Um ano após a sua “implausível eleição”, Félix Tshisekedi parece ser apenas o chefe de Estado nominal em Kinshasa. O palácio presidencial continua habitado por Joseph Kabila, que controla o Parlamento, as forças de segurança e as principais fontes de receita. O futuro continua incerto e sombrio. (Ler mais | Read more...)

Félix Tshisekedi (à esq.) e Joseph Kabila: este continua a habitar o palácio presidencial e a controlar o Parlamento, as forças de segurança e as principais fontes de receita da RDC
© lanouvelletribune.info
Prisioneiros políticos foram libertados, opositores regressaram do exílio e as portas do mundo reabriram-se a um país isolado. Este é o balanço do primeiro ano da presidência de Félix Tshisekedi, o homem que perdeu as eleições, mas chegou à chefia do Estado graças a um “acordo secreto” que permitiu uma “histórica alternância pacífica” na República Democrática do Congo.
Para alguns, o acordo “foi um preço que valeu a pena pagar para livrar a RDC da dinastia Kabila”, mas tal não aconteceu e, por isso, têm sido questionadas as razões que levaram a comunidade internacional a “legitimar uma injustiça”, em vez de apoiarem Martin Fayulu, que obteve cerca de 60% dos votos – três vezes mais do que Tshisekedi.
“Tenho a impressão de que, fora do Congo, não havia consenso de que Joseph Kabila continuaria necessariamente a mandar, embora muitos temessem que fosse esse o desenlace”, explica o académico Pierre Englebert, especialista em África Central e Ocidental, numa entrevista que me deu por e-mail.
“Ainda há quem acredite que, apesar da sua implausível eleição, Tshisekedi se poderá emancipar. Mas também há quem se mostre impaciente”, porque Joseph Kabila, o predecessor e artífice da fraude eleitoral, reteve largamente o poder.
A coligação de Kabila, Front Commun pour le Congo (FCC/Frente Comum para o Congo), controla 340 dos 500 lugares da Assembleia Nacional, e cerca de 90 dos 109 lugares no Senado – números que, dadas as irregularidades constatadas pelos milhares de observadores da influente Igreja Católica “não deverão representar a vontade dos eleitores”, segundo Englebert.

A comunidade internacional legitimou a “vitória” de Félix Tshisekedi porque, num cenário de grande instabilidade política e económica, “havia receios de que Joseph Kabila não saísse tranquilamente de cena, provocando um novo conflito”, explica o professor Englebert (Na foto, um mercado em Lubumbashi)
© Bryan Denton | The New York Times
A Frente de Kabila também controla praticamente toda a estrutura do governo liderado pelo primeiro-ministro, Sylvestre Ilunga (a plataforma CACH, de Tshisekedi, ocupa 23 cargos e a FCC 42), e “conta com a lealdade” de 22 dos 26 executivos provinciais.
Mais: os cerca de 10 mil soldados da Guarda Presidencial mantêm-se sob o domínio de Kabila, que “se passeia por Kinshasa com uma entourage de segurança que facilmente rivaliza com a de Tshisekedi”, e o ditador continua a habitar o palácio presidencial.
Englebert crê que “apoiar Fayulu e os resultados genuínos não era opção, porque os próprios congoleses ficaram contentes com a eleição de Tshisekedi (houve muito poucos protestos nas ruas) e porque havia receios de que Kabila não saísse tranquilamente de cena, provocando um novo conflito.”
É uma análise partilhada por Trésor Kibangula, investigador do Congo Research Group (também conhecido como Group d’étude sur le Congo), da Universidade de Nova Iorque. “A comunidade internacional estava empenhada numa alternância política pacífica”, diz-me, por telefone.
“Vários países, sobretudo os Estados Unidos da América, pressionaram Kabila, apegado ao poder, para que se afastasse. Como a eleição de Félix Tshisekedi contribuiu para esse afastamento, ninguém quis, verdadeiramente, pôr em causa os controversos resultados.”
Foi assim que o filho do histórico líder da oposição, Étienne Tshisekedi (1932-2017) tomou posse em Janeiro de 2019. “Só que não tem feito muito”, como avalia Englebert, e “não dispõe ainda de margem de manobra para imprimir a sua visão política”, como observa Kibangula.

