“A ‘era da rebelião’ oferece muitos sinais de esperança”

A última década acabou como começou, e 2020 inicia-se da mesma forma. Com revoltas populares contra a autocracia, a desigualdade, a discriminação, o desemprego, a corrupção. “É admirável que tanta gente destemida em tantos países esteja a exigir aos seus governos elevados padrões de integridade e justiça social, muitas vezes arriscando a própria vida”, elogia o académico australiano Peter McPhee. Estas “rebeliões” – e não “revoluções” – mostram que pessoas corajosas encontrarão sempre forma de contestar poderes e reclamar direitos. (Ler Mais| Read more…)

Um manifestante enfrenta um grupo de polícias anti-motim, erguendo uma bandeira vermelha, durante um protesto em Roma (Itália), no âmbito um dia de marchas globais inspiradas pelo movimento Occupy Wall Street
© Alberto Pizzoli | AFP | Getty Images

Professor catedrático e emérito da Universidade de Melbourne, da qual foi o primeiro reitor e onde continua a dar aulas e a investigar, Peter McPhee é autor, co-autor e coordenador de mais de duas dezenas de livros. Entre as suas obras de referência estão The French Revolution: 1789-1799; Robespierre: A Revolutionary Life; Liberty or Death: The French Revolution; A Social History of France: 1789-1914. Em 2003, o governo australiano atribuiu-lhe a Medalha Centenária, reconhecendo o seu serviço à educação, em várias instituições de ensino superior. Em 2012, foi condecorado pela Rainha Isabel II com a Ordem da Austrália. Deu-me esta entrevista, conduzida em dois tempos, por email.

Como é que um historiador da Revolução Francesa olha para os protestos em massa que estão a abalar o mundo?  Podemos comparar os novos “rebeldes” a modernos jacobinos que lutam contra a tirania contemporânea, ou estamos a assistir a algo completamente diferente?

Como historiador da Revolução Francesa, e das revoluções em geral, olho para os protestos como um sinal de alerta que a sociedade emite: um indicador de transições e questões mais abrangentes. As actuais rebeliões em larga escala em vários países revelam o enorme stress que aflige o nosso mundo. E dizem-nos muito.

É profundamente revelador este tempo em que vivemos, com protestos gigantes no Médio Oriente e na América do Sul, mas também movimentos importantes em lugares diversos como Hong Kong, a Catalunha ou o Zimbabwe.

Precisamos, todavia, de distinguir entre protesto, rebelião e revolução. Embora os protestos nas suas diversas formas sejam endémicos, é muito raro as pessoas revoltarem-se violentamente contra um regime vigente. E são ainda mais raras as revoluções.

Tem havido revoluções genuínas ao longo da história. Mas os protestos que vemos hoje são, sobretudo, rebeliões com o propósito de afastar ou mudar radicalmente regimes atuais por outros que sejam mais democráticos, mais igualitários e menos corruptos. Não são movimentos revolucionários que tentam substituir um tipo de sociedade e política por outro.

Apoiantes dos direitos LGBT, em São Petersburgo (Rússia), lançam balões ao ar numa manifestação que assinala do Dia Mundial contra a Homofobia e Transfobia, em Maio de 2014
© Olga Maltseva | AFP | Getty Images

Está a dizer que estas rebeliões não são revoluções procuram apenas derrubar o regime e não o sistema?

Sim. Parece-me que estas rebeliões têm quatro objetivos comuns ou genéricos: respeito pela democracia; protecção contra a corrupção; oportunidades de emprego, em particular para jovens adultos; e melhores serviços sociais. É claro que cada rebelião tem também objetivos locais específicos.

Todas elas ocorrendo em países onde os governos clamam ser representantes da “vontade do povo”, as rebeliões apelam sobretudo a mudanças radicais no modo como os regimes se comportam mais do que tentam substituí-los por diferentes sistemas políticos e sociais. Esta é a razão por que acho que são rebeliões e não revoluções.

Vê outros denominadores comuns ou causas colectivas nestes protestos dominados por jovens?

Em muitos países, abunda a desilusão com o “défice democrático” (o fracasso do processo de uma suposta democratização nos anos 1990 [que seguiu ao colapso do Muro de Berlim e da União Soviética], a desconfiança e a hostilidade à corrupção).

A agravar tudo isto está a fúria gerada por uma acelerada globalização económica que resulta frequentemente num aumento do fosso entre ricos e pobres. Por um lado, [os jovens que protestam] vêem um abismo entre a sua educação e as suas aspirações; por outro, vêem asfixiadas as suas reais oportunidades de vida.

No Médio Oriente, por exemplo, 60% da população tem menos de 30 anos. [Cerca de 41% dos 7700 milhões de habitantes do mundo têm menos de 24. Os que têm menos de 15 totalizam 41% em África e 25% na Ásia e na América Latina, segundo estatísticas da ONU].

Dezenas de afegãos da província de Helmand descansam à chegada a Cabul, a capital, em Junho de 2018, depois de caminharem durante centenas de quilómetros, abstendo-se de comer e beber, para exigir o fim de décadas de conflito
© Mohammad Ismail | Reuters

“O país com maior probabilidade de se tornar revolucionário é o Iraque”, escreveu o professor no site “The Conversation”. Porquê? Não foi uma revolução o que aconteceu na Argélia ou no Sudão, onde as massas derrubaram dois ditadores (Abdelaziz Bouteflika e Omar al-Bashir), quebrando a barreira do medo reerguida após o fiasco das chamadas “primaveras árabes” no Egipto, na Líbia e na Síria?

Na Argélia e no Sudão, protestos persistentes conseguiram forçar líderes autoritários a demitirem-se. Na Argélia, foram marcadas eleições para 12 de Dezembro, mas os protestos continuam, porque as pessoas não arredam pé [das ruas].

