A liberdade de movimento “é um direito humano fundamental”, sublinha Reece Jones, coordenador e co-autor de Open Borders: In Defense of Free Movement. “Esta é a posição moral justa que toda gente deveria defender”, em vez de exacerbar o medo que, trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, constrói cada vez mais barreiras, vedações e fortificações. (Ler mais | Read more…)

Migrantes caminham escoltados pela polícia de fronteiras da Eslovénia para serem registados num capo nos arredores de Dobova
© Serguei Ponomarev | The New York Times
Em 1989, quando caiu a Cortina de Ferro, a esperança era a de que, seguindo o exemplo do de Berlim, todos os muros seriam derrubados. Mas, três décadas depois, o seu número aumentou de 5 para 70.
As novas fronteiras “já não são linhas defensivas militares contra a invasão de Estados”, explica Reece Jones, professor no Departamento de Geografia e Ambiente da Universidade do Havai, numa entrevista que me deu por e-mail. “Agora, servem de proteção contra o movimento de indivíduos descritos como ameaça a sistemas políticos, culturais e económicos”.
Foi para contestar as “restritivas e mortíferas” políticas de imigração na América e na Europa que este académico coordenou uma obra extraordinária acabada de publicar, com 20 autores e 284 páginas, Open Borders: In Defense of Free Movement.
Ele que já havia escrito outros livros de referência, como Violent Borders: Refugees and the Right to Move, está já a preparar o próximo, para provar que as leis de imigração nos EUA, desde as primeiras aprovadas em 1875, “têm tudo a ver com a raça”.
A queda do Muro de Berlim gerou esperança de que até as pequenas barreiras viriam a seriam derrubadas. Construir fronteiras era considerado um anacronismo em democracia. Mas o que aconteceu foi o oposto. O que premiu o gatilho?
O número de muros erguidos nos últimos 30 anos evidencia a mudança de objetivos das fronteiras na era da globalização. Como documentou a minha colega Elisabeth Vallet [autora de Borders, Fences and Walls], no final da II Guerra Mundial havia apenas cinco muros em todo o mundo. Em 2000, só havia 15, mas hoje são 70.
Com muros em tantos locais diferentes, é impossível generalizar sobre todos eles, mas eles são muitas vezes uma reação contra a globalização. Sempre que pessoas, ideias e capitais se movem pelo mundo, alguns sentem o desejo de recuar para recuperar maior controlo. Isto vê-se no Brexit, mas também na resistência a acordos de comércio livre e à imigração.

O hondurenho Jonatan Matamoros Flores, de 33 anos, parte de uma “caravana de migrantes”, fotografado no topo de uma vedação erguida em Tijuana, na fronteira do México com os Estados Unidos, em 8 de Dezembro de 2018
© Guillermo Arias | AFP | Getty Images | Newsweek
No caso da Europa, qual é o objetivo principal para a construção de mil quilómetros de muros em toda a UE – “a fronteira mais mortífera do mundo”? Como avalia a sua eficácia?
Os muros são, intrinsecamente, ineficazes na tentativa de travar qualquer movimento. Sem guardas, são facilmente derrubados ou trepados com uma escada. Os muros fortemente vigiados por guardas fronteiriços e equipamento de segurança podem impossibilitar o movimento em determinados pontos de acesso.
Alguns estudos indicam, todavia, que a militarização de uma zona particular da fronteira apenas desvia o movimento para outra zona, geralmente mais perigosa – o chamado ‘efeito funil’. E porque estes novos locais remotos são mais perigosos, há uma relação direta entre segurança fronteiriça e mortes de migrantes.
Fugindo da violência ou das más condições de vida nos seus países, as pessoas não deixam de migrar, mas a sua viagem torna-se mais mortífera. A agência Associated Press registou 14 000 mortes de migrantes em todo o mundo, entre 2014 e 2018.
É claro que a culpa por estas mortes é atribuída aos políticos e às agências fronteiriças que aplicam as novas leis contra a imigração. Ainda recentemente, foi apresentada uma queixa contra a União Europeia no Tribunal Penal Internacional, por ‘crimes contra a humanidade’ nas suas fronteiras.
[O processo, apresentado em 4 de junho por dois advogados, Juan Branco e Omer Shatz, acusa, em particular, a França, a Itália e a Alemanha de, ao tentarem travar imigrantes vindos da Líbia, terem contribuído para a morte de pelo menos 14 000 pessoas.]
Segundo o Transnational Institute, em Amesterdão, a extrema-direita na Europa (38 partidos políticos em 28 Estados membros) “tem manipulado a opinião pública para criar medos irracionais em relação aos imigrantes, uma xenofobia que ergueu muros mentais nas pessoas”. Noutras partes do mundo, também se vê um crescendo de racismo, intolerância religiosa e violência. Como se deve enfrentar estes desafios?
Tudo se resume ao medo. A extrema-direita tem sido capaz de o criar e de usar informações falsas para ver apoiadas as suas posições. Não esqueçamos, porém, que eles não representam a maioria em nenhum país. Como se constatou nas eleições europeias [em maio], os partidos da extrema-direita atingiram o limite ou até perderam votos na maioria dos países, após um crescimento rápido nos anos anteriores.

