Nos EUA, quando um polícia mata um civil, são os contribuintes que pagam as indemnizações dos processos judiciais. Em busca de soluções para a brutalidade de uma instituição cujas maiores vítimas são as pessoas negras, este sociólogo americano defende que os fundos que oferecem imunidade às “maçãs podres de uma árvore apodrecida” devem ser transferidos para serviços sociais. Entrevista por e-mail. (Ler mais | Read more ….)

© Lynne Sladky | AP | health.wusf.usf.edu
Rashawn Ray é doutorado e professor de Sociologia na Universidade de Maryland. É também co-director da revista Contexts, publicada pela American Sociological Association (ASA), a maior associação mundial de profissionais da especialidade. Não tem cadastro criminal, como faz questão de salientar.
O tio avô Walter J. Gooch foi o primeiro negro chefe da polícia na sua terra-natal, Murfreesboro, no estado de Tennessee. O avô Clarence Williams serviu em duas guerras e foi condecorado com um Coração de Púrpura (Purple Heart) e uma Estrela de Bronze (Bronze Star), medalhas atribuídas, em vida ou postumamente, a militares que se destacaram em actos heróicos.
Não obstante estes pergaminhos, pessoais, profissionais e familiares, aos 40 anos, Ray tem a certeza de que já foi interpelado pela polícia mais vezes do que a sua idade. “Mandam-me parar enquanto conduzo ou estou num parque de estacionamento, quando ando de comboio ou de autocarro, quando passeio, quando corro, quando estudo, quando me divirto”, descreve ele num artigo publicado no site do think-tank Brookings Institution, em Washington, onde é investigador. “Já fui insultado, atirado contra paredes e detido.”
Autor de Race and Ethnic Relations in the 21st Century: History, Theory, Institutions, and Policy (“Raça e Relações Étnicas no Século 21: História, Teoria, Instituições e Política”), Ray tem recebido vários prémios académicos.
Desde há uma década que trabalha com dezenas de esquadras de polícia, com o Departamento de Segurança Interna e com as forças armadas dos EUA. É responsável por vários programas e cursos com o objetivo de pôr fim a um sistema em que, diz, bad apples come from rotten trees (‘maçãs podres vêm de árvores apodrecidas’).

© Jonathan Bachman | Reuters
Como é que uma pessoa que tem sido perseguida, injuriada, agredida e até detida pela polícia viu o horrífico vídeo da tortura e morte de George Floyd?
Eu olho para este tipo de incidentes com as lentes de um sociólogo que estuda a polícia. O assassínio de George Floyd expõe uma das mais perturbadoras estatísticas na América – as pessoas negras têm 3,5 vezes mais probabilidade do que as brancas de serem mortas pela polícia, mesmo sem estarem envolvidas em ataques ou na posse de armas.
Da sua experiência com a polícia, o que mais o traumatizou? Como é que explica aos seus dois filhos os perigos de viver num país onde persiste um racismo sistémico?
A maioria dos casos envolvendo a polícia causam stress. A minha investigação demonstra que, em bairros onde predomina a violência policial, os homens sofrem maiores níveis de depressão e ansiedade.
Quanto às mulheres nesses bairros, o sofrimento é sobretudo físico. Portanto, as vítimas não são apenas os mortos pela polícia, mas também os que observam e têm de viver essas situações. Quando converso com os meus filhos [dois rapazes], pergunto-lhes como é que avaliam os acontecimentos.
Com base nas suas respostas, tento dar-lhes informação que melhor os ajude a processar o que se passa. Procuro sempre ensinar-lhes estratégias saudáveis que os ajudem a lidar com o racismo na América.

© Max Becherer | AP | fortune.com
O que vê agora, quando olha para os protestos em massa exigindo justiça racial? Como é que descreve a composição e determinação dos manifestantes? Esperava estas multidões avassaladoras?
Eu nunca vi protestos com uma tão grande diversidade racial. Mais de 75% dos americanos consideram que o que aconteceu a George Floyd faz parte de um padrão [de comportamento], em que os negros têm poucas chances de serem bem tratados pela polícia.
E a brutalidade policial tem sido quase sempre o motor das rebeliões dos afro-americanos. A partir do seu trabalho com forças de segurança, que recomendações faz?
Eu acho que, para poder realmente lidar com as árvores apodrecidas na polícia, a América tem de reestruturar o sistema em que são os civis a pagar indemnizações pela má conduta dos agentes.
Quando uma pessoa é indemnizada por ter sido maltratada pela polícia, esse dinheiro vem dos contribuintes. Eu defendo que o dinheiro deve provir dos planos de seguros dos departamentos de polícia. Deste modo, será possível responsabilizar os departamentos e os agentes.
Depois da morte de Floyd, o Conselho Municipal de Minneapolis prometeu desmantelar todo o departamento de polícia da cidade, alegando que “o sistema não pode ser reformado”. O presidente da Câmara de Nova Iorque também se comprometeu a cortar o financiamento da NYPD. Será que estamos a assistir a um ponto de viragem, ou medidas como esta jamais poderão ser aplicadas devido ao enorme poder dos sindicatos, que alguns acusam de agir como “máfias protectoras”, que intimidam políticos e juízes?
Eu acho que sim [que é um ponto de viragem]. Retirar fundos à polícia significa, basicamente, deslocar fundos ou investi-los noutros sectores. Cidades como Los Angeles ou Baltimore já estão a reduzir o financiamento da polícia, transferindo fundos para serviços sociais dedicados à saúde mental e a infra-estruturas para emprego.

