“O coronavírus poderá aumentar o número de doenças da pobreza”

Em África, um continente onde há pessoas que vivem numa extrema insegurança alimentar, poderá ser contraproducente aplicar em toda a parte a mesma estratégia de luta contra a COVID-19, diz Benjamin T. H. Smart, professor da Universidade de Joanesburgo. Sim, o confinamento e o distanciamento social poderão aliviar a pressão sobre serviços nacionais de saúde a abarrotar de casos de paludismo/malária, tuberculose ou VIH/sida. Mas as consequências económicas de medidas draconianas aplicadas em alguns países poderão ser terríveis. Sobretudo para os mais jovens – a maioria demográfica. (Ler mais | read more…)

Já havia 27,4% de africanos em situação de insegurança alimentar e este número vai subir rapidamente, porque o confinamento ordenado pelas autoridades de saúde privará muitas famílias de sustento durante muito tempo, diz o académico Benjamin T. H. Smart (na foto, crianças envergando máscaras para se protegerem da COVID-19, em Nairobi, Quénia)
© Donwilson Odhiambo | ZUMA Wire | PA Images | newscientist.com

Benjamin T. H. Smart é autor de Concepts and Causes in the Philosophy of Disease, um livro que tenta dar resposta a muitas perguntas como esta: “O que é a doença?”. Lidera o projecto de investigação “Future of Health and Medicine” no Institute for The Future of Knowledge (IFK), da Universidade de Joanesburgo, África do Sul, onde é professor de Filosofia. Um académico especializado em medicina e saúde pública, deu-me esta entrevista, por e-mail, sobre o impacto da COVID-19 na região onde vive e trabalha. “Até podemos estar a enfrentar a mesma tempestade, só que nos encontramos em navios diferentes.”

Na região africana da Organização Mundial de Saúde (OMS), “pelo menos 41 países já enfrentaram uma epidemia e pelo menos 21 sofrem anualmente uma epidemia”, segundo o International Journal of Infectious Diseases. Assim sendo, até que ponto está África preparada para lidar com o aparecimento de mais uma doença altamente infecciosa – a COVID-19? Como é que avalia as lições aprendidas com surtos anteriores ou ainda activos?

Graças a investimentos consideráveis, à reorganização da OMS de modo a incluir um Programa de Emergência de Saúde Mundial (PESM) e à criação do Africa Center for Disease Control and Prevention [Centro de Africano para a Prevenção e Controlo de Doenças], África está hoje, substancialmente, mais bem preparada em termos de vigilância do que estava no auge da epidemia do vírus Ébola de 2014-2016.

A COVID-19 envolve, porém, desafios diferentes quando comparada com o Ébola (menos contagioso, mais fácil de conter e mais mortífero), a epidemia de VIH/Sida (sexualmente transmissível, mas tratável com medicamentos antirretrovirais), ou a malária/paludismo (que se propaga através de mosquitos). O nosso conhecimento destas doenças tem um efeito limitado na resposta que África dará [ao novo coronavírus], e o facto de elas prevalecerem no continente irá sobrecarregar ainda mais os sistemas de saúde da região.

O impacto que o confinamento terá na saúde do continente poderá ser ainda pior do que o próprio impacto da COVD-19, teme o académico Smart (na foto, dois cidadãos nigerianos, em Lagos, cumprimentam-se com os cotovelos, evitando apertos de mão, prevenindo o contágio com o novo coronavírus)
© Benson Ibeabuchi | AFP | Getty Images | Foreign Policy

Quais são, então, os principais desafios que a COVID-19 representa, em termos de profissionais de saúde e infra-estruturas, por exemplo, em particular nos países onde o Ébola, o VIH, o paludismo, mas também a tuberculose ou o sarampo, ainda continuam a ser um flagelo?

Um dos principais desafios é encontrar o tipo de intervenção que não falhe o teste de análise ao custo-benefício; isto é, precisamos de encontrar meios de retardar a propagação do novo vírus sem que isso implique efeitos abertamente adversos sobre outros determinantes de saúde.