Uma criança que foge da guerra tenta subir com ajuda uma das vedações na fronteira da Síria com a Turquia, em Akçakale. Esta fotografia recebeu um prémio World Press Photo em 2016
© Bulent Kilic
Nos EUA, por outro lado, dados do Census Bureau publicados em 2018 revelam que a América precisa de mais e não menos imigrantes, porque o crescimento demográfico é o menor dos últimos 80 anos. Assim sendo, quais as principais razões para Donald Trump querer construir um muro de 5000 milhões de dólares na fronteira com o México? Será porque receia “uma minoria branca” em 2045? Até que ponto a sua política diverge da de anteriores presidentes?
Estou agora a escrever um outro livro, sobre raça e leis de imigração nos EUA. Embora muita gente pense que estas leis sejam normais em qualquer país, no caso americano, a primeira lei tinha tudo a ver com a raça, especificamente com o objetivo de afastar as pessoas não brancas.
As primeiras duas leis nacionais, Page Act, de 1875, e Chinese Exclusion Act, de 1882, proibiam a entrada de imigrantes chineses no país. E a primeira grande lei de imigração, Johnson-Reed Immigration Act, de 1924, estipulava quotas com base na origem nacional, interditando toda a imigração asiática e restringindo duramente outros imigrantes, exceto os que vinham do Norte e Ocidente da Europa.
Num artigo publicado no New York Times, o promotor desta lei, David Reed escreveu: “A partir de agora, a composição racial da América torna-se permanente”. O que agora assistimos é o regresso a essas normas do passado, com Trump e os seus aliados na direita a usarem a política migratória para restringir a imigração não branca.
Acaba de publicar Open Borders: In Defense of Free Movement. Por que continua esta missão, que considera “idealista”, numa era de intensos fluxos migratórios, tráfico de seres humanos e até doenças contagiosas, com Estados a reclamarem “o direito legítimo” de controlar território e “a obrigação” de proteger os interesses dos seus cidadãos?
Parte do meu trabalho como professor é ter uma visão mais alargada de um determinado tema e não me deixar arrastar pelas políticas do momento. O sistema de Estados soberanos é um desenvolvimento político relativamente novo: os primeiros Estados com fronteiras emergiram na Europa no século VII e espalharam-se pelo mundo em meados do século XX.
[O antropólogo americano] James C. Scott, no seu livro Against the Grain: A Deep History of the Earliest States, mostra que a atual configuração política só existiu para 0,2% da história humana na Terra. Portanto, há razão para acreditar que, no futuro, aparecerá um novo sistema que substituirá o atual. A norma da existência humana é a migração. A anomalia é uma fronteira fechada.
Em Open Borders, eu começo por perguntar se o movimento é um direito humano fundamental, e concluo que é. Embora no nosso atual momento político possa parecer idealista defender o direito de todos os seres humanos a moverem-se livremente por todo o mundo, esta é a posição moral justa que todos deveriam defender.

