Irão: O pior estará para vir?

Os EUA assassinaram o segundo homem mais poderoso da República Islâmica quando esta enfrentava a maior revolta política desde a queda da monarquia em 1979. Foi uma “agressão externa” que chocou muitos iranianos, incluindo os que protestam contra “as mentiras e a incompetência” do regime. As previsões são sombrias: uma vitória dos “duros” nas eleições de Fevereiro, uma guerra por procuração e a morte do agonizante acordo nuclear. (Ler mais | Read more…)

Homenagem a Qassem Soleimani, o homem que dirigia as guerra do Irão no Iraque, na Síria, no Líbano, no Afeganistão
© The New York Times

Um manifestante em Teerão ergue a fotografia de uma das 176 vítimas da queda do avião ucraniano abatido por mísseis dos Guardas da Revolução
© STR | AFP | The Washington Post

Nader Hashemi não ficou surpreendido ao ver os compatriotas protestar em massa contra a teocracia que os governa, dias depois de chorarem o “martírio” de Qassem Soleimani, o general cuja força os reprime nas ruas. “O Irão, um Estado de 80 milhões de habitantes, não é monolítico”, esclarece o director do Center for Middle East Studies da Universidade de Denver (Colorado, Estados Unidos), quando o inquiri sobre estes sinais de divisão e unidade.

Soleimani, 62 anos, comandante do batalhão Quds, corpo de elite dos Guardas da Revolução, foi assassinado por um drone americano, em 3 de Janeiro, no aeroporto de Bagdad. Os EUA alegaram, sem provas, que ele representava uma “ameaça iminente”.

Especula-se que a decisão de o eliminar terá sido um capricho de Donald Trump, embora ninguém negue que o segundo homem mais poderoso da República Islâmica tivesse as mãos manchadas de sangue.

Soleimani era o arquitecto da política externa de Teerão e o estratega militar da expansão regional iraniana – no Iraque, na Síria, no Líbano, no Iémen, no Afeganistão. Foi ele que, em 2005, conspirou para matar um protegido dos sauditas no Líbano, o primeiro-ministro Rafic Hariri, e assim consolidar o poder do Hezbollah.

Foi ele quem aproveitou o vazio criado por George W. Bush, após a queda de Saddam Hussein, para impor uma hegemonia xiita no Iraque. Foi ele que ajudou soldados americanos a derrotar o Daesh e criou milícias para matar soldados americanos e os forçar a uma retirada.

Foi ele quem convidou os russos a intervir na guerra síria, em 2015, oferecendo a vitória ao homicida Bashar al-Assad. Foi ele que armou e financiou os Houthis para combaterem as tropas de Riade no Iémen.

Em Novembro-Dezembro de 2019, quando dezenas de milhares de iranianos, a maioria jovens pobres e/ou desempregados, saíram à rua para contestar uma subida de 50% do preço dos combustíveis, coube aos Guardas da Revolução e à sua milícia Basiji a brutal repressão da maior contestação política ao regime desde a Revolução Islâmica de 1979.

Inicialmente pacíficos, os protestos acabaram por se tornar violentos e alastrar a 29 das 31 províncias do país perante a resposta implacável das forças de Soleimani. Manifestantes enfurecidos atacaram “50 bases militares” – sugerindo um nível de coordenação sem precedentes – e incendiaram “731 bancos, 140 espaços públicos, nove centros religiosos, 70 postos de gasolina, 183 veículos da polícia, 1076 motociclos e 34 ambulâncias”, segundo um balanço do Ministério do Interior.

A Amnistia Internacional calcula que “mais de 300” pessoas foram mortas, muitas delas indiscriminadamente. A agência Reuters admite que terão sido “cerca de 1500”. Estima-se em “pelo menos 2000” o número de feridos e em “aproximadamente 7000” o de detidos.

Estas manifestações no Irão inspiraram as do Líbano e do Iraque, mobilizando xiitas, sunitas, cristãos e outros contra o domínio de Teerão e o sectarismo alimentado pelas milícias fiéis ao “mais importante soldado do Médio Oriente”.