No Sudão, um governo provisório aprovou uma lei para “desmantelar” o regime do ex-presidente Bashir, incluindo a dissolução do seu partido político e a expropriação dos seus bens. Sim, foram movimentos de protesto importantes e bem sucedidos – mas não foram revoluções e os seus resultados poderão vir a ser modestos.

A História ensina-nos que as revoluções só ocorrem quando há causas a longo prazo e uma ideologia sócio-política popular hostil ao regime em vigor.

Só se consegue derrubar um regime se os que detêm o poder não conseguirem conter confrontos violentos ou porque há deserções nas forças armadas. Não sabemos até que ponto estes factores estão suficientemente presentes nos protestos atuais. Não há provas de grandes deserções nas forças armadas ou na polícia em qualquer destas rebeliões.

Um factor muito importante na mais recente fase das “primaveras árabes” no Líbano, no Iraque e no Irão foi o abandono desordenado dos Estados Unidos dos seus compromissos internacionais na região. Isto criou a “tempestade perfeita” no Iraque, em conjunto com outros factores como o desemprego dos jovens, corrupção extrema e cepticismo político. Mas será que a fúria em relação aos governantes se transformará em ódio ao Irão?

Jovens sul-coreanas usam ganchos com flores no cabelo, numa concentração que se repete semanalmente junto à embaixada do Japão, em Seul, exigindo que este país assuma responsabilidade pelos abusos cometidos contra as chamadas “mulheres de conforto” durante a II Guerra Mundial
© Kim Kyung-Hoon | Reuters

Isso é importante porquê?

Sabemos que onde a fúria popular é desviada para a divisão religiosa ou a xenofobia as esperanças de uma sociedade melhor são frustradas. Há tantos exemplos, da Irlanda do Norte do passado ao Iraque actual [dominado por conflitos interconfessionais].

No entanto, foi muito significativo que o primeiro-ministro xiita Adel Abdul Mahdi [em Bagdad] tenha sido forçado a demitir-se recentemente na sequência de gigantescos protestos que agora reclamam uma mudança completa do sistema político. Isto é potencialmente revolucionário, pelo menos no sentido político.

Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o número de países que avançam para o autoritarismo excede os que adoptam a democracia, segundo um estudo recentemente publicado. Até que ponto as respostas dos regimes não democráticos – e as respostas dos governos democraticamente eleitos – a estes desafios estão a exacerbar os protestos que o professor define como “populares” e não “populistas”?

É importante distinguir entre “populista” e “popular”, uma vez que são respostas opostas ao desespero político e económico, alimentando uma raiva enorme.

Embora esta raiva alimente a base de partidos e líderes autoritários, “populistas” e até xenófobos (como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Rodrigo Duterte e Victor Orbán), a maioria das actuais rebeliões “populares” é sobretudo uma demonstração democrática de ultraje perante a injustiça social,  a corrupção das elites, a repressão política.

Os governos democraticamente eleitos nunca estiveram imunes a protestos. A lição mais solene que aprendemos em relações internacionais nos últimos 30 anos, desde 1989, é que eram muito ingénuas as nossas convicções quanto a uma estreita ligação entre democracia e boa governação.

O que importa é a qualidade do que designamos por cultura política, [um conceito] muito mais amplo do que [o de] política institucional.

A saúde das relações entre ambas condiciona o nível e a natureza dos protestos. Só quando há níveis aceitáveis de integridade e de prestação de contas na política institucional é que uma mais ampla cultura política é pacífica, mesmo se não desprovida de contestação. É uma noção simples, mas pouco comum na realidade!

Durante uma greve geral de 24 horas, em Atenas, em 2015, milhares de gregos saíram à rua em protesto contra as medidas de austeridade e cortes nos subsídios governamentais impostos pelo governo de esquerda de Alexis Tsipras
© Louisa Gouliamaki | AFP | Getty Images

Alguns analistas vaticinam que movimentos populares sem uma liderança clara terão os dias contados, porque, na ausência de estruturas organizativas que os mantenham num caminho não violento, haverá sempre o risco de cisões e cismas. Em Novembro, porém, depois de meses de protestos, muitos deles violentos, o movimento pró-democracia sem líderes em Hong Kong obteve uma estrondosa vitória eleitoral contra a poderosa China. Qual a sua opinião?

O movimento pró-democracia em Hong Kong orgulha-se de fluir pelas ruas “como a água”, que ninguém pode conter, e no entanto a sua extraordinária resiliência continua a esbarrar na teimosia das autoridades e – ainda mais importante –  na obediência e lealdade das forças armadas e da polícia.

Até agora, nem protestos engenhosos nem os resultados das eleições para os conselhos locais conseguiram demover os governantes.

Isto sugere que, para avançar, o movimento terá de negociar formalmente com as autoridades, só que o Partido Comunista Chinês em Pequim está de olho nos uigures em Xinjiang [província maioritariamente muçulmana onde a China reprime a aspirações à independência] e é improvável que aceite um compromisso.

A década terminou como começou, com reivindicações de mudança e países a mergulhar no desconhecido. Será a próxima década ainda mais explosiva? Quais os perigos e esperanças que se avizinham?

Os maiores perigos são a intercessão de um contínuo e rápido crescimento demográfico e consequentes pressões sobre os recursos, por um lado, e incessantes desastres climáticos e aquecimento global, por outro.

É muito provável que as respostas estes problemas se mantenham nacionalistas e autoritárias, gerando revolta popular contra injustiças evidentes. A nossa maior esperança é que uma nova geração de líderes políticos venha a elevar o nível da boa governação, integridade e postura internacional.

Mas como podem os jovens marcar a diferença num clima hostil, quando activistas como a sueca Greta Thunberg ou Joshua em Hong Kong, por exemplo, são constantemente criticados, deslegitimados ou detidos?

