Caxemira: Um inferno no paraíso

O Governo nacionalista hindu de Narendra Modi retirou a autonomia e os privilégios ao único estado de maioria muçulmana da Índia, supostamente para o desenvolver e combater o terrorismo. Os habitantes do território “mais militarizado do mundo” receiam que esteja em marcha um “projecto colonial” para os espoliar da sua identidade única. (Ler mais | Read more...)

Na Caxemira administrada por Nova Deli, as forças de segurança indianas são acusadas de cometer graves abusos de direitos humanos
© Rakesh Bakshi | AFP | Getty Images | axios.com

Hafsa Kanjwal nasceu e viveu na Caxemira até aos 6 anos. No auge de uma rebelião separatista e subsequente repressão em 1989, a família procurou refúgio nos Estados Unidos. Mas continua a visitar o que ela descreve como “um lugar extraordinariamente belo que, num minuto, nos corta a respiração e, no minuto seguinte, nos corta o coração”.

“Este é um lugar muito difícil, porque aqui vemos o melhor e o pior da humanidade”, diz-me, por telefone, a jovem que é agora professora de História da Caxemira e da Ásia do Sul em Lafayette College, Easton (Pensilvânia). O melhor “é um povo e uma cultura maravilhosos”. O pior é a presença de “quase um milhão” de soldados indianos e os seus repetidos abusos de direitos humanos no que se tornou o território “mais militarizado do mundo”.

A situação agravou-se no início de Agosto, quando o governo federal do primeiro-ministro Narendra Modi decidiu revogar dois artigos da Constituição que conferiam um estatuto especial a Jammu e Caxemira. O Artigo 370 dava a J&C vários poderes, como o de legislar em todas as áreas excepto as da Defesa, Negócios Estrangeiros e Comunicações. O Artigo 35A reconhecia o direito de os caxemiris continuarem a definir, como fazem desde 1927, quem são os “residentes permanentes”, os únicos com direito a adquirir bem patrimoniais e outros privilégios.

O estado de J&C é composto pela Caxemira, incluindo o Vale da Caxemira, com 8 milhões de habitantes, predominantemente muçulmanos; Jammu, com 6 milhões, a maioria hindus; e Ladaque, a região mais alta e inacessível, com 300 mil, metade muçulmanos e metade budistas.

A partir de agora, Ladaque separa-se de J&C e junta-se aos sete “territórios” da República – a categoria de Damão & Diu e Dagra & Nagar Haveli, que os portugueses ocuparam durante 450 anos. E Jammu e Caxemira deixa de ser um dos 29 estados (como hoje é Goa-Panaji/Pongim), para ser também um território, sob a alçada directa do governo central.

Em Srinagar, a maior cidade e a capital de verão de Jammu e Caxemira, um hotel (na foto) foi transformado em centro de detenção
© Adnan Abidi | Reuters

“Foi uma decisão histórica”, exultaram os nacionalistas hindus do Bharatiya Janata Party (BJP), o partido de Modi, assumidamente hostis ao multiculturalismo e federalismo. “Foi uma afronta aos princípios democráticos de uma nação secular”, criticou uma parte da oposição, sobretudo o Congresso Nacional Indiano, outrora a principal força política, o Dravida Munnetra Kazhagam, com base em Tamil Nadu, e o Partido Democrático Popular, da Caxemira.

Modi não se limitou a revogar os artigos que, na sua opinião, “impedem a unidade política e económica da Índia”. Colocou sob detenção domiciliária os principais dirigentes políticos da Caxemira, Mehbooba Mufti, Farooq Abdullah e Omar Abdullah, enviou mais 38 mil homens da Central Reserve Police Force (unidade paramilitar) para reprimir actos de desobediência e protesto, proibiu todas as reuniões públicas, cortou as ligações telefónicas (móveis e fixas), as transmissões de rádio, televisão e Internet, impondo um isolamento total.

Em Srinagar, a capital de Verão de J&C, correspondentes do diário The New York Times viram hospitais sem profissionais de saúde, escolas e mesquitas fechadas, lojas sem alimentos e farmácias sem medicamentos, parques e ruas desérticos. Só alguns jornais continuam a ser impressos, “distribuídos cuidadosamente de mão em mão”.