Um cartaz com a figura de Joseph Kabila queimado por apoiantes de Tshisekedi antes de os dois líderes terem firmado um pacto secreto
@ Hugh Kinsella Cunningham | EPA | almendron.com
Professor de Relações Internacionais em Pomona College, Claremont (Califórnia) e autor de várias obras de referência, tais como Africa: Unity, Sovereignty and Sorrow e State Legitimacy and Development in Africa, Pierre Englebert admite que Tshisekedi cumpriu pelo menos uma das suas promessas: a de desanuviar o clima político na RDC.
Partidos da oposição já podem organizar-se livremente, prisioneiros foram libertados, opositores regressaram do exílio e a temível Agence Nationale de Renseignements (ANR/serviços secretos) diminuiu as suas acções repressivas.
Numa visita recente à RDC, a Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, congratulou-se com “os progressos em matéria de direitos cívicos e políticos”, lamentando, contudo, que “forças do Estado sejam ainda responsáveis por 54% dos actos de violência” e que “os abusos cometidos por grupos armados tenham aumentado 40%”.
Com mais de 30 viagens ao estrangeiro em 12 meses, Tshisekedi também contribuiu para quebrar o isolamento do país (Kabila era persona non grata em muitas capitais). Não apenas melhorou relações com a França, a Bélgica, os EUA e até o Vaticano (foi recebido pelo Papa Francisco), como obteve promessas de fundos, que talvez o ajudem a “soltar-se” do que Englebert designa por “estrangulamento financeiro” imposto por Kabila.
O anterior presidente ainda controla a maior parte das empresas públicas, “as vacas leiteiras do Estado”, mas em Dezembro último, Tshisekedi recebeu um presente abençoado: o Fundo Monetário Internacional (FMI), que em 2011 suspendera todas as ajudas ao Congo, aceitou conceder uma linha de crédito de emergência no valor de 368 milhões de dólares.
“Tshisekedi precisará de todos os centavos [desta assistência do FMI] e de muito mais, se quiser pôr em prática o seu ambicioso orçamento para 2020, que, contemplando dez mil milhões de dólares de despesas, está 5000 milhões acima das receitas esperadas”, refere Englebert, investigador no Africa Center do Atlantic Council, um think-tank em Washington.

Cartaz na RDC: “A corrupção é mortífera. Acabem com ela.” O académico Pierre Englebert admite que este problema se mantém, mas realça que o novo presidente “começou selectivamente a impor algumas leis ao clã Kabila”
© universal-rights.org
O congolês Trésor Kibangula é mais crítico: “Desde a sua chegada à presidência, Félix Tshisekedi multiplica as promessas sem ter meios para as concretizar”. E cita um exemplo: A promessa de ensino gratuito.
“Esta medida foi decretada e os pais por todo o país ficaram satisfeitos, aliviados porque se livraram de um peso financeiro. Mas os professores de várias escolas entraram em greve porque os seus salários baixaram e não foram construídas mais salas para acolher os novos alunos – estamos a falar de mais dois milhões de alunos em relação ao ano anterior.”
Outra promessa falhada: a luta contra a corrupção. “Um ano após a investidura, Tshisekedi ainda não deu um sinal claro sobre a política a seguir”, enfatiza Kibangula. “Montou uma estrutura no seio da Presidência para se ocupar disso e outra para mudar mentalidades. Mas tal não basta, e a prova é um escândalo de desvio de fundos públicos que envolve altos quadros do Estado.”
Pierre Englebert concorda que “a corrupção continua, mas realça que o novo presidente “começou selectivamente a impor algumas leis ao clã Kabila”.
Em Dezembro, por exemplo, Albert Yuma, patrão da Gécamines, gigante do sector mineiro, e grande aliado de Kabila, foi acusado de desviar 200 milhões de dólares, impedido de deixar o país e obrigado a comparecer perante um tribunal em Kinshasa.
[Em Junho, Vital Kamerhe, chefe de gabinete de Tshisekedi, foi condenado pelo Supremo Tribunal da RDC a 20 anos de cadeia por corrupção, após ter sido considerado culpado de “desviar fundos públicos de 48,8 milhões de dólares” que se destinavam a programas de habitação social.]
“A questão [que mais interessa a Joseph Kabila] não é tanto o que Félix Tshisekedi fará, mas sim saber quem irá beneficiar do seu acesso à chefia do Estado”, realça Englebert. “Até agora, não se vê bem uma transição de regime, mas apenas modestos indicadores de mudanças”.

A promessa de pacificar o Leste do país tem sido e será a mais difícil de cumprir. “A violência subsiste e o Estado continua incapaz de proteger os seus cidadãos”
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A promessa de pacificar o Leste do país que há 20 anos é atormentado por conflitos instigados por vizinhos ávidos das riquezas da RDC tem sido e será a mais difícil de cumprir. “A violência subsiste e o Estado continua incapaz de proteger os seus cidadãos”, reprova Pierre Englebert.
“Tshisekedi tem de aplicar rapidamente um programa credível de desmobilização, desarmamento e reintegração de grupos armados locais”, recomenda Trésor Kibangula.
Nas suas visitas ao estrangeiro, Tshisekdi “parece sempre muito mais corajoso”, repara Englebert. Em Londres, ameaçou até dissolver o Parlamento e antecipar as presidenciais de 2023, se boicotarem as suas iniciativas. “Mas ele não controla a comissão eleitoral, por isso, se dissolver o Parlamento, os resultados [das próximas eleições] poderão não ser melhores.”
É certo que tem havido sinais de “indisciplina, independência e fissuras” na FCC, uma coligação que não é monolítica (24 grupos políticos representam 166 partidos), embora seja dominada pelo Parti du Peuple pour la Reconscruction et la Démocratie (PPRD), de Kabila. “Não sabemos, porém, se haverá suficientes deserções na FCC para que Tshisekedi possa criar uma maioria alternativa”, destaca Englebert.
“Kabila tem de garantir o contínuo acesso aos recursos de que necessita para manter os seus ‘clientes’ felizes com o actual sistema. Ele ainda controla a maioria das instituições que geram receitas. Mas, como tem de partilhar os despojos do poder com mais actores do que antes das eleições, é maior o potencial de descontentamento entre as suas ‘tropas’.”
Verificou-se isso em Julho de 2019, quando Modeste Bahati Lukwebo, líder do segundo maior partido da FCC, Alliance des Forces Démocratiques du Congo (AFDC), se rebelou contra Kabila, por não lhe ter sido dada a presidência do Senado. Acabou expulso da FCC, porque a maioria dos correligionários não lhe seguiu o exemplo.
“Por enquanto, Kabila continua a servir-se dos que lhe são leais, como John Numbi, inspector-geral da Polícia, para intimidar potenciais desertores.”
Por isso, “mesmo que algumas franjas na FCC sejam tentadas a formar outras alianças, a conversa de Tshisekedi sobre uma eventual dissolução do Parlamento serve apenas para dar a impressão de que é um presidente autónomo”.