Um dos aspectos mais extraordinários das actuais rebeliões é, como diz, a ausência de uma liderança clara. Isso é uma fraqueza óbvia, mas também uma força. Porque dificulta os planos dos governos para reprimirem a oposição.

Líderes por uma mudança radical, como Greta Thunberg e Joshua Wong, sempre foram alvos para os que estão no poder. No entanto, é a resiliência e a capacidade de mobilizar os seus pares que fazem deles líderes. Haverá sempre indivíduos com um desejo ardente de melhorar as vidas dos concidadãos.

Liliana Segre (centro), 89 anos, sobrevivente do Holocausto e senador vitalícia, participa numa manifestação contra o racismo que juntou cerca de 600 presidentes de câmaras da Itália, em Dezembro de 2019. Numa altura em que o sentimento nacionalista e anti-imigração aumenta no país, Liliana Segre foi vítima de abusos e ameaças, depois de ter apelado a uma investigação aos crimes de ódio e anti-semitismo
© Luca Bruno | AP

Que recomendações faria aos líderes mundiais?

Neste momento, há um vazio trágico nas lideranças do mundo, com as três maiores potências (Estados Unidos, China, Rússia) envolvidas numa competição abertamente nacionalista, reivindicando impérios económicos e territoriais.

A retórica do interesse nacional e o desprezo deliberado pelas normas e regras de negociação internacionais estão a ser reforçados por pressões internas na União Europeia e pela fraqueza colectiva das Nações Unidas.

A UE está “desaparecida em combate” e a ONU mostra-se inábil para mudar egoísmos nacionais e sectários. Nunca houve uma necessidade tão urgente de líderes mundiais que promovam soluções genuinamente internacionais para os maiores problemas do mundo: alterações climáticas e suas consequências; conflitos militares e sociais devido a recursos limitados; pressões demográficas sobre o ambiente; conflitos nacionalistas e refugiados.

Noto que está pessimista em relação aos EUA de Trump (que poderá ser reeleito em 2020), à UE (onde a extrema-direita se mantém forte) e à ONU (que se revela ineficaz). O futuro também parece sombrio quando olhamos para o Reino Unido, prestes a embarcar numa viagem perigosa depois do Brexit; para a Índia de Narendra Modi, que parece transformar-se de um país democrático e secular numa “nação supremacista hindu”; para a China de Xi Jinping, que está a recolher DNA humano em massa para controlar identidades; para a Rússia de Vladimir Putin, que acaba de  aprovar uma lei visando perseguir jornalistas como “agentes estrangeiros”. Na América Latina, no Médio Oriente, na Ásia e em África, outros autocratas continuam resolutamente agarrados ao poder apesar de protestos incessantes. Onde é que vê sinais de esperança?

Há muitos sinais de esperança. Na Argélia, no Sudão e agora no Iraque, líderes impopulares têm sido forçados a demitir-se, embora não possamos assumir que o futuro virá a ser melhor. É admirável que tanta gente destemida em tantos países esteja a exigir aos seus governos elevados padrões de integridade e justiça social, muitas vezes arriscando a própria vida.

É claro que também há razões para sermos pessimistas, mas a lição da “era de rebelião” actual é que, mesmo sob regimes autocráticos, pessoas corajosas encontrarão sempre uma maneira de reivindicar os seus direitos.

Ao alegarem ter uma espécie de mandato popular, todos os governos estarão sempre vulneráveis à dissidência. Mesmo em países – como a China, a Venezuela ou o Irão – que atribuem a culpa pelos protestos a ingerências externas.

Peter McPhee, é professor catedrático e emérito da Universidade de Melbourne, da qual foi o primeiro reitor e onde continua a dar aulas e a investigar. É também autor, co-autor e coordenador de mais de duas dezenas de livros. Entre as suas obras de referência estão The French Revolution: 1789-1799; Robespierre: A Revolutionary Life; Liberty or Death: The French Revolution; A Social History of France: 1789-1914
© Cortesia de | Courtesy of Peter McPhee

 Uma década de protestos

Os últimos dez anos (2009-2019) foram marcados por um levantamento global contra a opressão e a corrupção dos políticos, desigualdades na sociedade e destruição do ambiente. Estas foram e são algumas lutas:

2009

IRÃO

Na noite de 12 de Junho, milhões de iranianos lançaram uma “Revolução Verde” para contestar os resultados das eleições que renovavam o mandato do presidente ultraconservador, Mahmoud Ahmadinejad. Mir Hossein-Mousavi e Mehdi Karroubi, os candidatos da oposição, que denunciaram fraude e clamaram vitória, foram e continuam presos. Centenas de pessoas foram atacadas, detidas e torturadas. Em 2011-2012 e 2017-2018, foram retomados e novamente reprimidos os protestos, desta vez contra as políticas económicas. Em 15 de Novembro de 2019, um aumento de 50% nos preços dos combustíveis gerou nova vaga de manifestações. Até Dezembro,  “mais de 300” pessoas (estimativa da Amnistia Internacional) ou “cerca de 1500” (dados da Reuters) terão sido mortas, muitas delas indiscriminadamente, o que chocou uma nação depauperada por décadas de sanções internacionais e pela incompetência e corrupção do regime. Milhares foram também feridas e detidas. Foi a maior  (e mais bem coordenada) revolta política contra a teocracia – abrangeu quase todas as províncias do país – desde a Revolução Islâmica de 1979.