“Vivemos num inferno”, queixou-se uma médica, só identificada como Jamila. “Ninguém consegue dormir; não confiamos em ninguém”, lastimou-se Ahmad, que recusou dar o apelido.

Crianças rezam no exterior de uma mesquita erguida em memória de um santo sufi, Sheikh Syed Abdul Qadir Jeelani, em Srinagar, na Caxemira controlada pela Índia
© Mukhtar Khan | AP | insidearabia.com

“Há uma depressão colectiva na Caxemira”, constata Hafsa Kanjwal, co-fundadora de um grupo da sociedade civil e da diáspora, Stand With Kashmir (SWK). “Há muitos traumas psicológicos, mas, como a Caxemira é um centro espiritual, acho que as pessoas se agarram à sua fé e à esperança de que haverá justiça internacional. Talvez seja isso o que não as faz desistir e o que mais está presente nas suas orações.”

A autonomia da Caxemira “era meramente simbólica”, refere a professora Kanjwal. “Há muito tempo e de muitas formas que o Artigo 370 vinha sendo desrespeitado. O maior problema agora é a anulação do Artigo 35A. Isso significa que quem não seja residente permanente poderá, doravante, comprar terras e casas. Há receios  legítimos de uma mudança geográfica semelhante à que se verificou nos territórios ocupados da Palestina.”

“Teme-se que a Índia vá repovoar a Caxemira com hindus [os Pandits, muitos dos quais foram expulsos em 1960 e em 1990], desalojando a população local. A Caxemira é um espaço único [na Índia]. Uma vez removida a sua identidade muçulmana, desaparecerá o facto de ser um estado disputado que aguarda resolução. Tudo isto gera medos.”

Uma patrulha paramilitar indiana verifica um saco transportado por um residente de Srinagar, na Caxemira, durante o recolher obrigatório, em 8 de Agosto de 2019
© AP | asia.nikkei.com

Nas suas novas fronteiras, amputado de Ladaque, Jammu e Caxemira deixará de ter uma maioria de eleitores muçulmanos, não apenas porque Jammu é predominantemente hindu, mas também porque o direito de voto irá ser retirado aos muçulmanos que entraram no país após a divisão do subcontinente indiano em 1947, esclarece o cientista político francês Christophe Jaffrelot, entrevistado pelo site OrientXXI.

Neste contexto, observa o autor de L’Inde de Modi: National-populisme et démocratie ethnique, não é apenas um futuro com colonos pandits que cria ansiedade, mas também a chegada de indianos de outros estados.

Os caxemiris receiam, por exemplo, “a compra de terras por parte de promotores imobiliários que poderão construir segundas habitações ou até mesmo complexos turísticos no que até agora tem sido classificado como um ‘paraíso na Terra’, graças à sua beleza e ao seu clima impoluto.”

O que está a acontecer na Caxemira é semelhante ao que se passa na Birmânia, com os Rohingya, ou em Xinjiang/China, com os uigures, adverte Jaffrelot na entrevista intitulada Un incendiaire dans la poudrière du Cachemire indien (“Um incendiário no barril de pólvora da Caxemira indiana”).

“Por força da propaganda, a difusão de estereótipos e da desinformação nas redes sociais, os muçulmanos enfrentam um processo de desumanização. Os genocídios do passado, da Shoah ou do Ruanda, mostram-nos que a violência em massa contra as minorias é sempre precedida desta fase de desumanização que torna os crimes banais ou até legítimos.”

Poucos residentes se atrevem a sair de Anchar, um bairro da Caxemira cercado por barricadas de aço e arame farpado, para impedir que soldados indianos raptem rapazes na calada da noite
© Reuters | media.pri.org

“Os caxemiris resistem há 72 anos”, realça Hafsa Kanjwal. “Habituaram-se a armazenar comida para longos períodos de tempo, porque sabem que há sempre recolher obrigatório e outras situações complicadas. Aprenderam a ajudar-se uns aos outros, a cuidar uns dos outros, porque não têm assistência do Governo central.”