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Perante os actuais acontecimentos, alguns analistas falam de uma “óbvia analogia histórica” com a vaga de protestos e tumultos no início dos anos 1960 e depois do assassínio do reverendo Martin Luther King Jr [MLK], em 1968. Concorda?
Há uma clara semelhança em relação a 1968. Depois de MLK ter sido assassinado, houve distúrbios e agitação em massa.
Dias depois, o presidente Lyndon Johnson aprovou uma das mais amplas leis de direitos cívicos da história, com ênfase no direito a habitação condigna.
Depois do assassínio de George Floyd, os protestos generalizados estão a contribuir para que sejam retirados fundos a departamentos de polícia, e até já foi assinada [por Donald Trump] uma Ordem Executiva Presidencial com vista à reforma da polícia.
Mas a reforma prometida é modesta, e Trump, que não poupa elogios à polícia, tem sido acusado de encorajar os supremacistas brancos nos EUA. Será que, para renovar o mandato nas presidenciais de Novembro, ele está a tentar imitar Richard Nixon, eleito graças aos votos dos brancos e a uma mensagem de “lei e ordem”?
Tendo em conta a pandemia [de Covid-19], que afecta, particularmente, as comunidades negras – 70% dos mais de 120 mil mortos entre mais de 2 milhões de infectados], a recessão económica [mais de 14 milhões de desempregados até Junho] e os protestos, acho que será difícil a Trump ultrapassar estas barreiras no caminho para a reeleição.

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Numa recente entrevista à CNN, o filósofo e crítico social Cornel West chamou a atenção para o facto de o movimento Black Lives Matter ter aparecido quando os EUA tinham um presidente negro [Barack Obama], um procurador-geral-negro [Eric Holder] e um director negro do departamento de Segurança Interna [Jeh Johnson]. No entanto, acrescentou, “nenhum deles foi bem-sucedido” porque “rostos negros em lugares brancos acomodaram-se demasiado a uma sociedade em que o poder e a fama é o que importa mais”. A previsão dele é a de que “os supremacistas brancos andarão por cá durante muito, muito, muito tempo”. Partilha deste pessimismo?
Eu estou moderadamente optimista. Penso que este momento é diferente. Quatro agentes em Minneapolis foram despedidos e acusados. Três pessoas foram acusadas do assassínio de Ahmad Arbery [um jovem morto a tiro por civis, quando fazia jogging no parque do seu bairro].
Amy Cooper [que ameaçou chamar a polícia, esperando vingar-se de um ornitólogo negro que apenas lhe exigiu que colocasse a coleira no seu cão, seguindo as regras do parque onde se cruzaram] perdeu o emprego e ficou sem o cão.
Tudo isto são mudanças. A Ordem Executiva [de Trump] não é perfeita, mas muda a agulha. Retirar fundos à polícia é um passo gigante. Se o Congresso conseguir aprovar uma sólida lei de reforma da polícia, as maçãs podres serão responsabilizadas e os fundos poderão ser canalizados para beneficiar civis.
Barack Obama encorajou recentemente os protestos, mas também o voto: “Não se trata de uma coisa ou outra; temos de fazer ambas, para conseguirmos uma verdadeira mudança.” Será que os manifestantes ouviram este apelo? Será que a América alguma vez será “uma nação com liberdade e justiça para todos”, como exige o juramento de lealdade à bandeira?
Uma nação… Não tenho a certeza. Os Estados Unidos fundaram-se no racismo. A única maneira de lidar com isto é através de indemnizações [pela escravatura] – um processo que também está a ganhar força. Quanto às pessoas que protestam não votarem, isso é uma grande falácia. As pessoas que protestam são, frequentemente, algumas das mais activas politicamente.

Rashawn Ray é professor de Sociologia na Universidade de Maryland, nos EUA. É também co-director da revista Contexts, publicada pela American Sociological Association (ASA)
© Cortesia de | Courtesy of Rashawn Ray
Esta entrevista foi publicada originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Julho-Agosto de 2020 | This interview was originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, July-August 2020 edition