Junho de 2009: Apoiantes do candidato reformista Mir Hossein Mousavi, que simbolizava a “revolução verde” e cuja vitória foi negada pelo regime, a favor do ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad, que conseguiu fraudulentamente um segundo mandato
© Alfred Yaghobzadeh

2009-2019: Iranianos, a maioria jovens pobres e desempregados, protestam contra um aumento dos preços dos combustíveis, em Novembro de 2019, numa auto-estrada em Teerão
© Nazanin Tabatabaee | WANA | Reuters

2010

TUNÍSIA

Foi a “Revolução de Jasmim” na Tunísia, iniciada em Dezembro, que inspirou a chamada “Primavera Árabe”. Milhares de tunisinos saíram às ruas depois de um jovem desempregado, Mohamed Bouazizi, se ter imolado pelo fogo quando agentes da polícia o impediram de vender a sua mercadoria numa feira em Sidi Bouzid. Os subsequentes protestos forçariam o ditador Zine El Abidine Ben Ali a demitir-se, em Janeiro de 2011, após 23 anos na presidência. A Tunísia, com uma sociedade civil robusta, foi o único caso de estabilidade política resultante das primeiras revoltas que se propagaram a vários países: Egipto, Bahrain, Iémen, Iraque, Jordânia, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Omã, Síria. Em Outubro de 2019, cativando os jovens com a promessa de integridade, o professor de Direito Kais Saied, reformado e conservador, 61 anos, foi eleito presidente com 73% dos votos.

2010-2019: Depois da mais bem sucedida das “primaveras árabes”, os tunisinos elegeram como presidente o professor de Direito Kais Saied, um conservador de 61 anos, apoiado pelos islamistas, que conquistou 73% dos votos
© Reuters

2011

EGIPTO-IÉMEN-LÍBIA

Inspirados pela sublevação tunisina, os iemenitas revoltaram-se contra o seu ditador, Ali Abdullah Saleh, em Janeiro; os egípcios derrubaram Hosni Mubarak, em Fevereiro; e a Líbia livrou-se de Muammar Kadhafi em Agosto. No Cairo, eleições substituíram Mubarak por Mohammed Morsi, mas a agenda islamista deste enfureceu os cidadãos e os militares que o derrubariam, em 2013 (e contribuíram para a sua morte, de ataque cardíaco, alegadamente devido a negligência médica, na prisão, em  Junho de 2019). Hoje, o país é governado por um marechal, Abdel Fattah el-Sisi, que reprime violentamente qualquer tentativa de dissidência. No Iémen, Saleh foi morto num ataque, o país mergulhou no caos e uma guerra iniciada por sauditas em 2014 contra o movimento xiita Houthi causou até agora cerca de cem mil mortos e dois milhões de deslocados. A Líbia também se fragmentou: dois governos rivais e mais de 300 milícias estão envolvidos numa guerra sem fim à vista.

2011-2019: Egípcios protestam na praça Tahrir, no Cairo, depois de, em 2013, os militares terem derrubado o presidente-eleito Mohammed Morsi, cuja agenda islamista estava a ser contestada nas ruas; o Egipto é hoje governado pelo marechal Abdel Fattah el-Sisi, considerado um ditador ainda mais opressivo do que Hosni Mubarak, afastado na revolta popular de 2011
© Suhaib Salem | Reuters

2011-2014: Um soldado da coligação saudita que bombardeia o Iémen desde a queda do presidente Saleh numa sublevação popular, olha para Áden, em Março de 2017 – uma cidade sob controlo da milícia xiita pró-iraniana Houthi. A guerra que já causou mais de cem mil mortos e dois milhões de deslocados parece não ter fim à vista
© Amira al-Sharif (fotógrafa nascida na Arábia Saudita e que vive no Iémen) | The Washington Post

2011-2019: Um membro do autoproclamado “Exército Nacional Líbio”, ao serviço de um dos dois governos rivais ( criados após a queda de Muammar Khadafi), ensina crianças numa escola, na cidade de Benghazi, como lidar com minas e explosivos, em 12 de Março de 2017
© Esam Omran Al-Fetori | Reuters | cfr.org

SÍRIA

A “revolução” síria começou em Março, na cidade de Deraa, com protestos pacíficos exigindo reformas políticas, sociais e económicas. Só quando o presidente, Bashar al-Assad, ordenou às forças de segurança que disparassem sobre manifestantes indefesos é que a principal reivindicação passou a ser a queda do regime. A oposição, financiada e armada por vários países, cada um com a sua agenda, militarizou-se para resistir. O Irão e a Síria intervieram na subsequente guerra civil para salvar Assad. O resultado foi o maior drama humano do século XXI, com meio milhão de mortos, 1,9 milhões de feridos, 4,8 milhões de refugiados e 6,6 milhões de deslocados internos.

2011-2019: Crianças sírias numa manifestação contra o regime de Bashar al-Assad, na cidade de Homs, em Dezembro de 2011, o ano em que protestos pacíficos começaram a ser violentamente reprimidos pelas forças do ditador
© Associated Press | britannica.com

2012

ARGENTINA

Em Setembro e Novembro, milhares de argentinos revoltaram-se contra a insegurança, a corrupção e a reeleição para um terceiro mandato da presidente, Cristina Fernández de Kirchner. Uma multidão erguendo um cartaz com a inscrição “Chega de matar” ocupou o Obelisco, monumento tradicional em Buenos Aires, aludindo à crescente violência criminal no país. O protesto chegou também à Praça de Maio, diante da Casa Rosada, a sede do governo. em 2017 e 2019, com Maurício Macri na chefia do Estado e CFK como vice-presidente, os argentinos voltaram às ruas, em protesto contra um projecto-lei para reformar o regime de pensões de reforma, e para exigir aumento de salários e ajudas alimentares aos mais afectados pela grave crise económica que abala o país.

2012-2019: Junto ao Congresso argentino, em Buenos Aires, um manifestante dá um pontapé numa granada de gás lacrimogéneo lançada pela polícia anti-motim durante protestos contra um projecto-lei visando mudar o regime de pensões de reforma, em 2017
© Eitan Abramovich | AFP | france24.com

2013

TURQUIA

Em 28 de Maio, os turcos encheram as ruas de Istambul, inicialmente para travar um plano urbanístico que iria destruir os espaços verdes do Parque Gezi, na Praça de Taksin, e depois para condenar a violenta expulsão de um grupo de jovens que ali se concentrara. Cerca de três milhões e meio de pessoas terão participado em quase 5000 manifestações por todo o país. Na acção policial para esvaziar a praça, 22 foram mortas, 8000 feridas e 3000 detidas. O então primeiro-ministro (hoje presidente), Recep Tayyip Erdogan, adiou o controverso projecto, mas não perdoou os organizadores. Dezasseis deles começaram a ser julgados em 2019 e enfrentam penas de prisão perpétua, sob a acusação de “tentativa para derrubar o governo”.

