleições, porque estas “foram roubadas”

BIELORÚSSIA

Svetelana Tikhanovskaia, líder da oposição da Bielorússia, discursa num comício. A sua vitória não foi reconhecida pelo ditador Lukachenko, que a forçou a exilar-se na vizinha Lituânia
© Sergei Grits | AP | PRI.org

Se Igor Dodon aceitou a derrota, na Bielorússia, Aleksandr Lukachenko, outro aliado de Putin, insiste em prolongar os seus 26 anos de poder até 2024, apesar de eleições fraudulentas que, em Agosto, impediram a vitória de Svetlana Tikhanovskaia, a líder da oposição, reconhecida pela comunidade internacional. Os bielorussos perderam a paciência com Lukachenko quando ele desvalorizou a devastadora pandemia de Covid-19, ironizando que esta podia ser curada com vodka. Putin endossou Lukachenko, antes e depois das eleições, por considerar que este autocrata, nem sempre obediente, salvaguarda os interesses da Rússia, traumatizada pela violenta revolução ucraniana de 2014, que resultou na queda de outro ditador aliado, Viktor Ianukovitch. O Kremlin teme um “efeito de dominó de Minsk a Moscovo”, não só porque os protestos pacíficos na Bielorrússia não páram, envolvendo todas as classes sociais, etárias e profissionais, apesar de múltiplos abusos de direitos humanos, mas porque os manifestantes inspiram outros dissidentes. Putin diz que “o povo da Bielorússia deve resolver os seus problemas sem ingerência externa”, o que leva alguns analistas a admitir que acabará por aceitar interlocutores alternativos e que o apoio a Lukachenko não será sempre incondicional. Até porque este, ainda que dependente da energia subsidiada da Rússia, recusou sempre uma união entre os dois países e nunca permitiu (até reprimiu) uma oposição séria pró-Moscovo. Svetlana Tikhanovskaia, exilada na Lituânia, tem sido prudente, evitando pedir a adesão à EU, apesar de ter convencido dirigentes europeus a impor sanções ao regime contestado.

QUIRGUISTÃO

Protestos contra os resultados das eleições legislativas em Bishkek, capital do Quirguistão
© Vyacheslav Oseledko | AFP | Getty Images

Na antiga república soviética da Ásia Central com a maior percentagem de falantes de russo e onde Moscovo tem uma base militar, uma outra “revolução” – a terceira em 15 anos – inquieta Putin, já preocupado com a ascendência chinesa na região. Em Outubro, um dia depois de eleições legislativas, cerca de 20 mil pessoas concentraram-se em Bishkek, a capital, enfurecidas com relatos de compra de votos e outras fraudes, mas também com uma economia em queda livre, devido à Covid-19. Apenas 4 dos 16 partidos concorrentes garantiram lugares no Parlamento e o facto de os vencedores serem próximos do presidente, Sooronbai Jeenbekov, abençoado por Moscovo e suspeito de enriquecimento ilícito, desencadeou uma vaga de protestos violentos e forçou demissões. As eleições foram anuladas e remarcadas para 10 de Janeiro. De importância estratégica para o Kremlin, o Quirguistão tem petróleo e gás, mas permanece pobre e dilacerado por um fosso regional e étnico. Embora as sublevações de 2005, 2010 e a mais recente sejam vistas, do exterior, como “revoltas democráticas” contra líderes autocráticos, no interior, são entendidas como substituições de “nortenhos” por “sulistas” e vice-versa. Agora, caiu um presidente do Sul (Jeenbekov), detestado pelo Norte; em 2005, caiu um do Norte (Askar Akaiev), odiado pelo Sul. Outras divisões são igualmente profundas. As minorias, sobretudo os uzbeques, têm sido excluídas da vida política activa e reduzidas a uma vida de miséria. Em 2010, foram uzbeques no Sul que ajudaram a derrubar o presidente Kurmanbek Bakiev. A Rússia lamenta a instabilidade e denuncia “pressões estrangeiras”, mas não tem intervindo, disposta a aceitar qualquer um que respeite os seus interesses. O homem do momento é agora Sadir Japarov, apoiante de Bakiev, que desde 2017 cumpria uma pena de 11 anos de prisão por rapto de outro político. Nomeado presidente e primeiro-ministro interino, demitiu-se em Novembro, como exige a Constituição, para ser um dos 63 candidatos ao escrutínio de Janeiro.

© Wall Street Journal

Estes artigos foram originalmente publicados na edição de Dezembro de 2020 da revista ALÉM-MAR. These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, December 2020 edition

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