A coligação Lamuka, de Martin Fayulu “poderá não sobreviver ao aparecimento do novo partido Ensemble pour la République, criado por Moïse Katumbi
© africatimes.com
O congolês Trésor Kibangula não só acha improvável que fiéis de Kabila se venham a aliar a Tshisekdi – “uma assunção errada de alguns observadores” – como admite que a FCC, criada como plataforma eleitoral, “tenciona transformar-se num grande partido político”.
Uma separação de Kabila “é uma hipótese que, por agora, parece perigosa. Todo o sistema em vigor foi concebido para proteger o anterior presidente.”
“Félix Tshisekedi não podia ‘desmantelar’ este sistema num ano. Talvez ele acreditasse que poderia inverter a relação de forças ao pôr em marcha reformas democráticas, mas também aqui tem sido bloqueado pela maioria esmagadora que Kabila detém. Este continua a ser o mestre que decide o jogo. Na actual configuração política, nada se faz sem o seu aval. Quando o novo presidente o tenta contornar, ele emperra a máquina.”
Foi o que aconteceu, relembra Kibangula, com as nomeações de novos responsáveis para a Gécamines e para a Société nationale des chemins de fer (SNCC, Sociedade Nacional dos Caminhos-de-Ferro), anunciadas em Junho de 2019. “Nunca se confirmaram porque o ministro da tutela não recebeu luz verde de Kabila.”
Para construir uma nova maioria na Assembleia Nacional, onde a sua coligação, Cap pour Changement (CACH), tem apenas 48 assentos, Tshisekedi precisaria que pelo menos cem deputados abandonassem a FCC, o que é altamente improvável.
Quanto à coligação Lamuka, de Martin Fayulu, tem 103 lugares, e Pierre Englebert admite que “poderá não sobreviver ao aparecimento do novo partido Ensemble pour la République, “criado para satisfazer as aspirações presidenciais” do seu fundador, Moïse Katumbi.
“Não imagino Fayulu como figura política de peso nos próximos anos”, vaticina Englebert. “Ele não tem nenhuma relação especial com Katumbi e não creio que este considere que valha a pena estabelecê-la. Será mais provável uma aliança entre Tshisekedi e Katumbi. E não excluo uma [nova] aliança entre Tshisekedi… e Kabila. É assim a política congolesa.”
Trésor Kibangula admite que o acordo Tshisekdi-Kabila firmado há um ano fragilizou a oposição política congolesa, hoje ainda mais debilitada devido às ambições divergentes dos seus líderes”. E adianta: “Martin Fayulu continua a reivindicar a Presidência, mas os seus dois principais aliados na coligação Lamuka, Moïse Katumbi e Jean-Pierre Bemba [dois dos opositores regressados do exílio], já seguiram em frente.”
“Mesmo que estes dois homens permanecessem unidos no âmbito de uma oposição republicana, dificilmente influenciariam os debates no Parlamento, pois são aqui minoritários. A força deles vai depender da capacidade de mobilizarem a rua quando chegar o momento de tomar posição, a favor ou contra as políticas que irão ser decididas por quem manda. Naturalmente, sempre com os olhos postos nas próximas eleições.”

A RDC, escreveu a revista The Economist, “é um país estrategicamente importante, uma gigante massa terrestre no centro de um continente, com vastas reservas minerais e suficiente potencial hidroeléctrico para iluminar toda a África Austral. É um Estado onde a Rússia e China competem por influência” e não estão preocupadas com violações de direitos humanos
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A situação na RDC não podia ser mais contrastante com a do Malawi, onde, em Fevereiro deste ano, foram anulados os resultados das eleições de Maio de 2019 e convocado novo escrutínio, depois de o Tribunal Constitucional ter dado como provadas diversas irregularidades.
O presidente cessante e candidato a um segundo mandato, Peter Mutharika, havia sido declarado vencedor por uma estreita margem (38%).
O segundo e terceiro classificados denunciaram fraudes que teriam afectado 1,4 milhões dos 5,1 milhões de votos. Cinco juízes deram-lhes razão e obrigaram a comissão eleitoral a pagar os custos do processo judicial, recomendando que a “incompetência” desta seja alvo de um inquérito parlamentar. O presidente-eleito recorreu da sentença. Centenas de apoiantes da oposição celebraram nas ruas “a vitória da democracia”.
Para vários analistas, o veredicto do Malawi “é histórico”, um exemplo que poderá ser seguido noutros países africanos. Pierre Englebert teme que se venha a repetir o que aconteceu há dois anos no Quénia, quando o Supremo Tribunal invalidou eleições contestadas “sem antes resolver os problemas” que conduziram à anulação.
Repetido o escrutínio, o presidente, Uhuru Kenyatta, voltou a vencer, com 98% dos votos, porque o líder da oposição, Raila Odinga, se recusou participar e a afluência às urnas foi de apenas 39%.
“Não conheço bem o Malawi, mas imagino um desfecho semelhante [ao do Quénia]”, conclui Englebert. “Mas, sim é verdade, este cenário seria impensável no Congo”.
Porque, como escreveu a revista britânica The Economist, a RDC “é um país estrategicamente importante, uma gigante massa terrestre no centro de um continente, com vastas reservas minerais e suficiente potencial hidroeléctrico para iluminar toda a África Austral. É um Estado onde a Rússia e China competem por influência” e não estão preocupadas com violações de direitos humanos.
Foi por isso que o Ocidente “ignorou uma eleição roubada” e permitiu que “um líder fraco e ilegítimo” chegasse à presidência.
Anatomia de uma fraude