 

2013-2019: Um polícia turco pulveriza com gás lacrimogéneo uma manifestante, identificada como Ceyda Sungur, no Parque Gezi, em Istambul, durante protestos, em 2013, contra planos urbanísticos do governo que destruiriam este “pulmão” da cidade. O agente nesta imagem, que se tornou símbolo da luta, foi condenado a uma pena suspensa de 20 meses de prisão e obrigado a plantar 600 árvores. Mas o governo de Erdogan não perdoou a ousadia dos que desafiaram os seus planos e perseguiu judicialmente os principais activistas
© Reuters | The Independent

UCRÂNIA

Em Novembro, os ucranianos iniciam uma revolução quando o presidente pró-russo Viktor Ianukovitch desistiu de um acordo de associação com a União Europeia, poucos dias da prevista assinatura. Este acordo iria permitir uma maior integração política e económica entre esta antiga república da URSS e a UE, mas Ianukovitch cedeu às pressões de Moscovo, com isso gerando um grande movimento de protesto  em Kiev, a capital. A polícia dispersou brutalmente os manifestantes concentrados em Maidan Nezalezhnosti  (Praça da Independência). Em Janeiro de 2014, perante um crescendo de violência nas ruas, Iakunovitch assinou uma série de leis restringindo o direito ao protesto, enfurecendo ainda mais centenas de milhares de ucranianos. Manifestantes ocuparam vários edifícios governamentais e só os evacuaram quando o parlamento revogou as leis anti-protesto e ofereceu amnistia às centenas de activistas que haviam sido detidos durante intensos confrontos com as forças de segurança. Em 18 de Fevereiro, quando a polícia tentou desocupar Maidan, cerca de 25 mil manifestantes cercaram o seu acampamento na praça com fogueiras. Outras dezenas de pessoas foram mortas e/ou feridas numa série de batalhas. O que foi descrito como “a mais sangrenta semana na história pós-soviética da Ucrânia” terminou no dia 21 de Fevereiro, graças à mediação da UE, que convenceu governo e oposição a aceitar uma redução dos poderes presidenciais (restaurando a Constituição de 2004), a convocação de eleições antecipadas e a formação de um governo interino. Yanukovitch fugiu do país antes de ser impugnado pelo Parlamento.

2013-2014: Um homem ajoelha-se perante um sacerdote ortodoxo numa zona que separa antes da polícia e manifestantes anti-governamentais, perto do Estádio do Dínamo de Kiev, na capital ucraniana, em 25 de Janeiro de 2014
© Rob Stothard | Getty Images | The Washington Post

2014

NICARÁGUA

Em Dezembro, dezenas de milhares de nicaraguenses saíram à rua, barricando estradas e confrontando as forças de segurança, quando o presidente, Daniel Ortega, e uma empresa chinesa lançaram a primeira pedra de um canal inter-oceânico, cujo projecto de construção expropriou terras de mais de cem mil camponeses. Quatro anos depois, em 16 de Abril de 2018, os nicaraguenses voltaram à rua, desta vez para condenar a insuficiente resposta do governo a incêndios florestais que queimaram milhares de hectares de uma reserva agrícola índia. No dia 18, o povo revoltou-se novamente, contra um plano (entretanto abandonado) de reforma da segurança social, que previa subida de impostos e redução de subsídios. Em Setembro de 2019, a oposição retomou as manifestações, apesar de proibidas, agora exigindo liberdade para os mais de 120 presos políticos, o fim dos assassínios de líderes camponeses, a demissão do antigo combatente da Frente Sandinista de Libertação Nacional que agora aspira ao poder vitalício e a convocação de eleições antecipadas, como recomendam os mediadores da Igreja Católica.

2014-2019: Estudantes universitários nicaraguenses numa marcha de protesto contra o presidente, Daniel Ortega, em Manágua, 30 de Maio de 2018
© Esteban Felix | AP

2015

MOLDOVA

Em Setembro, no o maior protesto desde que a Moldova se declarou independente da URSS em 1991, cerca de cem mil pessoas saíram à rua em luta contra a corrupção, depois de mil milhões de dólares terem sido desviados de três bancos nacionais. Esta “Revolução do Twitter”, convocada um movimento de cidadãos, Dignidade e Verdade, foi precedida de uma revolta em 2009, contra o então Executivo comunista, e a ela se seguiram outros protestos, em 2016 e 2017, 2018 e 2019, que fizeram cair vários governos.

2015-2019: Mulheres moldovas entoam slogans contra o governo durante um protesto que juntou cerca de 15 mil pessoas, em Chisnau, a capital do país, em 2016 – uma das muitas manifestações que se repetem, quase anualmente, nesta antiga república da União Soviética
© Vadim Ghirda | AP | irishtimes.com

2016

MARROCOS

Entre Outubro de 2016 e Junho de 2017, a região do Rif, pobre e berbere, no Norte de Marrocos, sublevou-se contra o poder central quando um pescador, Mohcine Fikri, morreu esmagado por um camião do lixo ao tentar recuperar 500kg de espadarte que a polícia lhe havia confiscado. Os protestos do Hirak (Movimento) Rif imediatamente alastraram a outros pontos do reino. As autoridades detiveram 42 activistas. Em 2019, estes viram confirmadas penas até 20 anos de prisão, por “conspiração contra a segurança do Estado”. Já em 2011 e 2012, protestos pelas “primaveras árabes” na Tunísia e no Egipto haviam sido reprimidas pelo regime de Mohammed VI.