Em 3 de Janeiro, porém, o assassínio de Soleimani gerou uma onda de indignação geral, com milhões de iranianos integrando um cortejo fúnebre supostamente maior do que o do fundador da república, Ayatollah Khomeini, em 1989.

Alguns opositores acusaram o regime de forçar a população a um luto patriótico fingido. Outros anotaram que o “modesto e incorruptível” Soleimani era uma figura popular e que a sua morte foi vista como “um acto de guerra”.

Iranianos enlutados acompanham o cortejo fúnebre do comandante Qassem Soleimani e do chefe paramilitar Abu Mahdi al-Muhandis; os dois homens foram assassinados num ataque ordenado por Trump no Iraque
© Sabah Arar | AFP | Newsweek

Uma vigília para recordar as vítimas do avião derrubado por mísseis iranianos, junto à Universidade Amir Kabir, em Teerão
© Ebrahim Norrozi | AP | The Boston Globe

Em 8 de Janeiro, o Irão vingou-se da “execução extrajudicial” de Soleimani disparando 16 mísseis contra duas bases militares dos Estados Unidos no Iraque. O Pentágono absteve-se de retaliar, porque “não houve baixas entre soldados americanos” (a CNN revelaria posteriormente que 11 foram feridos), tentando evitar uma escalada de tensões. Mas as tensões estavam ao rubro e o Irão cometeu, no mesmo dia, um erro fatal.

Pouco depois de um ataque à base de Ain al-Assad, os Guardas da Revolução abateram “por engano” um avião da Ukraine International Airlines, com destino a Kiev. Morreram todas as 176 pessoas a bordo.

Durante três dias, as autoridades em Teerão negaram responsabilidade, justificando a queda da aeronave com “problemas técnicos”. Só intensas pressões internacionais obrigaram o regime a uma admissão de culpa. “O avião foi confundido com um míssil – foi um erro indesculpável”, explicaram tardiamente as autoridades, nenhuma das quais se demitiu.

O New York Times verificou imagens de câmaras de segurança mostrando que foram dois mísseis, lançados de uma base militar a cerca de 12km de distância do Aeroporto de Teerão, que atingiram o voo PS752. O primeiro desactivou o equipamento de comunicação do avião e o outro foi disparado cerca de 23 segundos depois. Nenhum deles causou imediatamente a queda do aparelho.

Em chamas, o avião ainda faz inversão de marcha, mas, minutos depois, explodiu e despenhou-se. Falhou por um triz uma aldeia.

A tentativa de ocultar o crime escandalizou os iranianos, que, em ruidosos protestos, inundaram ruas, estações de metro e universidades, na capital e noutras cidades, exigindo a demissão e condenação do Líder Supremo. Outros queixavam-se: “Matam os nossos génios e deixam os mullahs no poder”. (Algumas das vítimas eram cientistas de dupla cidadania iraniana-canadiana.)

No Twitter, comentadores registaram que alguns dos que haviam participado nas procissões em memória de Soleimani juntaram-se aos que, dias depois, vituperavam o regime. Como entender esta aparente contradição?

“A cultura política iraniana está profundamente moldada pelos temas de anti-imperialismo, nacionalismo e democracia”, explica o académico Nader Hashemi, numa entrevista que me deu, por e-mail. “Após a morte de Soleimani, vimos a demonstração de um sentimento nacionalista e anti-imperialista.”

“Ele era um herói nacional que lutou na guerra Irão-Iraque [1980-1988] e protegeu o Irão do Daesh (os seus imensos crimes de guerra na Síria são pouco falados no Irão). O seu funeral, organizado pelo Estado, atraiu muitos apoiantes, mas também cidadãos que detestam o regime.”

“Depois da queda do avião ucraniano, muitos dos que foram ao funeral saíram igualmente à rua para protestar contra as mentiras do governo, e contra 40 anos de autoritarismo, corrupção e repressão”, adianta Hashemi. “Em resumo, os iranianos são capazes de protestar, simultaneamente, contra a política externa dos EUA e contra a ditadura clerical. Se virmos as coisas desta perspectiva, não há qualquer contradição.”