Por um lado, “achatar a curva” [do número de infectados] através de medidas de confinamento em África permitirá, se estas forem eficazes, que os diversos sistemas de saúde mantenham a capacidade de continuar a tratar casos de tuberculose, VIH, etc… Porque, se os hospitais ficarem a abarrotar com casos de COVID-10, será inevitável um aumento no número de vítimas mortais de outras patologias.

Por outro lado, as intervenções que visam achatar a curva têm significativos efeitos secundários ao nível da saúde e da economia. Já havia 27,4% de africanos em situação de insegurança alimentar e este número vai subir rapidamente, porque o confinamento ordenado pelas autoridades de saúde privará muitas famílias de sustento durante muito tempo.

Consequentemente, poderá registar-se um aumento, também rápido, das doenças da pobreza (que afectam particularmente bebés e crianças). Já estamos a assistir a protestos em larga escala na África do Sul, por exemplo, onde a procura de cabazes alimentares excede em muita a oferta.

Face a isto, o impacto que o confinamento terá na saúde do continente poderá ser ainda pior do que o próprio impacto da COVD-19 (embora eu tenha de ressalvar que as intervenções não têm sido iguais em todos os países africanos – o regime imposto na África do Sul é muito mais rigoroso do que o adoptado, por exemplo, pela Tanzânia [criticada pela OMS pela “falta de cooperação e transparência” na luta global contra a pandemia; não há briefings diários sobre número de infectados, e o próprio presidente ordenou uma investigação ao laboratório nacional onde são efectuados testes de despistagem, cujos resultados têm sido descritos como “não credíveis”]).

O Programa Alimentar da ONU admite que está a ser pesadíssimo o impacto económico da COVI-19 sobre pessoas que vivem em zonas de conflito, como no Sul do Sudão (na foto, uma mulher recolhe comida lançada por aviões em Nyal, Condado de Payinjiar, ainda antes de serem impostas medidas de confinamento social)
© Gabriela Vivacqua | WFP

Até que ponto, nesta luta contra a COVID-19, a demografia é uma “vantagem” num continente onde a média de idades é inferior a 20 anos – menos de metade da de Portugal?

África está numa fase relativamente inicial da luta contra a COVID-19, em comparação com a Europa, a China e os Estados Unidos da América. Por isso, é difícil (pelo menos nesta fase) afirmar com toda a certeza que, no seu conjunto, África está significativamente melhor do que países [de outros continentes] com populações mais envelhecidas. No entanto, é evidente que a idade é um grande factor de risco para a COVID-19.

A taxa de mortalidade para as pessoas com menos de 50 anos permanece inferior a 0,5%, e a esperança média de vida em todo o continente é de 61 anos para os homens e 65 para as mulheres. Além disso, embora entre as populações dos países africanos haja uma maior incidência de taxas de doenças, como o VIH, dados iniciais sugerem que estas não constituem factores de risco importantes.

De um modo geral, mesmo excluindo as comorbidades [a ocorrência de uma ou mais doenças relacionadas num mesmo paciente e ao mesmo tempo] que perduram em África, são as pessoas mais velhas quem sofre mais com a COVID-19, e a realidade é que há muito poucos idosos em África.

Num artigo que escreveu para o site “The Conversation”, argumenta que “o distanciamento social poderá não resultar” em países onde as condições de vida “são de extrema sobrelotação e onde é inevitável a socialização”, onde muitas pessoas “não conseguem ter comida, quanto mais higiene pessoal”. Não obstante, na Libéria e na Serra Leoa, por exemplo, onde o Ébola foi sentido como uma ameaça existencial, investigadores notaram que a epidemia deixou as pessoas “mais conscientes e cumpridoras”, e que uma mudança de hábitos culturais e sociais foi fundamental para um combate eficaz ao vírus. Por que é que África deveria ter em relação à COVID-19 uma abordagem diferente da que está a ser seguida noutras regiões do mundo?