2016-2019: Manifestantes em Rabat, a capital de Marrocos, erguem a bandeira Amazigh e fotografias de Nasser Zafzafi, um dos líderes do Hirak (Movimento) al-Rif, durante protestos contra as medidas repressivas do governo do rei Mohammed VI contra os ativistas berberes
© Abdelhak Senna | EPA | Arab Reform Initiative

2017

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Em 21 de Janeiro, propositadamente no dia da investidura de Donald Trump e para repudiar posturas misóginas do novo presidente, uma Marcha das Mulheres tornou-se no maior protesto realizado num só dia na história dos EUA. Quase 5 milhões de pessoas participaram nesta marcha – cerca de um 1,6% da população americana –, para exigir que os direitos das mulheres sejam respeitados como direitos humanos. Foram contabilizadas mais de 400 manifestações a nível nacional e 168 em 81 outros países.

2016-2017: Clair Sheehan escreveu na testa “Não é o meu presidente” e exibe a frase num protesto contra a eleição de Donald Trump realizado no dia 9 de Novembro de 2016, em Seattle. No ano seguinte, o mesmo slogan seria ostentado por outros manifestantes na Womens’ March
© AP | politico.com

2018

FRANÇA

Em 17 de Novembro, revoltados com a decisão do governo de Emmanuel Macron de aumentar o imposto sobre os veículos a diesel e reagindo a uma petição online que atraiu quase um milhão de assinaturas, dezenas de milhares de franceses, sobretudo da classe média e dos subúrbios, foram para as ruas bloquear rotundas e cruzamentos. Os seus coletes amarelos deram nome a um possante movimento contestatário que inspirou outros semelhantes em vários países. As autoridades aboliram, entretanto, as taxas que geraram o protesto inicial, mas as reivindicações já são agora mais de 40, designadamente, a reintrodução de um imposto de solidariedade sobre a riqueza e o aumento do salário mínimo. A repressão policial terá contribuído para que o movimento fosse infiltrado por grupos violentos de extrema-direita, envenenando o que muitos consideravam uma luta justa.

2018-2019: Um manifestante do movimento Coletes Amarelos (Gilets Jaunes), numa manifestação de protesto contras as políticas sociais e económicas do presidente francês, Emmanuel Macron, em 29 de Dezembro de 2018
© Mehdi Fedouach ‹ AFP | albawa.com

HAITI

Em Julho e em Dezembro, centenas de milhares de haitianos saíram à rua em várias cidades, inicialmente para contestar o aumento dos preços dos combustíveis e depois para exigir a demissão do presidente, Jovenel Moïse, suspeito de corrupção. Os protestos deixaram “à beira do colapso total” um país onde 60% dos 11 milhões de habitantes sobrevive com menos de 2 dólares por dia e 25% com menos de um, “à beira do colapso total”, onde 3,7 milhões (um em cada três) precisam de ajuda alimentar urgente e um milhão passa fome.

2018-2018: Uma mulher grita palavras de ordem contra o presidente, Jovenel Moïse, durante um protesto, em Junho de 2019, em Port-au-Prince, capital do Haiti, depois de uma auditoria ao seu governo ter encontrado mais provas de corrupção em larga escala
© Dieu Nalio Chery | AP | NPR

REINO UNIDO

Em Outubro, nasceu em Londres e espalhou-se pelo mundo o movimento ecologista  Extinction Rebellion (XR, na sua abreviatura), empenhado numa campanha de desobediência civil pela protecção de todas as espécies do planeta. Alertando para a urgência de travar uma “catástrofe climática que ameaça a [nossa] sobrevivência”, os activistas do XR recorrem a diversos meios para fazer passar a sua mensagem, desde bloquear pontes a interromper com drones os voos no aeroporto de Heathrow. Vários activistas têm sido detidos.

2018-2019: Manifestantes bloqueiam a entrada do edifício da BBC em Londres durante um protesto do movimento Extinction Rebellion (XR), em defesa do clima; atrás deles, agentes da polícia habitualmente mobilizados para os dispersar e/ou deter
© PA | gloucestershirelive.co.uk

SUÉCIA

Em Agosto, uma estudante de 16 anos, Greta Thunberg, começou a faltar às aulas um dia por semana, acampando à porta do Parlamento em Estocolmo, exigindo das autoridades suecas uma acção firme contra o aquecimento global. A sua “Greve pelo Clima” ou “Sextas pelo Futuro” inspirou outras comunidades e países, transformando-se num dos poderosos movimentos globais. Por todo o mundo, apesar de enfrentar críticas e insultos, a adolescente que já recebeu vários prémios e foi nomeada para o Nobel da Paz atrai outros jovens para as suas iniciativas. Uma das mais recentes, em Dezembro de 2019, foi uma “Marcha Pelo Clima”, que serviu de contrapeso a uma cimeira da ONU (COP25) e mobilizou meio milhão de pessoas.

2018-2019: A activista sueca Greta Thunberg exibe o seu famoso cartaz Skolstrejk för klimatet (greve escolar pelo clima) numa marcha em Montreal (Canadá), em 27 de Setembro de 2019
© Josie Desmarais | nationalobserver.com

2019

ARGÉLIA

Em 16 de Fevereiro, transbordando a fúria reprimida em 2010-2012, milhões de argelinos iniciaram uma pacífica “Revolução dos Sorrisos”, que forçou a demissão do presidente, Abdelaziz Bouteflika, quando este se preparava para um quinto mandato. Os poderosos militares deixaram-no cair para salvar o regime: os cinco candidatos às eleições presidenciais de 12 de Dezembro apoiaram ou participaram nos executivos de Bouteflika. Inconformados, os argelinos continuam o seu “Hirak” (movimento de protesto), apesar de “centenas de detenções”, segundo grupos de direitos humanos. 