O desespero de uma migrante retida na fronteira entre a Hungria e a Sérvia, nas proximidades da cidade de Horgos, em 16 de Setembro de 2015
© Armend Nimaniarmend Nimani | AFP | Getty Images | TIME
O que acontece se, em consequência de uma guerra ou pobreza extrema, a maioria da população de um país se mudar para outro? Qual o impacto humano, económico e ambiental de uma política de fronteiras abertas?
Estudos sobre migração têm demonstrado, de maneira consistente, que esta é economicamente benéfica para ambas as partes, independentemente de serem migrantes económicos ou refugiados. Nos países de acolhimento, os imigrantes criam mais empregos, por exemplo, quando arrendam casas ou fazem compras em lojas locais.
Segundo um estudo realizado nos EUA, cada imigrante cria 1,2 postos de trabalho adicionais além do seu. A imigração também beneficia os países de origem, porque alivia a pressão sobre serviços sociais sobrecarregados, ao mesmo tempo que contribui para a economia com as remessas dos emigrantes. Em termos puramente económicos, é inequivocamente positivo defender fronteiras abertas.
A oposição à imigração tem, na maior parte dos casos, bases culturais. Os imigrantes introduzem no modo de vida do país que os acolhe novos alimentos, palavras e determinadas tradições, enquanto se integram no seu tecido social. Estas trocas culturais são geralmente benéficas, mas assustam algumas pessoas. Não creio que ter medo de os nossos vizinhos falarem uma língua diferente ou seguirem um modo de vida distinto seja justificação para os proibir de entrar num país.
O que são fronteiras, afinal, e desde quando é que Estados-nação são por elas definidos? É possível determinar quando se começaram a construir muros, como eram eles e como é que o controlo fronteiriço tem evoluído?
O papel específico desempenhado pelas fronteiras mudou dramaticamente nos últimos 300 anos. Originalmente, a maioria das fronteiras eram linhas defensivas militares onde um Estado colocava o seu exército para impedir uma invasão por outro Estado.
Embora algumas destas fronteiras ainda existam (por exemplo, a DMZ [Zona Desmilitarizada] na Península Coreana ou a Linha de Controlo de Caxemira [que separa a Índia e o Paquistão]), o propósito da maioria das fronteiras, no último século, passou a ser o de delinear espaços de autoridades soberanas separadas.
À medida que o sistema de Westfália de fronteiras mutuamente reconhecidas [depois da Guerra dos 30 anos que devastou a Europa de 1618 a 1648] foi sendo mundialmente aplicado, e particularmente depois da Criação das Nações Unidas em 1945, a ameaça de invasão por parte e um Estado vizinho diminuiu substancialmente. E as fronteiras tornaram-se lugares onde diferentes sistemas de autoridade soberana eram institucionalizados e aplicados.
Naquela época, os gigantescos projetos de segurança fronteiriça raramente eram necessários porque, na ONU, havia o reconhecimento mútuo da autoridade de cada Estado, e não havia uma ameaça iminente que justificasse uma infraestrutura tão onerosa.
Nos últimos 30 anos, na era da globalização e da mobilidade do trabalho, o objetivo das fronteiras voltou a mudar, para as tornar novamente linhas de proteção dos privilégios de um Estado. Em vez de linhas defensivas que afastam invasores, as fronteiras servem agora de proteção contra o movimento de indivíduos descritos como ameaça a sistemas políticos, culturais e económicos.
À medida que aumentam as provas de que as mudanças climáticas estão a forçar os seres humanos a migrar através de fronteiras internacionais, vários Estados têm vindo, com toda a urgência, a aprovar leis e a impedir entradas indesejadas.
Este novo objetivo mudou profundamente o modo como as fronteiras são construídas e patrulhadas, com a mobilização de mais pessoal e investimento numa vasta gama de tecnologias militares e de segurança para monitorizar, identificar e bloquear movimentos não autorizados.

Agentes da Guarda Civil Espanhola usam um elevador para retirar migrantes africanos que subiram a uma vedação quando, vindos de Marrocos, tentavam entrar no enclave de Ceuta
© Reuters
Há um século, Franz Kafka descrevia a Grande Muralha da China como “um fracasso da imaginação humana”, mas muitas pessoas ainda olham para esta colossal estrutura com enorme admiração. Porquê?
Os muros funcionam como um símbolo. Eles removem todos os medos que as pessoas possam sentir sobre ideias abstratas, como a globalização, a imigração, a insegurança económica e as mudanças culturais. Instintivamente, Donald Trump percebeu o poder dos muros como um símbolo de ‘nós e eles’. É, por excelência, o símbolo da exclusão nacionalista.
Qual das barreiras, vedações ou fortificações erguidas desde 1989 pode hoje ser considerada o novo “Muro da Vergonha”?
Todas elas!

Reece Jones, professor no Departamento de Geografia e Ambiente da Universidade do Havai, EUA
© Reece Jones
Esta entrevista, com um título diferente, foi publicada originalmente na revista VISÃO, edição de 13 de Novembro de 2019 | This interview, under a different headline, was originally published in the Portuguese news magazine VISÃO, November 13, 2019 edition