O assassínio de Qassem Soleimani foi precedido de um ataque à Embaixada dos EUA em Bagdad, no qual participaram milicianos pró-iranianos (como os da força paramilitar Hash al-Shaabi, aqui a partirem uma das janelas à prova de bala do edifício)
© AFP | middleeasteye.net

Depois do assassínio de Qassem Soleimani, o Irão atacou a base militar americana de Ain al-Asad, na província iraquiana de Anbar
© Qassim Abdul-Zahra | AP | deseret.com

A cientista política iraniana-americana Farideh Farhi, professora na Universidade do Havai, em Manoa, partilha a opinião do colega na Joseph Korbel School of International Studies em Denver. “A população do Irão é diversa em relação ao que pensa, mal ou bem, sobre o actual sistema”, diz-me ela, também por e-mail.

“Quando um dos seus generais, que muitos admiravam, é assassinado por um país que tem travado uma cruel guerra económica com impacto severo sobre a população, não surpreende a demonstração de unidade na fúria e no pesar.”

“Por outro lado, também eram inevitáveis os protestos após a queda trágica do avião ucraniano e subsequentes mentiras, porque muitos iranianos imaginam-se facilmente como passageiros daquele aparelho e como vítimas da inépcia e impiedade dos seus líderes”, comentou Farideh, membro do National Iranian-American Council (NIAC).

Para muitos iranianos na diáspora – sobretudo os que vêem Reza Pahlavi, o filho-herdeiro do último imperador, como alternativa de poder -, “o colapso do regime está próximo”. Alguns acreditam que o desaparecimento de Soleimani enfraqueceu a teocracia.

Nader Hashemi discorda: “O regime sairá reforçado. Até ao assassínio de Soleimani, o foco estava no legado das mortes de Novembro – quase 600 em 72 horas. Foram mortes que chocaram profundamente a sociedade iraniana, e o regime foi obrigado a pedir desculpa e a prometer indemnizações.”

“Agora, a República Islâmica tem um pretexto para mobilizar as pessoas à volta do nacionalismo e do anti-imperialismo, negligenciando questões como a repressão interna e as exigências de democracia.”

“Não hesito em dizer que Trump ofereceu à República Islâmica uma bóia de salvação. Os líderes iranianos conseguiram mudar completamente a narrativa dominante, para a centrar na política externa dos EUA – que já causava enorme miséria económica devido às debilitantes sanções impostas por Trump.”

Farideh Farhi alerta que “nenhum observador honesto da política iraniana pode falar com confiança sobre o futuro de um regime que se tem revelado resiliente, mesmo face a numerosos protestos. Não sei responder [se o colapso está iminente], mas adianto duas coisas.”

“A primeira é a de que, tendo em conta a falta de uma oposição organizada e uma alternativa, é muito prematuro falar de mudança de regime. Neste contexto, um colapso assemelhar-se-á mais a um caos do que a uma suave transição.”

“A segunda é a de que o modo como os recentes acontecimentos evoluíram expuseram os sérios desafios que se colocam ao governo e às várias instituições paralelas que gerem o país. Não sabemos como estas instituições irão reagir. Poderão enveredar numa direcção mais autoritária ou tentar amolecer os sentimentos populares, adoptando uma posição mais conciliatória e transparente.”

Numa mesquita em Teerão, mulheres iranianas choram a morte de Qassem Soleimani, uma figura venerada (e odiada) na República Islâmica
© Newsha Tavakolian | Magnum Photos | TIME

Milhares de iranianos saíram às ruas, furiosos por o regime ter tentado, durante três dias, negar a sua responsabilidade pela queda de um avião ucraniano, abatido “por engano”
© Arash Khamooshi | The New York Times

Ali Khamenei, o Supremo Líder, parece ter escolhido a primeira opção. Em 21 deste mês, o Irão terá eleições legislativas, e o Conselho dos Guardiões já vetou a recandidatura de 90 deputados reformistas, num sinal de que o regime endurece posições.

Farideh Farhi deplora que, “depois de uma tragédia, instituições não eleitas não vejam necessidade de mudança ou estejam com muito medo de quebrar velhos hábitos, mesmo que estes velhos hábitos sejam a causa de repetidos protestos.”