2011-2019: Jovens em protesto, em Argel, contra a candidatura de Abdelaziz Bouteflika a um quinto mandato presidencial – uma revolução pacífica que, em 2019, pôs fim a uma autocracia
© Bilal Bensalem | Nur Photo | Getty Images | vox.com

BOLÍVIA

O primeiro presidente indígena da Bolívia, no poder desde 2006, Evo Morales foi forçado demitir-se, em Novembro, após três semanas de protestos gerados por controversas eleições em que procurou obter um quarto mandato, proibido pela Constituição. Morales pediu asilo no México e aqui denunciou um golpe militar. O poder foi entregue interinamente à vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, da oposição. Depois de uma postura inicialmente agressiva, a ultraconservadora Áñez aceitou, entretanto, negociar com deputados do anterior governo a marcação de novas eleições. Também chegou a acordo com movimentos sociais que lhe são hostis, o que permitiu o levantamento de mais de 90 bloqueios de estrada, a retirada do exército de localidades não estratégicas e a revogação de uma lei polémica que concedia aos militares impunidade por acções violentas contra os manifestantes.

2019: Apoiantes de Evo Morales protestam, nas ruas da cidade de Cochabamba, contra a demissão do primeiro presidente indígena da Bolívia, que denunciou um golpe militar depois de eleições que lhe dariam um quarto mandato
© Ronaldo Schemidt | AFP | Folha de São Paulo

BRASIL

Em Agosto, quando incontroláveis fogos consumiam a Amazónia, milhares de pessoas encheram as ruas de cidades do Brasil – e de outras na América, Europa e Ásia  –, exigindo a preservação de uma floresta valiosa para toda a humanidade. Um dos alvos dos protestos foi o presidente, Jair Bolsonaro, apoiado por um influente lóbi agropecuário, responsável por muitas das queimadas e desmatação.

2017-2019: Marcelino Apurina, chefe tribal da aldeia Novo Paraíso, no ocidente da Amazónia, discursa contra as políticas do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, consideradas uma ameaça à vida dos povos indígenas
© AFP | theglobepost.com

CATALUNHA

Em 14 de Outubro, após a condenação dos principais líderes independentistas a penas entre 9 e 13 anos de prisão, manifestações em massa regressaram a Barcelona e a outras cidades catalãs. Tudo começou em 10 de Julho de 2010 quando 1,5 milhões de pessoas se manifestaram no centro de Barcelona contra a decisão do Supremo Tribunal de Espanha de anular ou reinterpretar vários artigos do Estatuto de Autonomia da Catalunha aprovado em 2006. Sob o lema Nosaltres decidim (“Nós decidimos”), foi uma mobilização até então sem precedentes, que se repetiria nos anos subsequentes. Em  27 de Outubro de 2017, no que o Governo de Madrid considerou ser uma violação da Constituição espanhola, o parlamento catalão realizou um referendo sobre a independência. O “sim” venceu e os organizadores do voto popular foram detidos ou forçados ao exílio.

2010-2019: Milhares de catalães encheram as ruas de Barcelona, em Março de 2019, depois de o Supremo Tribunal de Espanha ter decretado a detenção de cinco líderes independentistas e emitido mandados internacionais de captura contra outros seis políticos, entre eles o primeiro-ministro regional, Carles Puigdemont
© Marta Perez | EPA | The National

CHILE

As manifestações no Chile começaram em Novembro, quando o governo decretou um aumento de 3,75% (depois revogado) do preço dos bilhetes do Metro de Santiago. Os protestos, liderados por jovens, foram duramente reprimidos pela polícia, o que aumentou a indignação popular. A revolta é agora mais abrangente, contra a desigualdade social e as graves deficiências no sector público, criadas por políticas neoliberais (a privatização dos serviços de educação, saúde e pensões, água e electricidade) impostas desde a queda do ditador Augusto Pinochet, em 1990. Num dos países mais prósperos da América do Sul, o rendimento per capita deveria dar aos chilenos um salário mensal de 2000 dólares, mas a maioria aufere 550 ou menos. Os ricos ganham 14 vezes mais do que pobres. Nas ruas, exige-se a demissão do presidente, Sebastián Piñera.

2019: Por entre uma barricada de fogo, em Santiago do Chile, um manifestante ergue a bandeira nacional, durante protestos contra as políticas do presidente, Sebastián Piñera, apesar de ele ter afastado oito ministros e ter garantido à população que ouviu as suas reivindicações de maior igualdade e serviços sociais
© Matias Delacroix | AP

COLÔMBIA

Em Novembro, nos maiores protestos dos últimos 40 anos na Colômbia, centenas de milhares de pessoas desfilaram pelas ruas de várias cidades contra o Governo direitista de Iván Duque Márquez, exigindo a aplicação integral do acordo de paz com os rebeldes das FARC, combate à corrupção e o fim do assassínio de activistas de direitos humanos e líderes indígenas (pelo menos 155 foram mortos desde que Duque foi eleito em Agosto de 2018). A luta engloba outras reivindicações. Três greves gerais em duas semanas foram convocadas por movimentos sindicais contra planos para eliminar o fundo estatal de pensões, aumentar a idade da reforma e reduzir o salário dos jovens. Em pânico, as autoridades fecharam, temporariamente, fronteiras e colocaram o exército em alerta máximo.

2018-2019: Um manifestante colombiano é detido em Bogotá durante protestos contra o governo direitista de Iván Duque Márquez
© Luisa Gonzalez | Reuters | The Wall Street Journal

EQUADOR

Depois de quase duas semanas de protestos que paralisaram a economia do Equador e causaram sete mortos, o presidente, Lenín Moreno, aceitou revogar o “Decreto 883” que eliminava subvenções estatais aos combustíveis e punha em risco a subsistência das populações indígenas. No âmbito de um acordo bilateral, Moreno abandonou um plano do FMI que exigia o aumento dos preços do gasóleo e gasolina em troca de um empréstimo equivalente a 3,8 mil milhões de euros. Os líderes indígenas, por seu turno, cessaram as manifestações e bloqueios de estrada, que fecharam várias empresas, reduziram a metade a produção de petróleo e interromperam a exportação deste que é o principal recurso do país.