Com a Caxemira fechada ao mundo, o bairro de Anchar, em Srinagar, tornou-se no principal centro da luta pela sobrevivência.

“Aqui, as pessoas ergueram barreiras e barricadas com arame farpado, para garantir que o exército e os paramilitares indianos não entrarão nas suas casas – para as pilhar, raptar e torturar rapazes ou violar as mulheres”, destaca a académica na Pensilvânia. “Os jovens mantêm-se vigilantes durante toda a noite. Fazem muito barulho, para garantir que todos estarão acordados.”

Por que é que Modi decidiu agora privar a Caxemira da sua autonomia? Explica Christophe Jaffrelot: “O objectivo será facilitar investimentos provenientes de outras regiões da Índia. É verdade que os índices de desenvolvimento humano em J&C estão muito abaixo da média indiana, mas também é real que foi a autonomia que permitiu levar a cabo uma reforma agrária muito mais importante do que no resto da Índia, oferecendo maior igualdade.”

“J&C também obteve melhores resultados do que Gujarat [o estado que Modi governou entre 2001 e 2014 e onde encorajou um massacre de muçulmanos em 2002]: maior esperança de vida, descida da mortalidade infantil, mais educação das raparigas, menos pobreza.”

Orações durante a festa islâmica de Eid al-Adha. Jammu e Caxemira é o único estado de maioria muçulmana da União Indiana, e revogar o seu estatuto de autonomia sempre foi, alegadamente, uma ambição dos nacionalistas hindus
© Atul Loke | The New York Times

Tara Kartha, investigadora no Institute of Peace and Conflict Research, em Nova Deli, e no U.S. Institute of Peace (USIP), em Washington, confirma que Modi “pretende encorajar o investimento num estado atrasado e fomentar um governo local eficiente”. Mas aponta outra razão: “O avanço das negociações dos EUA com os talibã e a possibilidade de uma retirada das tropas americanas do Afeganistão.”

“A Índia receia que a história se venha a repetir”, anotou, num artigo publicado pelo USIP, a mulher que durante 17 anos trabalhou para o Conselho de Segurança Nacional da Índia. “Há 30 anos, quando outra superpotência, a URSS, deixou o Afeganistão, seguiu-se imediatamente um terrorismo intenso na Caxemira, à medida que os que combatiam os soviéticos regressavam à Índia.”

Imran Khan, primeiro-ministro do Paquistão, protestou veementemente contra “a última cartada de Modi” e alertou a ONU para “o potencial risco de uma guerra nuclear” na região.

Tara Kartha criticou-o: “Há anos que [Islamabad] vem mudando, unilateralmente, o estatuto dos territórios que ocupa na Grande Caxemira. Ainda o ano passado, alterou  a estrutura do governo de Azad Kashmir [Caxemira Livre]. É certo que a Índia também contestou estas medidas, mas não recorreu a ameaças.”

Soldados indianos obrigam uma residente da Caxemira a mostrar as suas receitas médicas, antes de autorizarem a sua entrada num hospital, em Srinagar, durante o recolher obrigatório, em Agosto de 2019
© Yawar Nazir | Getty Images | jacobinmag.com

Os indianos acusam os paquistaneses de treinar, armar e financiar grupos separatistas e jihadistas na Caxemira. E o combate ao terrorismo, sobretudo após um atentado com que, em 14 de Fevereiro, matou 40 paramilitares em Pulwama, distrito de J&C, foi uma das promessas de campanha de Modi que lhe deu uma estrondosa vitória nas eleições gerais de Maio.

O atacante pertencia ao Jaish-e-Mohammed, grupo islamista com base em Balkot, nordeste do Paquistão, a qual seria posteriormente bombardeada por 12 caças indianos – um deles abatido pela força aérea paquistanesa –, deixando os dois países rivais à beira de uma quinta guerra.

O que levou Adil Ahmad, de 22 anos, o bombista suicida de Pulwama, a aderir ao Jaish-e-Mohammed? “Segundo a família, radicalizou-se depois de ter sido preso e torturado pela polícia”, refere Christophe Jaffrelot.