Patrick Meinhardt | AFP | Getty Images | The New York Times
Se Félix Tshisekedi é incapaz de empreender reformas, isso deve-se ao “pecado original de ter aceitado uma aliança profana com Joseph Kabila”.
Jean-Claude Mputu, cientista político congolês, citado pela DW
Em 30 de Dezembro de 2018, dia das eleições presidenciais na República Democrática do Congo (RDC), Joseph Kabila fica a saber que Emmanuel Shadary, o candidato que escolhera para contornar a proibição constitucional de exercer mais de dois mandatos, é o pior classificado. Nem Félix Tshisekdi, líder da oposição, conseguiria derrotar Martin Fayulu, da coligação Lamuka, que se aproximava de uma maioria absoluta.
“É então que o clã Kabila começa a avaliar vários cenários”, revela Hubert Leclercq no site La Libre Afrique, onde reconstitui a fraude eleitoral que permitiu uma “histórica alternância pacífica”.
Convocado para uma reunião no palácio presidencial, Tshisekdi mostra-se “incrédulo” quando lhe propõem ser o “vencedor”. Inicialmente, nem todos os “kabilistas” aceitam bem a ideia do chefe. Muitos duvidam da “lealdade” de Tshisekedi. O general John Numbi é então encarregado de contactar Fayulu, para saber se este aceitaria “pôr água na fervura”, como relata Leclercq.
É também pedida a intercessão de Leila Zerrougui, representante especial do secretário-geral da ONU no Congo, para que pergunte ao candidato da Lamuka “quais as garantias” que estaria disposto a dar para garantir o futuro de Kabila.
Fayulu manteve-se intransigente, ignorando até os conselhos da sua coligação para que se mostre mais flexível, segundo Leclercq.

© Council on Foreign Relations
Na noite de 10 de Janeiro de 2019, Corneille Nangaa, presidente da Comissão Eleitoral Nacional Independente (CENI, controlada por Kabila), anuncia resultados provisórios que dão 7.051.013 votos, ou seja, 37%, a Tshisekedi, seguido de Fayulu, com 6.366.732, e de Shadary, com 4.357.59.
No dia 15, o diário britânico The Financial Times proclama o triunfo de Fayulu, com mais de 60% dos votos, citando uma fuga de dados provenientes da CENI e dos 40 mil observadores mobilizados pela influente Igreja Católica.
Dois dias depois, Paul Kagamé, presidente do Ruanda e (em exercício) da União Africana, convoca uma reunião de emergência em Adis-Abeba, capital da Etiópia, para discutir a situação na RDC. Além dele, estão presentes os homólogos de Angola, do Uganda, da Guiné-Conacri, do Chade, da Namíbia, da Zâmbia e da África do Sul.
Nesta reunião tensa, de mais de quatro horas, todos concluem que os resultados provisórios “não correspondem à realidade”. Publicam um comunicado apelando a que seja adiada a divulgação dos números definitivos e comprometem-se a enviar, no dia 21, uma delegação a Kinshasa “para chegar a um consenso sobre como sair desta crise pós-eleitoral”.

Baz Ratner | Reuters | The Guardian
Furioso, Kabila “faz lobbying” junto do Ruanda e da África do Sul. As autoridades em Kigali recebem uma delegação congolesa, e tranquilizam-na: “Não interviremos, se confirmarem Tshisekedi.”
Paralelamente, numa conversa telefónica com o actual (Cyril Ramaphosa) e o anterior (Jacob Zuma) presidentes sul-africanos, Kabila reconhece a derrota do seu “delfim”, mas avisa: “A vitória de Fayulu será o meu exílio ou a minha morte. Já proclamei provisoriamente a eleição de Tshisekdi. Poderei confirmá-la e salvar a situação. Se me impuserem Fayulu, haverá um banho de sangue. Não venham a Kinshasa e tudo ficará resolvido.” Kabila convence os interlocutores.
A 19 de Janeiro, o Tribunal Constitucional do Congo (sob a alçada de Kabila) considera legítimo, mas “absurdo”, o pedido de Fayulu de uma recontagem de votos. E recusa-o por “não haver fundamento nem provas” de irregularidades, porque a CENI “apresentou resultados autênticos e sinceros”.
No dia seguinte, o chefe de Estado queniano, Uhuru Kenyatta, envia a Kinshasa um emissário especial para tentar – em vão – convencer Fayulu a aceitar os resultados oficiais. “Ele veio com a ideia de criar um cargo de vice-presidente. Ora, isso não existe na Constituição”, critica Fayulu, numa entrevista ao diário francês Le Monde.
Influenciado por Pretória, o primeiro chefe de Estado africano a reconhecer a “vitória” de Tshisekedi foi o da Namíbia. Seguiram-se os da Tanzânia, do Burundi e do Quénia. Este último, Uhuru Kenyatta, já tinha sido crucial para o aparecimento de Tshisekedi e do seu movimento CACH (Cap pour le Changement), em finais de Novembro de 2018, em Nairobi, ao recusar apoiar Fayulu e a plataforma eleitoral Lamuka.
No dia 24 de Janeiro de 2019, Tshisekedi é investido presidente. “Assassinaram o Estado de Direito”, acusa Fayulu.
As crises que aguardam Tshisekedi
Há mais de um século que o Congo, país por muitos cobiçado, tem sido vítima de revoltas, insurreições e guerras. Dos conflitos que permanecem activos, num ciclo de violência que parece não ter fim, destacamos três, que constituem grandes desafios para o novo presidente:

Nos últimos dois anos, mais de 1900 civis foram mortos e pelo menos 3300 raptados em cerca de 3000 incidentes violentos atribuídos a vários grupos armados no Leste da RDC, referem os monitores do Kivu Tracker
© Hugh Kinsella Cunningham | Save the Children | Al Jazeera
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Kivu-Norte e Kivu-Sul
Mais de 130 grupos armados combatem, por razões diversas, nas províncias do Kivu-Norte e Kivu-Sul, fazendo desta região, no Leste da República Democrática do Congo, “um dos lugares mais violentos do mundo”, segundo a Human Rights Watch. “Saber quem comete as atrocidades seria o primeiro passo para responsabilizar os criminosos e acabar com os abusos.”
A realidade, lamenta a HRW, que se associou ao Congo Research Group, da Universidade de Nova Iorque, para criar o Kivu Security Tracker, é que “as forças governamentais congolesas, em vez de reporem a segurança, também atacam os civis que deveriam proteger, ao criarem, apoiarem e usarem grupos armados (….), para controlar terras, recursos minerais e a prática de extorsão”.
Nos últimos dois anos, mais de 1900 civis foram mortos e pelo menos 3300 raptados em cerca de 3000 incidentes violentos atribuídos a vários grupos armados, referem os monitores do Kivu Tracker.
O “epicentro da violência” é o território Beni, onde se cometeu “um terço de todas as mortes de civis”, sobretudo em combates entre tropas congolesas e as Forças Democráticas Aliadas (ADF, na sigla inglesa), apoiadas pelo Uganda. Outros focos de violência são o território de Rutshuru, “onde ocorreram mais de um terço dos raptos”.
As ADF “mostram-se cada vez mais radicais, havendo relatos de que são financiadas pelo autoproclamado “estado islâmico” [ou Daesh]”. Mas o Congo Research Group observa que as ADF “são, acima de tudo, um grupo local que mantém laços estreitos com outras milícias, comunidades e oficiais do exército da RDC – que lhes fornecem munições, alimentos, uniformes e até soldados”.
Mais a sul, na confluência dos territórios de Rutshuru, Walikale, Masisi e Lubero, também se têm registado “batalhas ferozes que opõem o exército congolês, em aliança com milícias locais, às Forças Democráticas para a Libertação do Ruanda (FDLR), grupo armado maioritariamente hutu”, adianta o Kivu Tracker.
O Kivu-Sul tem sido igualmente cenário de violentos confrontos, motivados por rivalidades étnicas, entre duas comunidades: os Babembe, Bafuliru e Banyindu (que se consideram “indígenas” congoleses) e os Banyamulenge (pastores de origem ruandesa que, desde uma migração em massa no século XIX, habitam continuamente as áreas montanhosas remotas de Minembwe e Itombwe).
Rebeldes do Burundi, alguns deles apoiados por tropas governamentais ruandesas, também enfrentam, no Kivu-Sul, insurrectos ruandeses e milícias congolesas conhecidas como Mai-Mai. Alguns deles contarão com “a assistência dos governos” em Kinshasa e Gitega.

Outubro de 2013: Comandos congoleses celebram uma vitória sobre rebeldes da milícia M23, ou Movimento Março 23, data de um armistício renegado pelos seus líderes, considerados pela ONU criminosos de guerra
© Peter Muller | Prime | The New York Times | National Geographic
O pior ainda estará para vir – uma nova guerra e uma grave crise de segurança regional -, segundo vários relatos, se o novo presidente congolês avançar com a proposta de integrar o Ruanda, o Burundi e o Uganda numa força conjunta, sob autoridade de Kinshasa, para combater os rebeldes que cada um deles apoia no Leste da RDC.
O presidente ruandês, Paul Kagamé, um dos que mais tem contribuído para desestabilizar o Congo, pilhar as suas imensas riquezas minerais e causar milhões de mortes desde 1998 – sem nunca ter pedido perdão por estes crimes –, acusa o Burundi e o Uganda de armarem rebeldes nos dois Kivus, e ameaça retaliar por ataques que têm sido cometidos contra o Ruanda.
O Burundi e o Uganda, por seu turno, acusam o Ruanda de patrocinar grupos rebeldes na RDC que ameaçam os seus territórios.
Analistas congoleses, como Patrick Mbeko, do site veritasinfo.fr, criticam Tshisekedi por se mostrar “ainda mais dócil” do que o predecessor, Joseph Kabila, em relação a Kagamé, um homem “que tem mais inimigos do que amigos” e que, “com a ingénua cumplicidade” do líder congolês, estará a preparar-se para fazer da RDC “a base central para uma invasão do Burundi e do Uganda”.
Mbeko critica também “a inacção” da MONUSCO, a força de estabilização das Nações Unidas, que “está ao corrente de todos os golpes contra o Congo, mas nada faz”.
A ONU encoraja Tshisekedi a enveredar por uma “via diplomática”, como sugere Angola, recomendando conversações com o Ruanda, o Burundi e o Uganda, com vista a uma solução. Só que esta, como observa o Congo Research Group “é cada vez mais ilusória”, devido a vários factores.
Um dos factores é “a dramática proliferação de grupos armados” que dificulta a resolução de disputas pelo controlo de terras e de lucrativas actividades comerciais. Outro factor: nas duas últimas décadas, o conflito criou “uma burguesia militar (com elites de segurança, económicas e políticas) que se aproveita dos combates para avançar as suas carreiras e à qual convém a continuação da violência”.