“Esta é uma prática corrente na República Islâmica que remonta aos anos 1990, quando o regime começou a afastar candidatos que considera excessivamente independentes ou com falta de lealdade ideológica”, recorda, por seu turno, Nader Hashemi.

“O crime destes candidatos é o de fazer perguntas sobre corrupção ou direitos humanos. As eleições no Irão nunca foram livres. Seria melhor designá-las por ‘selecções’. O resultado será provavelmente um parlamento cheio de ultraconservadores. À luz dos últimos acontecimentos, prevejo que afluência às urnas será muito baixa.”

Os Guardas da Revolução insistem em que “o conflito com os EUA ainda não acabou” e que não completaram a vingança pela morte de Soleimani. Estará uma nova guerra no horizonte?

“A haver uma guerra, será por procuração”, crê Hashemi. “O Irão sabe que não pode confrontar directamente os Estados Unidos. No ataque às bases americanas no Iraque, fez todos os esforços para não causar vítimas entre os soldados americanos. O método preferido de desafiar a posição dos EUA no Médio Oriente é usar os seus agentes [como as milícias] e travar uma guerra assimétrica.”

“Há muito tempo que o Irão vem fazendo isto. Podemos esperar mais ataques a navios no Golfo Pérsico, mais ataques a bases/soldados americanos através dos seus agentes, mais ataques a aliados dos EUA, como vimos em Setembro quando o Irão destruiu instalações petrolíferas da companhia Aramco na Arábia Saudita [e se safou].”

Equipas de salvamento no local onde se despenhou o avião ucraniano abatido por mísseis iranianos, pouco depois de ter descolado do Aeroporto de Teerão
© Akbar Tavakoli | IRNA | AP | kyivpost.com

O estado em que ficou o veículo em que seguia Qassem Soleimani, quando foi morto por um drone americano em Bagdad
© The New York Times

“Os Estados Unidos e o Irão já estão, efectivamente, em guerra, porque as sanções económicas que a América impôs aos iranianos também são uma guerra”, enfatizou Farideh Farhi. “Mas estamos a falar de dois países incomparáveis. Um é uma hiperpotência global, cujo poder militar e económico pode fácil e impunemente causar danos, mesmo quando se desvia de normas e leis internacionais.”

“O outro é uma potência regional de média dimensão que não pode causar danos directos aos EUA, economicamente ou de qualquer outra forma. Por isso, para convencer a América de que a sua campanha contra o Irão não está isenta de custos, este tem de recorrer a meios não convencionais. Não há qualquer hipótese de Teerão se envolver num confronto directo com os Estados Unidos.”

O que parece uma certeza é a agonia do acordo nuclear de 2015, conhecido pela sigla inglesa JCPOA. “Está ligado ao ventilador”, constata Nader Hashemi. “Embora o Irão e a Europa o tentem manter vivo, ele só existe em teoria. A culpa é de Donald Trump que revogou o acordo, em Maio de 2028, e está a encorajar o Reino Unido, a França e a Alemanha [o chamado grupo E3] a juntarem-se a ele.”

“Com a eleição de Boris Johnson, o acordo sofreu outro golpe, porque Johnson, agindo como agente de Trump, está a encorajar a negociação de um novo pacto. Mesmo que os europeus abandonem o acordo [original] e venham a impor novas sanções, não sabemos quais serão os efeitos práticos, porque o Irão já está sujeito às pesadas sanções de Trump.”

Por enquanto, apesar de Teerão ter retomado o enriquecimento de urânio, o E3 “parece interessado em salvar o JCPOA”, elogia Farideh Farhi, esperançosa de que haja ainda espaço para um “intenso processo diplomático”.

A questão que importa é saber “até que ponto os europeus estão confiantes de que poderão evitar uma escalada e não pedir novas sanções às Nações Unidas. O Irão ameaçou rever a sua doutrina nuclear – o que o poderá levar a abandonar o Tratado de Não Proliferação – se o E-3 levar o caso à ONU. Este é um resultado que a ninguém convém – nem ao Irão.”