“É preciso frisar que, além da polícia, o exército indiano tem muito má reputação na Caxemira, sobretudo porque uma lei antiga (Armed Forces Special Powers) garante uma quase impunidade aos seus inúmeros abusos de poder.”

Há um permanente sentimento de frustração, acrescenta Hafsa Kanjwal. “O Governo indiano nunca permitiu a emergência de uma liderança legítima na Caxemira. Os líderes que representam os anseios da população são constantemente sujeitos a prisões arbitrárias e não podem orientar as pessoas. Os únicos dirigentes que a Índia autoriza são os seus fantoches. Ironicamente, até esses estão agora detidos.”

Nesta fotografia de 9 de Agosto de 2019, residentes da Caxemira aproveitam um breve interregno no recolher obrigatório – que os encerra nas suas casas durante 24 horas e por tempo indefinido -, para poderem celebrar um feriado islâmico
© Mukhtar Khan | AP | i.dawn.com

O antropólogo e historiador Partha Chatterjee, professor no Centro de Estudos e Ciências Sociais, em Calcutá, e na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, nota que o seu país, admirado como “a maior democracia do mundo”, transformou-se profundamente no último meio século. “Há 50 anos, o nacionalismo indiano era principalmente anti-colonial”, escreveu ele no site thewire.in.

“[A Índia] via-se como uma força contra a exploração colonial e a discriminação racial, cometidas por poderes imperiais ocidentais, e solidária com as lutas pela libertação em África e no Sueste da Ásia. Agora, prefere ver-se como uma das grandes potências globais. E, como todas as grandes potências, tem o seu próprio problema colonial – a Caxemira.”

“Talvez o iminente acordo entre os EUA e os talibã – e a vantagem estratégica que dará ao Paquistão – tenha sido um factor para Modi desmembrar Jammu e Caxemira”, avaliou Chatterjee. “E talvez haja planos para mudar a demografia e o carácter político do estado. Mas as consequências serão catastróficas para o povo indiano. Porque esta lógica colonial não irá circunscrever-se à Caxemira.”

“Todas as identidades minoritárias que se atravessarem no caminho de uma nação homogénea – língua, religião, casta, género – também serão atacadas. Só a mais alta casta, masculina, hindu e que fala hindi terá o privilégio soberano de não ter de provar que é genuinamente indiana.”

Um jovem aldeão olha para o que resta de uma casa destruída durante uma mortífera entre militantes caxemiris e soldados indianos na região de Tral, distrito de Pulwama, a sul de Srinagar, em 5 de Março de 2019
© Tauseef Mustafa | AFP | Getty Images | dawn.com

Hafsa Kanjwal reconhece dificuldade em promover a “narrativa caxemiri”. Porque, para o mundo que fez de Modi um pária após o pogrom de Gujarat e agora o premeia pelo seu neoliberalismo económico e por ser um contrapeso à China, “a Caxemira é apenas um conflito entre os nacionalismos da Índia e do Paquistão – poucos se interessam pelas pessoas que lá vivem, suas histórias e aspirações.”

“Tem sido duro, porque a Índia insiste em usar a linguagem da ‘guerra ao terror’, identificando como extremistas ou terroristas os caxemiris que lutam pela autodeterminação. A Índia tem um tão significativo soft power económico e cultural, diria mesmo hard power, que ninguém a imagina um país tão violento. O contrário do Paquistão, que tem uma imagem negativa.”

“Não sei se Modi irá reavaliar a sua decisão ou se o pior estará para vir. Por ora, os tempos são sombrios. Mas se os países e as organizações internacionais continuarem a protestar e a pressionar [o Governo indiano], talvez seja possível que algo mude.”