A missão da ONU e os doadores internacionais têm sido criticados por serem “incapazes de transformar, significativamente, a dinâmica dos conflitos [na RDC] e de promover uma paz duradoura” (Na foto, “capacetes azuis” em patrulha numa aldeia)
© monusco.unmissions.org
Pelo contrário, as autoridades em Kinshasa “têm privilegiado a criação de redes de apoio – algumas das quais integram grupos armados – em detrimento da segurança dos cidadãos, e a continuidade das elites em prejuízo de reformas institucionais”.
As lutas por terras e recursos, que têm sido o motor de a violência, continuam a ser importantes, mas não se pode ignorar um outro contexto: os grupos armados fazem agora parte de redes de elites, salienta o grupo de estudos da Universidade de Nova Iorque.
Quanto à missão da ONU e aos países doadores, têm sido “incapazes de transformar, significativamente, a dinâmica destes conflitos e de promover uma paz duradoura”. Porque muitas vezes “as mudanças necessárias são demasiado arriscadas, ou são difíceis, do ponto de vista político ou financeiro”.
A recomendação do Congo Research Group é que Tshisekedi comece por empreender uma “ampla reforma das forças de segurança congolesas, afastando os responsáveis por graves abusos, e ponha em prática um vigoroso programa de desmobilização que inclua uma estratégia de longo prazo para a reintegração de antigos combatentes”.
Precisa também de exortar as comunidades locais à reconciliação e à justiça, que abrirão caminho ao desenvolvimento económico. Mas será que Kabila e Kagamé o deixarão seguir por este caminho?
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Ituri

Uma igreja abandonada na aldeia de Lita, na província de Ituri. O tempo e os edifícios adjacentes não foram reconstruídos depois de uma série de ataques atribuídos a combatentes Lendu pelos seus vizinhos Hema
© Alex McBride Wilson | Al Jazeera
O conflito na província de Ituri, no Nordeste, é “um sistema de guerras, mais do que uma guerra única”, opondo camponeses e caçadores Lendu a pastores Hema, com “apoio e ingerência de forças estrangeiras, mais ou menos visíveis”, descreve o investigador francês Thierry Vircoulon, num artigo na revista Afrique Contemporaine.
Os confrontos repetem-se, ciclicamente, desde 1911 – em 1921, 1969, 1971, 1981, de 1992 a 1993, de 1999 a 2003, de 2008 até agora. Entre 1999 e 2003, registaram-se cerca de 60 mil mortos e dez vezes mais deslocados.
Depois de alguns anos de acalmia, graças a uma missão da União Europeia, os confrontos reacenderam-se em Dezembro de 2017, sobretudo nos territórios de Djugu e Mahagi, na sequência de escaramuças entre jovens Hema e Lendu.
Até Junho de 2019, segundo a ONU, registaram-se mais de 700 mortos, quase 200 feridos uns 300 mil deslocados internos. Quase 57 mil refugiaram-se no Uganda e mais de 556 mil escaparam para territórios vizinhos ou para as imediações de Bunia, cidade-capital de Ituri.
Numa província afligida por uma epidemia de cólera e onde o vírus Ébola já matou mais de 130 pessoas, um relatório das Nações Unidas alerta que, em Ituri, estarão a ser cometidos “crimes contra a humanidade, ou até de genocídio”, tendo em conta “a barbárie que caracteriza os ataques – incluindo decapitações de mulheres e crianças com machetes, actos de canibalismo e o desmembramento de corpos como troféus.”
A maioria dos ataques é atribuída a milicianos Lendu, mas a ONU acusa também os Hema de incendiarem aldeias Lendu e outros actos de represália. A mais recente vaga de violência começou, em 10 de Junho de 2019, quando mercadores Lendu foram mortos numa emboscada, alegadamente cometida por assaltantes Hema, o que gerou um banho de sangue.
Igualmente criticados são soldados e polícias, pela sua passividade e por eles próprios serem responsáveis por “assassínios extrajudiciais, violência sexual, raptos, escravatura, trabalhos forçados e prisões arbitrárias.”
O conflito em Ituri começou em Djugu – “o mais rico, em termos agrícolas; o mais complexo, no plano étnico” – dos cinco territórios desta província. “A geo-etnia dos Hema e dos Lendu estava de tal modo entrelaçada que era quase impossível diferenciá-la: aldeias Hema integravam populações Lendu e vice-versa”, observou Thierry Vircoulon.
O poder colonial criou em Ituri numerosas fazendas. Quando o Congo Belga se tornou Zaire, muitas delas foram confiadas aos seus protegidos Hema, vistos como “raça superior”. Os donos esperavam recuperá-las quando Mobutu Sese Seko saísse de cena. Só que a “zairização” perdurou e os Hema registaram em seu nome estas propriedades – onde trabalhavam os Lendu.
Nos anos 1990, uma lei agrária beneficiou ainda mais a elite Hema, permitindo-lhe expandir terras em Djugu, em detrimento dos Lendu, a maioria analfabetos e sem meios financeiros para reclamar direitos. A Polícia e a administração local, controladas pelos Hema, não foram árbitros imparciais. Finda a era Mobutu e o advento da RDC, a corrupção de governantes e juízes em Djugu exacerbou as tensões.