“Este país é uma prisão e todos somos reféns – mas deixámos de ter medo”

Não se misturem com os guerreiros se tudo o que sabem fazer

É fugir quando o perigo vos ameaça

In: Shahnameh – O Livro dos Reis, a epopeia com que o grande poeta nacional iraniano Abolqassem Ferdowsi (?-1020) salvou a íngua, a história e a mitologia dos persas depois de várias invasões estrangeiras.

 

Uma fotografia que se tornou num símbolo dos protestos contra o regime no Irão
© STR |AFP |Getty Images | VOX

No dia em que a contactámos, Tarane(1), jornalista em Teerão, enviou-nos um vídeo perturbador. As imagens mostram um longo rasto de sangue num passeio da Rua Imã Khomeini, junto à estação de metro de Ostad Moein. Em passo apressado, transeuntes esforçam-se por não pisar este trilho que termina numa mancha densa, onde tombou um corpo ferido por balas.

Era sábado, 11 de Janeiro. Depois de três dias de negação, as autoridades iranianas admitiram finalmente ter abatido, “por engano”, um avião comercial ucraniano, num pico de tensão com os EUA, que haviam assassinado o general Qassem Soleimani, o segundo homem mais poderoso do regime.

Perderam a vida todas as 176 pessoas a bordo. Nas ruas rebentou “uma explosão de fúria”, relata Tarane, numa troca de mensagens. “Sentimo-nos mortos por dentro. Mentiram-nos. Que estúpidos são os nossos líderes! Como é que este governo nos pode proteger numa guerra?”

Os guardas terão começado a atacar por volta das 19:00. Para dispersar os manifestantes, usaram gás lacrimogéneo, bastões, projécteis de borracha e até munições reais. Várias pessoas ficaram feridas e outras foram detidas, segundo testemunhos citados pelo Centro de Direitos Humanos do Irão.

Tarane, de 28 anos, participou nos protestos que atraíram dezenas de milhares de iranianos, e alastraram da capital a outras cidades. Connosco ela partilhou várias fotografias e um outro pequeno filme.

Aqui vemos inúmeras pessoas, olhos melancólicos e rostos taciturnos, alguns protegidos por máscaras brancas, “para não serem identificados e perseguidos pelos [milicianos] basijis”, que, do cimo de um viaduto, filmavam esta ordeira amálgama humana, erguendo cartolinas brancas onde inscreveram slogans contra as autoridades.

Tal como em 1999, quando milhares de estudantes saíram à rua para tentar salvar a presidência do reformista Mohammad Khatami, e em 2009, para contestar a fraude eleitoral que deu um segundo mandato ao presidente ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad, também agora ruas e universidades se encheram de jovens entoando um velho hino revolucionário, Yare Dabestani (“Meu colega de escola”), cuja letra simboliza a luta pela liberdade,

Meu colega de escola,

Estás aqui a meu lado

Um ditador paira sobre as nossas cabeças –

Tu choras e suspiras comigo

Gravado neste quadro negro

Estão o meu e o teu nome

A tirania que nos oprime

Não desapareceu com o tempo

Os campos da nossa cultura

Tornaram-se baldios esquecidos

Para o bem ou para o mal –

Os corações das pessoas estão agora mortos

Com as minhas e as tuas mãos

Teremos de derrubar este muro

Quem senão nós

Tem o poder de curar a nossa dor? (2)

“Veio gente de todas as idades e classes sociais”, exulta Tarane, descrevendo os protestos. “Pais e mães trouxeram os filhos. Já ninguém se assusta e foge como outrora. Lutam e gritam palavras de ordem [como “Abaixo Khamenei!”, o Supremo Líder] consideradas ofensas de pena capital. Vi pessoas a serem espancadas pelos basijis. Deixámos de ter medo deles.”

Um retrato emoldurado de Qassem Soleimani é erguido por mulheres iranianas, durante os três dias de celebrações oficiais da sua morte
© Newsha Tavakolian | Magnum Photos | TIME

Estudantes iranianos homenageiam as vítimas do avião ucraniano abatido por mísseis dos Guardas da Revolução, durante um protesto na Universidade de Amir Kabir, em Teerão
© Abedin Taherkenareh | EPA | The New York Times

“É de uma guerra que temos medo. Odiamos Donald Trump, porque ele é racista e mandou matar Soleimani, que era muito popular no Irão. Odiamos também o nosso governo religioso. Odiamos o hijab [que as mulheres são obrigadas a usar]. Odiamos os Pahlavi [a última dinastia imperial].”