Hafsa Kanjwal é professora de História da Caxemira (onde nasceu) e da Ásia do Sul em Lafayette College, Easton (Pensilvânia)
© news.lafayette.edu

Presa de impérios, principado, território cobiçado

Se há um paraíso na Terra

É este, é este, é este

Amir Khusrau, poeta sufi da Índia, mestre da literatura persa medieval, numa ode (ghazal) dedicada à Caxemira, em The Writings of Amir Khusrau: 700 Years After the Prophet – A 13th-14th Century Legend of Indian-Sub-Continent

© Yawar Nazir | Getty Images | Daily Beast

A Caxemira, no coração dos Himalaias, é uma vasta e estratégica região montanhosa que faz fronteira com a Índia, a sul, o Paquistão, a oeste, e a China a leste.

A parte indiana, Jammu e Caxemira (J&C) incluindo o precioso Vale da Caxemira, estende-se ao longo de 92.437km2 e tem 12,5 milhões de habitantes. A parte paquistanesa é composta por Azad Kashmir ou Caxemira Livre e Gilgit-Baltistan (antigos “Territórios do Norte”), ocupa 86.000 km2 e tem cerca de 6,4 milhões de habitantes.

A China, por seu turno, conquistou Aksai Chin e o vale de Shaksgam durante a guerra sino-indiana de 1962, e não parece desistir de recuperar um pedaço do nordeste da Caxemira indiana, de língua tibetana e língua budista.

A história da Caxemira é antiga. Remontará à era antes de Cristo. O seu maior império foi o de Lalitaditya-Muktapida, da dinastia Karkota, nos anos 700, um guerreiro que lhe “ofereceu uma glória nunca antes alcançada”.

Em termos religiosos, a Caxemira começou por praticar uma série de rituais arianos, inspirados no Sanatana Dharma (“Eterno Caminho”), hoje classificados como hindus. A partir do século II d.C., tornou-se num centro do Budismo Mahayana. Por volta do século V d.C., o Budismo foi perdendo terreno para o Shaivismo, baseado na devoção ao deu hindu Shiva.

A mistura de Shaivismo Caxemiri e de Budismo Mahayana facilitou a introdução no Vale da Caxemira de um Islão sunita e sufi que, nos anos 1200, chegou com viajantes, comerciantes, mercenários e missionários.

Entre 1300 e 1490, a religião fundada por Maomé na Arábia ganhou ainda mais fulgor com a presença de teólogos sunitas e xiitas vindos do Turquestão e do Irão, bem sucedidos nos seus esforços de conversão – excepto entre os da casta mais elevada dos hindus brâmanes, conhecidos na Caxemira como Pandits ou Bhattas (“pessoas cultas”).

O primeiro governante muçulmano da Caxemira, de 1320 a 1323, foi o príncipe outrora budista Lhachen Gyalbu Rinchen, de Ladaque, mas quem consolidou o Islão como religião de Estado foi Shah Mir, um mercenário turco da guarda de elite de Rinchen. Conhecido como Sultão Shams-ud-Din, governou entre 1339 e 1342 e fundou uma dinastia que dominou a Caxemira durante 222 anos.

Vieram depois outros conquistadores muçulmanos – os mogóis e os afegãos, que anexaram a Caxemira até 1819, ano em que o poderoso império sikh, de Ranjit Singh, conquistou a região. Ranjit reaproximou a Caxemira do Punjab (onde tinha a capital, Lahore) e fez dela a mais produtiva província do seu reino, em grande medida porque explorava e oprimia todos os caxemiris, independentemente da religião.

Geografia complicada

Um nómada da Caxemira, membro da comunidade Bakerwal, caminha perto do lago Kausar Nag, situado numa montanha de grande altitude, cerca de 90 km a sul de Srinagar
© Abid Bhat | roadsandkingdoms.com

A partir dos anos 1820, os sikhs foram ampliando território graças ao seu intrépido Khalsa Dal (exército), mas a morte do carismático Ranjit, em 1939, desferiu um golpe fatal ao império sikh. Seria derrotado em 1846 pelas forças da Companhia Britânica das Índias Orientais, numa batalha de que resultaram milhares de mortos nos dois campos..