2019: Líderes indígenas equatorianos num protesto, em Outubro de 2019, contra políticas de austeridade que o presidente, Lenin Moreno, foi obrigado a abandonar
© Carlos Garcia Rawlins | Reuters

HONG KONG

Foi em Junho que começaram os protestos em Hong Kong, inicialmente apenas contra um projecto de lei para extraditar suspeitos para a China continental que ameaçava um sistema judicial independente. O controverso projecto foi abandonado em Setembro, mas os manifestantes passaram, entretanto, a exigir o que Pequim dificilmente lhes dará: democracia. Os protestos atraem milhares de cidadãos, apesar de violentos confrontos com as forças de segurança, e ganharam um novo estímulo depois de, em Dezembro, eleições locais terem dado uma enorme vitória aos opositores do regime chinês.

2019: O governo de Hong Kong proibiu que as pessoas ocultassem o rosto durante protestos contra medidas impostas por Pequim – a resposta dos manifestantes, em Outubro de 2019, foi usar máscaras de Halloween, em mais um desafio às autoridades
© Kin Cheung | AP

ÍNDIA

Uma nova lei de cidadania (Citizenship Amendment Act/CAA), aprovada em 12 de Dezembro, e propostas para criar um Registo Nacional de Cidadãos (National Register of Citizens/NRC) desencadearam gigantescos protestos, violentamente reprimidos pelas autoridades indianas. As manifestações começaram em Assam, Nova Deli, Meghalaya, Arunachal Pradesh e Tripura, no dia 4 do último mês de 2019, e rapidamente se propagaram por todo o país. A nova legislação beneficia os refugiados hindus, sikhs, jain, budistas, cristãos e persas vindos do Afeganistão, Paquistão e Bangladesh e residentes na Índia desde 2015, mas exclui os muçulmanos, os tâmil do Sri Lanka, os rohingya da Birmânia/Myanmar e os budistas do Tibete. Os manifestantes consideram as novas leis discriminatórias e inconstitucionais. Uma das maiores preocupações é a de que os nacionalistas hindus, liderados pelo primeiro-ministro, Narendra Modi, que já retiraram autonomia a Jammu e Caxemira – o único estado indiano onde a maioria da população professa o Islão – se estejam a preparar para fazer dos muçulmanos apátridas e os colocar em campos de detenção.

2019: Uma das muitas manifestações na Índia contra a nova lei de cidadania, que discrimina os muçulmanos, e fará parte de um alegado plano do primeiro-ministro, Narendra Modi, de transformar o país numa “nação supremacista hindu”
© Arupam Nath | Euronews

IRAQUE

No dia 1 de Outubro, milhares de iraquianos no centro e sul do país rebelaram-se contra o sistema sectário, corrupto e inepto que os governa desde que uma invasão americana derrubou o ditador Saddam Hussein em 2003. Exigem também o fim da influência iraniana, que controla várias milícias. Em 29 de Novembro, face à bravura dos manifestantes, que não abandonaram as ruas apesar de massacres cometidos pelas forças de segurança, demitiu-se o primeiro-ministro, Adil Abdul-Mahdi. Em Dezembro de 2019, um balanço da comissão independente de direitos humanos apontava para quase 500 mortos e cerca de 20 mil feridos. Em 2011, uma “primavera iraquiana” havia fracassado devido à acção repressiva do autoritário chefe de governo Nouri al-Maliki.

2011-2019: Manifestante ergue uma bandeira iraquiana em Najaf, durante manifestações contra o governo e a influência das milícias pró-iranianas, em 26 de Novembro 2019
© Alaa al-Marjani | Reuters

LÍBANO

Em 17 de Outubro, dezenas de milhares de libaneses, de todas as (17) confissões religiosas, iniciaram uma série de manifestações, indignados com um plano do governo para impor uma taxa de 6 dólares às telecomunicações (já as mais caras da região) via WhatsApp. Os protestos, que uniram cristãos, sunitas, xiitas e drusos contra toda uma classe política corrupta e sectária, foram os maiores de sempre no “País do Cedro” desde que, em 2005, um movimento cívico forçou a retirada de cerca de 40 mil soldados sírios, após o assassínio (ordenado por Damasco) de um popular primeiro-ministro, Rafic Hariri.

2019: Manifestantes tiram uma selfie em frente de pneus a arder que bloqueiam a principal estrada que liga Beirute ao Sul do Líbano, durante protestos contra a crise económica e a corrupção da elite política
© Ali Hashisho | Reuters

SUDÃO

2018-2019: De pé, envergando uma tradicional túnica branca, a estudante sudanesa Alaa Salah lidera os protestos populares em Cartum, a capital, que contribuíram para a queda do ditador Omar al-Bashir,Abril de 2019
© AFP | Getty Images

Protestos pacíficos contra o aumento do preço do pão, em Dezembro de 2018, abriram caminho a um movimento da sociedade civil, que haveria de pôr fim a três décadas de tirania de Omar al-Bashir, em Abril de 2019. Tal como na Argélia, os militares deixaram cair o presidente para manter o regime, mas a perseverança dos manifestantes, que não arredaram pé das ruas apesar de quase 250 mortos e mais de 1300 feridos, obrigou o exército a ceder o poder a um civil, Abdalla Hamdok, primeiro-ministro investido em 21 de Agosto para exercer funções durante um período transitório.

© Reuters

Estes artigos foram publicados originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Janeiro de 2020 | These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, January 2020 edition.

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