Os habitantes de Ituri e os vizinhos do Kivu também disputam duas riquezas comerciais confirmadas (ouro [na foto, trabalhadores extraem este recurso] e peixe – que, depois de seco, é exportado para o interior da RDC e para o Uganda) e uma terceira que se presume existir no Lago Alberto (petróleo)
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Em plena “Grande Guerra do Congo” (1998-2002), que causou 5,4 milhões de mortos, perante a ausência do Governo central, o exército ugandês (UPDF) instalou-se em Ituri, em 1999, e aceitou ser contratado pelos Hema, para reprimir os Lendu em Djugu. No entanto, atraído por outros interesses lucrativos na província, também se colocou ao serviço dos Lendu.
Ao controlar regiões ricas em ouro, como Mubanga, treinando e vendendo armas aos Hema e aos Lendu, o UPDF agia como uma verdadeira milícia que alimentava combates fratricidas.
Uma outra forma de antagonismo complica a situação: os habitantes de Ituri e os vizinhos do Kivu também disputam duas riquezas comerciais confirmadas (ouro e peixe – que, depois de seco, é exportado para o interior da RDC e o Uganda) e uma terceira que se presume existir no Lago Alberto (petróleo).
O controlo destes recursos e dos meios de comunicação (estradas, camiões, navios) no eixo Kinshasa-Kisangani-Bunia, permanece no centro das estratégias dos vários grupos armados e comunidades que estes, supostamente, representam.
Não admira, como anota Thierry Vircoulon, que a “guerra tribal” em Ituri se tenha “espalhado como um cancro, cujas inúmeras metásteses desafiam qualquer diagnóstico”.
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Kasaï

A crise em Kasaï, que já causou 3000 a 5000 mortos, 1,4 milhões de deslocados internos e milhares de refugiados em Angola (entretanto expulsos), atingiu em Dezembro de 2019 o nível de emergência mais elevado – comparável ao do Iémen, da Síria e do Iraque
© John Wessels | AFP | noticias.uol.com.br
A ONU não tem dúvidas de que tropas governamentais e duas milícias – Bana Mura e Kamwina Nsapu – são culpadas de “crimes de guerra” na região de Kasaï, no “coração” da RDC. Soldados e milicianos são acusados de “matar, mutilar, decapitar, violar, escravizar, recrutar crianças-soldados, destruir aldeias e cometer outros actos desumanos contra civis”.
A crise em Kasaï, que já causou 3000 a 5000 mortos, 1,4 milhões de deslocados internos e milhares de refugiados em Angola (entretanto expulsos), atingiu em Dezembro de 2019 o nível de emergência mais elevado – comparável ao do Iémen, da Síria e do Iraque.
As raízes deste conflito remontam a Novembro de 2011, quando Jean-Pierre Mpandi, foi escolhido para ser “Kamuina Nsapu”, título honorário do chefe do clã Bajila Kasanga. As autoridades provinciais recusaram reconhecê-lo por o considerarem um opositor. Ofendido, Mpandi negou-se, por seu turno, a legitimar o governo provincial e o então presidente, Joseph Kabila.
Em 12 de Agosto de 2016, Mpandi foi morto a tiro durante um ataque à sua residência. Para se vingarem desta afronta, uma milícia designada Kamuina Nsapu incendiou vários edifícios públicos, atacou soldados, polícias e outros representantes do Governo central.
Desde então, verificou-se uma escalada de confrontos. Os Kamuina Nsapu, muitos deles jovens com menos de 14 anos, munidos sobretudo de machetes, espingardas caseiras ou apenas varas, enfrentam forças governamentais e uma milícia aliada, Bana Mura, mais bem apetrechadas.