“Os media do Irão e na diáspora, como a estação Manoto [ligada a figuras que promovem a reinstauração da monarquia] só desinformam. Para eles, ora somos heróis, ora somos vilões. A realidade é que este é um país complexo, amado por todos. Só ambicionamos viver em segurança e ter boas relações com o resto do mundo.”

“A vida é tão dura”, sobretudo desde que Trump abandonou o acordo nuclear assinado por Barack Obama em 2015 e impôs sanções mais penosas apesar de o Irão estar a cumprir o que prometera, lamenta Tarane. “É tão difícil trabalhar, ter um sustento. Não podemos comprar medicamentos, porque os preços duplicaram.”

O Fundo Monetário Internacional (FMI) admite que o embargo está a dizimar a economia iraniana, que se contrai “a uma alarmante taxa anual de 9,5%”. Em Dezembro, as exportações de petróleo, principal fonte de receitas, ficaram reduzidas a zero. A inflação aproxima-se dos 40%, dificultando o acesso a produtos básicos. Empresas correm o risco de fechar. Mais de um em cada quatro jovens iranianos não tem empregos, a maioria deles recém-licenciados, segundo o Banco Mundial.

“As pessoas estão desesperadas”, vinca Tarane. “Muitas refugiam-se na droga e no álcool. A geração mais nova pouco ou nada tem, excepto Instagram e narcóticos. Com o dinheiro que ganham [como “influenciadores”], os jovens drogam-se e embebedam-se mais.”

O número de toxicómanos no Irão, um Estado com 921 km de fronteira porosa com o Afeganistão, produtor de 90% do ópio que exporta para vários países, totalizava em 2018 entre 2,8 milhões e três milhões de pessoas, com idades entre os 15 e os 65 anos, segundo dados oficiais do Governo.

Revolta em Teerão: “Muitos iranianos imaginam-se facilmente como passageiros daquele aparelho e como vítimas da inépcia e impiedade dos seus líderes”
© Mona Hoobehfekr | ISNA| AP | Business Insider

Os números reais serão mais elevados, alerta a ONU. O consumo está a aumentar entre mulheres e crianças (algumas com 11 anos). Grávidas dão à luz bebés já viciados, que morrem prematuros ou dificilmente se livram desta dependência ao longo da vida.

“Os iranianos no exílio acham que uma mudança de regime é a solução para os nossos problemas, mas eu não acredito nisso”, sublinha Tarane. “Tenho medo de uma guerra que resulte na desintegração da pátria, cada pedaço cobiçado por outros. Vou para a rua protestar porque detesto tudo o que me obrigam a fazer neste país, que é uma prisão e onde todos vivemos como reféns.”

As eleições legislativas marcadas para 21 deste mês de Fevereiro não lhe oferecem esperança, admite Tarane. Dezenas de deputados reformistas foram impedidos de se recandidatar pelo Conselho dos Guardiões – o organismo que veta os políticos críticos.

“Palpita-me que, desta vez, ganharão os ‘falcões’, porque eles estão revoltados e porque o povo está desmotivado. Mesmo os que votaram nos reformistas tencionam abster-se. Prevejo o regresso aos tempos de Ahmadinejad. Se os ‘falcões’ desafiarem Trump, teremos uma guerra. E nós só queremos sobreviver.”

(1) Este nome é fictício, escolhido pela entrevistada, para garantir a sua segurança.

(2) Tradução livre a partir da versão inglesa

Nader Hashemi, director do Center for Middle East Studies da Universidade de Denver (Colorado, Estados Unidos)
© Middle East Politics Podcast | SoundCloud

Farideh Farhi, cientista política, professora na Universidade do Havai, em Manoa
© Middle East Institute

Estes artigos foram publicados originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Fevereiro de 2020 | These articles were originally published in the Portuguese new magazine ALÉM-MAR, February 2020 edition

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