Depois de dez governadores sikhs em 27 anos – “a maior calamidade” da história da Caxemira” –, os britânicos assumiram o poder, mas apenas por uma semana. Precisando de dinheiro para fazer face aos elevados custos da sua conquista do Punjab, e desconhecendo a riqueza da Caxemira, a Companhia das Índias vendeu-a a Gulab Singh, um hindu da dinastia Dogra, natural de Jammu.

Embora tivesse sido uma notável figura do exército e da corte de Ranjit Singh, quando este morreu Gulab aproximou-se dos britânicos, na altura em débil posição táctica e estratégica face a russos, afegãos e chineses, e prometeu-lhes proteger os seus interesses.

O Tratado de Amritsar que Gulab Singh assinou com a Coroa britânica, em 16 de Março de 1846, criou não apenas o principado de Jammu e Caxemira (J&C) mas, pela primeira vez desde a conquista mogol em 1586, deu também a um político local o controlo, ainda que sob suserania britânica, do norte do subcontinente indiano.

O cruel Gulab, cujos penosos impostos obrigaram à fuga para o Punjab de milhares de tecelões das célebres écharpes de caxemira, principal fonte de rendimento, enfrentou firme resistência. Os britânicos, que o consideravam aliado indispensável, foram obrigados a socorrê-lo com dez mil soldados.

Gulab passaria o resto dos seus dias na Caxemira e foi aqui que morreu em 1857, pouco depois da Revolta dos Cipaios – a rebelião de soldados indianos da Companhia Britânica das Índias que, naquele ano, quase destruiu as possessões desta empresa majestática.

Por volta de 1861, o sucessor de Gulab, marajá Ranbir Singh, que ajudara os britânicos a vencer a revolta, dominava completamente o território, após ter recapturado Gilgit aos sikhs, uma povoação que, a norte e nordeste, era fronteiriça com o “problemático Afeganistão”, a “instável China” e a “agressiva Rússia”.

Ranbir Singh revelou-se um governante fanático e impiedoso, que favorecia os hindus com terras, empregos e privilégios em detrimento dos muçulmanos. Ao impedir camponeses caxemiris de cultivarem os seus campos até estar presente um cobrador de impostos, arruinou as colheitas de Outono e contribuiu para a fome assoladora de 1877-1879, que matou 3/5 da população do Vale da Caxemira.

Em 1885, ascendeu ao trono Pratap Singh, que o estéril Ranbir reconheceu como filho. Em 1889, desconfiados de que o novo e incompetente marajá havia solicitado ajuda aos russos contra os britânicos, estes passaram a administrar directamente J&K através de um Conselho da Regência.

Hari Singh, Abdullah e Nehru

Protagonistas do drama da Caxemira – Da esq. para a direita: Xeque Abdullah, Lorde Mounbatten, Marajá Hari Singh e Jawaharlal Nehru
© jammukashmirnow.com

Em 1925, quando Pratap morreu, sucedeu-lhe o sobrinho Hari Singh, um general de Jammu, abençoado pelos britânicos, que continuou a dar primazia aos hindus dogras – na administração, no exército e na polícia –, marginalizando a maioria muçulmana.

Em 1931, J&C sublevou-se contra o marajá. Os britânicos intervieram, forçando-o a instituir um sistema que devolvia ao praja (“povo”) um limitado sufrágio universal, sem direito a liberdade de expressão, reunião, protesto ou oposição. Estas “reformas” não travaram a agitação social.

Em 1946, o líder da revolta de 1931, Xeque Muhammad Abdullah, e o seu partido, Conferência Nacional, iniciaram a campanha “Quit Kashmir” (Deixem a Caxemira), semelhante a outra, “Quit India”, que o Congresso Nacional Indiano, de Jawaharlal Nehru, lançara contra o poder britânico. A resposta do marajá foi impor a lei marcial e prender 900 opositores, um deles Abdullah, e forçando outros ao exílio.

Em 1947, a ascensão de Nehru (advogado e amigo de Abdullah) a primeiro-ministro da Índia independente marcou o rápido declínio de Hari Singh no principado composto, à época, por três províncias: Jammu, Caxemira e Distritos de Fronteira.