Até certo ponto, o distanciamento social é possível em toda a parte. Mas, em alguns lugares, é mais difícil do que noutros. Muitas formas de distanciamento social não têm consequências económicas terrivelmente negativas, e é obvio que devem ser aplicadas o mais possível. Todavia, em países onde uma enorme densidade populacional (*) impossibilita ou reduz a zero a actividade económica, o custo destas medidas pode muito bem ultrapassar os benefícios.

Um abrandamento maximalista da propagação da doença é, muitas vezes, falsamente visto como o cenário ideal, porque são ainda insuficientes as análises aos custos que as intervenções [das autoridades] têm em termos de saúde pública. Os maiores beneficiários das medidas empreendidas contra a COVID-19 (no que toca a confinamento/distanciamento social) são os idosos.

Na Europa, mais de 20% da população tem de mais de 65 anos – em África, este grupo etário representa apenas 3%. Os mais vulneráveis às consequências negativas do isolamento são as crianças, especialmente as que pertencem a famílias em condição de insegurança alimentar.

Segundo a organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), menos de 2,5% da população sofre de desnutrição na Europa – em África, são 19,9%. Até podemos estar a enfrentar a mesma tempestade, só que nos encontramos em navios diferentes.

“Acima de tudo, os países africanos precisam de garantir que as suas populações terão o que comer”, sublinha Benjamin Smart (na foto, representantes da organização Sanku inquirem junto de comerciantes sobre os stocks de farinha num mercado em Dar es Salam,Tanzânia)
© Malicky Boaz | almendron.com

Na frente económica, a China, a Europa e os Estados Unidos da América estão a tentar ultrapassar a crise com programas de ajuda em larga escala destinados aos sectores mais afectados pela pandemia. Toda a gente concorda que isto não é possível em países africanos com menos recursos. Será que os danos que esta epidemia global pode causar às economias africanas serão mais severos do que o impacto em termos de saúde?

As potenciais consequências económicas desta doença são terríveis. Já vemos isso em todo o continente. Até os países mais ricos onde estão a ser atribuídos pacotes de estímulo estão (40 mil milhões de euros na África do Sul, por exemplo), as pessoas dizem que preferem a doença à fome.

Aqueles que apoiam um rigoroso confinamento, exigindo que se dê prioridade à saúde em detrimento da economia, não percebem o que se está a passar. A saúde e a economia estão intrinsecamente interligadas, sobretudo em África, onde as taxas de desemprego já são elevadas e tantas pessoas vivem em insegurança alimentar.

Acima de tudo, os países africanos precisam de garantir que as suas populações terão o que comer.

* Segundo o African Center for Strategic Studies, “há mais de 200 milhões de africanos a residir em bairros informais de áreas urbanas”, onde é muito limitado o acesso à água e saneamento. Exemplos: no Sudão do Sul, na República Centro Africana ou no Chade, “um em cada 9 habitantes nas cidades” vive em gigantescas favelas. Algumas destas albergam centenas de milhares de pessoas, como acontece em Kibera, em Nairobi/Quénia; em Manshiyat, no Cairo/Egipto; ou em Khayelitsha, na Cidade do Cabo/África do Sul. A densidade populacional destas comunidades é frequentemente de mais de 75 mil pessoas por km2. “Na Nigéria, há situações em que mais de 3 pessoas dormem sum só quarto, um número que duplica em várias cidades do país. Cinco milhões de famílias em Lagos, por exemplo, não têm abrigo ou habitam em barracas.”

Benjamin T. H. Smart é autor do livro Concepts and Causes in the Philosophy of Disease e lidera o projecto de investigação “Future of Health and Medicine” no Institute for The Future of Knowledge (IFK), da Universidade de Joanesburgo, África do Sul, onde é professor de Filosofia
© Benjamin T. H. Smart

Esta entrevista foi publicada originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Junho de 2020 | This interview was originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, June 2020 edition

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