A violência, que evoluiu de rebelião para uma “campanha de limpeza étnica” de parte a parte (os Kamuina Nsapu pertencem aos povos Luba e Lulua; os Bana Mura fazem parte dos Chokwe e Pende), aumentou o ressentimento e o desespero em Kasaï, outrora uma das regiões mais prósperas e pacíficas da RDC, mas hoje uma das mais pobres
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Um dos piores massacres foi cometido na povoação de Nganza, em Março de 2017, quando soldados e milicianos Bana Mura lançaram aqui uma “operação porta-a-porta”.
Durante três dias, “entraram nas casas, apoderaram-se de televisores, telemóveis, animais e dinheiro, matando todos os que não tinham valores suficientes para lhes dar”.
Foram mortos a tiro homens mulheres e crianças, incluindo recém-nascidos e idosos, baleados nas suas camas. Algumas casas foram arrasadas por rockets e os moradores queimados vivos. No total, mais de 500 pessoas terão sido mortas. Alguns cadáveres foram lançados em pelo menos 80 valas comuns.
Estes dados constam de uma carta dirigida por 400 sobreviventes ao actual presidente, Félix Tshisekedi, que prometeu o fim da impunidade. Até agora, porém, só começaram a ser julgados os suspeitos pelo assassínio de dois investigadores da ONU, uma sueca e um americano.
A violência, que evoluiu de rebelião para uma “campanha de limpeza étnica” de parte a parte (os Kamuina Nsapu pertencem aos povos Luba e Lulua; os Bana Mura fazem parte dos Chokwe e Pende), aumentou o ressentimento e o desespero em Kasaï, outrora uma das regiões mais prósperas e pacíficas da RDC, mas hoje uma das mais pobres.
Como os habitantes perderam duas ou três colheitas, “aumentou em 750% a insegurança alimentar” e subiram também as taxas de má nutrição. Em Maio de 2019, a UNICEF advertiu que metade das crianças com menos de 5 anos de idade (770 mil) estão desnutridas, incluindo “400 mil que correm o risco de morrer de fome”.
Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) documentaram, por seu turno, um número alarmante de violações – pelo menos 2600 vítimas de abusos sexuais foram tratadas entre Maio de 2017 e Setembro de 2019.
Números de um “presente apocalíptico”

A RDC “tem absolutamente tudo” no que diz respeito a recursos naturais, mas 64% da sua população vive abaixo do limiar da pobreza
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- 64%
da população da República Democrática do Congo (RDC) vive abaixo do Limiar Internacional de Pobreza, ou seja, com menos de 1,90 dólares por dia. No entanto, o país que é definido em meios científicos como “uma aberração geológica” tem “absolutamente tudo” em termos de riquezas minerais: petróleo e diamantes, ouro, prata e cobre, lítio, cobalto e cádmio, urânio, ferro e carvão, estanho e germânio, manganês e bauxite… Com florestas luxuriantes, possui também grandes quantidades de madeira. Produz ainda café e cacau, açúcar e chá, óleo de palma, algodão e borracha;
- 5,4
milhões de pessoas foram mortas na “Grande Guerra de África” ou Segunda Guerra do Congo (1998-2003), o mais sangrento conflito desde a II Guerra Mundial, que envolveu soldados e civis de nove países e inúmeros grupos rebeldes. Outros milhões enfrentaram fome e doenças. E vários milhões de meninas e mulheres foram violadas. As ondas de choque deste conflito ainda hoje se fazem sentir.
- 5,6
milhões é o número (e o mais elevado de todos os países africanos) de deslocados internos, em consequência dos vários conflitos armados;
- 1
milhão (aproximadamente) de congoleses são refugiados em países vizinhos, como o Uganda, Angola, a África do Sul, o Burundi, a Tanzânia e a Zâmbia.
- 527
mil (ou mais) é o número de refugiados que a RDC acolhe, provenientes sobretudo do Ruanda, da República Centro-Africana, do Sudão do Sul e do Burundi. Mais de 50% destes refugiados são mulheres e crianças.
- 13
milhões não têm acesso a alimentação suficiente – entre eles, mais de 1,3 milhões de crianças com menos de 5 anos, afectadas por desnutrição grave;
- 10%
das crianças-soldados (cerca de 300 mil) recrutadas em todo o mundo são da RDC. Crianças entre os 8 (algumas com 6) e os 16 anos representam pelo menos 60% dos soldados da região. Mais de 35% destas crianças são “recrutadas voluntariamente”, porque precisam de escapar da pobreza, razão que as leva também para as minas, o mais perigoso trabalho infantil. Um terço das crianças-soldados são meninas usadas como “esposas” e escravas sexuais de homens mais velhos, sujeitas a abusos cruéis.
- 2249
mortes causadas pelo vírus Ébola – que deve o seu nome a um rio do Congo – foram contabilizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em Fevereiro de 2020. O número total de casos deste que é o pior surto na RDC e o segundo maior em todo o mundo, ultrapassava, no mesmo mês, os 3400.
- 23.028
casos de cólera foram também detectados pela OMS, entre Janeiro e Outubro de 2019, em 21 das 26 províncias congolesas. No mesmo período, terão morrido 395 pessoas. As zonas mais afectadas por esta epidemia são os Kivus (norte e sul), Tanganica e Alto-Lomani.
Fontes:
ACNUR, Banco Mundial, BBC, Child Soldiers International, OMS, ONU, The Borgen Project, The Humanitarian, Unicef, World Vision

Pierre Englebert é professor de Relações Internacionais em Pomona College, Claremont (Califórnia) e autor de várias obras de referência, tais como Africa: Unity, Sovereignty and Sorrow e State Legitimacy and Development in Africa
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Trésor Kibangula é investigador do Congo Research Group (também conhecido como Group d’étude sur le Congo), da Universidade de Nova Iorque
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Estes artigos, agora actualizados, foram publicados originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Março de 2020 | These articles, now updated, were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, March 2020 edition