Quando os britânicos decidiram dividir a sua “jóia da coroa”, depois da II Guerra Mundial, o subcontinente indiano era composto por 17 províncias da “Índia Britânica” (dois terços do território) e mais de 500 estados da “Índia Principesca”. Embora não o mais populoso, o principado de Jammu e Caxemira era o maior em termos de área e o mais estratégico, com duas fronteiras internacionais: com a China (o Tibete, a leste, e Sinkiang, a nordeste) e com o Afeganistão (a norte).

Aquando da criação da Índia e do Paquistão, porque a maioria dos estados dos marajás estava rodeada ou separada da “Índia Britânica”, a potência colonial encorajou e/ou pressionou os principados a juntarem-se a um dos dois novos países.

Duas acessões controversas – de Junagadh e Hyderabad – abriram um precedente para a Índia e o Paquistão se envolverem em “duplicidades e diatribes” na Caxemira. O nawab de Junagadh e o nizam de Hyderabad eram príncipes muçulmanos de estados maioritariamente hindus, o contrário do que acontecia em J&C, onde Hari Singh era o marajá hindu de um principado predominantemente muçulmano.

Para surpresa de muitos, o estado de Junagadh, com 80% de hindus e não contíguo com o Paquistão, optou por fazer parte deste. Foi uma decisão contestada que a União Indiana anularia em Outubro de 1947. Em Hyderabad, com 85% de hindus, o nizam queria a independência, mas a Índia negou-lhe essa aspiração e invadiu este próspero enclave em setembro de 1948.

Na Caxemira, a que mais estava ligada geográfica, social, cultural e economicamente às regiões integradas no Paquistão, o marajá Hari Singh e o xeque Abdullah também ambicionavam a independência. O primeiro para criar um “Dograstão” (estado dos dogras); o segundo para se libertar de uma dinastia autocrática e anacrónica.

Índia e Paquistão

Soldados indianos e paquistaneses posam para fotografias, depois de trocarem presentes durante o feriado islâmico de Eid al-Adha, no posto fronteiriço de Chakan Da Bagh, na Caxemira, em 22 de Agosto de 2018
© Ministério Indiano da Defesa | Newsweek

De início, a Índia estaria disposta a abdicar de J&C, mas mudou de ideias quando o nawab de Junagadh decidiu juntar-se ao Paquistão. Se este país aceitava a acessão de um príncipe muçulmano cuja maioria de súbditos era hindu, então também a Índia faria o mesmo com o marajá hindu de um estado esmagadoramente muçulmano, ainda que diverso, disperso e desunido.

A comunidade muçulmana de J&C, por exemplo, não era monolítica: havia sunitas, xiitas, ismailis e sufis. As práticas religiosas dos sunitas de Jammu diferiam das do único grupo que era, religiosa e etnicamente, homogéneo: os muçulmanos sunitas caxemiris, muitos dos quais aderiram a tradições locais, como a adoração de santos – um anátema para os sunitas mais “fundamentalistas”.

Politicamente, também nenhum dos dois principais partidos de J&C tinha apoio universal. A Conferência Nacional (secular, de esquerda e pró-independência), do Xeque Abdullah, atraía caxemiris muçulmanos e hindus: a Conferência Muçulmana (mais retrógrada e pró-Paquistão) empolgava a maioria dos muçulmanos de Jammu.

Quanto ao impopular Hari Singh, nunca foi capaz de galvanizar um sentimento de cidadania e, quando partiram os britânicos que o sustentavam, o principado começou a fragmentar-se.

Entre 15 de Agosto e 26 de Outubro de 1947, três decisivos acontecimentos lançaram as sementes para um conflito que persiste sete décadas depois: 1) uma rebelião de muçulmanos pró-Paquistão contra o marajá na área de Poonch Jagir; 2) dois massacres interconfessionais em Jammu, envolvendo hindus e sikhs contra muçulmanos, por um lado, e muçulmanos contra hindus e sikhs, por outro; 3) uma invasão da Caxemira por um lashkar (exército) da tribo Pukhtoon, vindo de uma província paquistanesa.

Esta sangrenta invasão, acompanhada de violações e pilhagens, foi inútil, porque falhou a conquista do indispensável Vale da Caxemira e levou muitos caxemiris a perder a fé no Paquistão.

Em 26 de Outubro de 1947, o “Marajá General Sir Hari Singh Bahadur” acabou por aceder à Índia – era esta a condição para receber ajuda militar. No dia seguinte, 35 mil soldados indianos chegaram a Srinagar, capital de Verão de J&C. O Paquistão enviou igualmente forças regulares, e assim começou a Primeira Guerra da Caxemira. Outras seriam travadas em 1965, 1971 e 1999.

Em Janeiro de 1949, um ano depois de a Índia ter pedido a intercessão da ONU, a Caxemira viu-se dividida em duas partes (63% para a Índia e 37% para o Paquistão). Os beligerantes aceitaram um cessar-fogo, uma retirada de tropas, separadas por uma faixa de 770 km, mais tarde designada “Linha de Controlo”, e um plebiscito em que o povo de J&C decidiria se, na totalidade, queria fazer parte da Índia ou do Paquistão – países que jamais comtemplaram a opção de independência.

À espera da libertação

Jovens em Jammu e Caxemira lançam pedras a soldados indianos que controlam o território (foto de Agosto de 2019)
© Atul Loke | The New York Times

A realidade é que o plebiscito nunca se realizou, porque o Paquistão não confiava na Índia e porque a Índia percebeu que não teria hipótese de ganhar nas áreas de maior concentração muçulmana.

O acordo que Hari Singh assinou com Nova Deli dava a J&C um “estatuto especial” de autonomia, com direito a uma Constituição, a uma bandeira e a redigir leis, excepto nas áreas da Defesa, Negócios Estrangeiros e Comunicações. Os chefes do governo local designavam-se por presidente e primeiro-ministro. Só os “residentes permanentes” do estado tinham direito a comprar terras e casas.

Em 1952, terminaram formalmente 52 anos de poder de Hari Singh, o quarto e último marajá de J&C, e 106 da dinastia Dogra. Mas todos os anseios de autodeterminação dos caxemiris foram reprimidos. Em 1953, a Índia de Nehru prendeu o xeque Abdullah, que era primeiro-ministro, depois de ele ter aprovado uma reforma agrária que assustou latifundiários hindus e sugerido a possibilidade de independência.

Após 17 anos na cadeia, Abdullah fez um pacto com a Índia, desistindo do plebiscito recomendado pela ONU e regressou ao poder até 1982 – período relativamente pacífico. Em 1987, o governo indiano falsificou eleições, prendeu candidatos e simpatizantes da oposição – um deles, Yasin Malik, que viria a criar a Frente de Libertação de Jammu e Caxemira (FLJC).

Em 1989-1990, a FLJC e outros grupos separatistas, treinados e armados pelo Paquistão, inspirados pelos mujahedin afegãos, mergulharam a Caxemira numa rebelião total. Mataram centenas de muçulmanos pró-Índia, desde activistas políticos a presumíveis informadores dos serviços secretos de Nova Deli. Pelas mesma razões, assassinaram também centenas de pandits e forçaram a fuga dos restantes para Jammu e outras cidades.

Os anos seguintes continuaram a ser de violência e repressão, alimentadas pela doentia rivalidade entre a Índia e o Paquistão. Mas, neste “vale da morte”, onde mais de 80 mil pessoas perderam a vida, os caxemiris não desistem de lutar pela liberdade.

Fontes:

Curfewed Night: one Kashmiri Journalist’s Frontline Account of Life, Love, and War in His Homeland, de Basharat Peer; Kashmir: The Case for Freedom, de Tariq Ali, Hilal Bhatt, Anagana P. Chatterji, Habbah Khatun, Pankaj Mishra e Arundhati Roy; Paradise at War: A Political History of Kashmir, de Radha Kumar; Understanding Kashmir and Kashmiris, de Christopher Snedden.

© Sameer Mushtaq | Al Jazeera

Estes artigos foram publicados originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Dezembro de 2019 | These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, December 2019 edition

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