Élisabeth Vallet e David Frye: O que significa um muro?

Trinta anos após a queda do Muro de Berlim, não apenas aumentou o número de barreiras e vedações em todo o mundo, como a Europa se transformou na “mais mortífera fronteira”: quase 35 mil migrantes perderam a vida – no mar, em campos de detenção ou centros de asilo –, entre 1993 e 2018. Entrevistei uma geógrafa e um historiador para perceber as fortificações do passado e do presente. (Ler mais | Read more...)

Um guarda vigia as muralhas do Kremlin, na zona central e mais antiga de Moscovo. As muralhas actuais remontam ao final dos anos 1400, tendo substituído as anteriores
© Misha Japaridze | Associated Press | The New York Times

David Frye, autor de Walls: A History of Civilization in Blood and Brick, está convencido de que, “na história humana, nenhuma invenção se compara aos muros no papel que desempenharam para criar e moldar a civilização. Sem muros, não haveria um [poeta romano] Ovídio, nem sábios chineses, matemáticos babilónios ou filósofos gregos.”

“Há mais de mil anos que se constroem muralhas”, salienta o professor de História Antiga e Medieval na Eastern Connecticut State University, nos EUA, numa entrevista que me deu por e-mail. “Elas foram edificadas, sobretudo, com objetivos de segurança. Para as primeiras cidades [como Jericó, na Palestina atual, que ergueu o primeiro muro defensivo em 8000 a.C.], representavam vida, a possibilidade de dormir em sossego, sem estar constantemente em guarda.”

“Mais: ofereciam liberdade. Porque estes muros podiam ser defendidos por homens sem necessidade de treino ou habilidade com armas. Os muros libertavam os homens da responsabilidade de serem guerreiros e permitia-lhes ocuparem-se com outras atividades. Os primeiros muros não criavam prisões. Criavam espaços seguros.”

O Muro de Berlim, pelo contrário, foi erigido “para aprisionar e não proteger”, realça Frye. “Ainda assim, nem todos o encaravam da mesma forma. [O Presidente dos EUA, John F.] Kennedy inicialmente acolheu-o com alívio [ver segundo texto]. Esperava que o muro diminuísse as tensões e evitasse uma guerra termonuclear, como ameaçara [o líder soviético Nikita] Krutchov. Foi, por isso, que Kennedy disse: ‘A wall is a hell of a lot better than a war”.

Os jornalistas que, na madrugada de 13 de agosto de 1961, assistiram à colocação dos primeiros rolos de arame farpado que iriam separar Berlim Leste de Berlim Ocidental “relataram o que viram “de maneira muito diferente da que Kennedy provavelmente gostaria”, anotou Frye.

O Muro de Berlim “não era, pois, olhado por todos da mesma maneira – uns viam-no como símbolo do domínio comunista; para outros, era um lugar onde crianças brincavam, turistas tiravam fotografias, famílias faziam piqueniques e outros faziam jogging.”

“Acabou por ser, como Kennedy disse, ‘melhor do que uma guerra’, mas também prendeu muitos alemães de Leste a um regime totalitário”, reconhece Frye. No entanto, 30 anos depois, “o Muro de Berlim está a ser usado, no contexto político atual, de uma maneira errada – é apresentado como símbolo de que todos os muros são opressivos, quando, na realidade, ele sempre foi diferente dos outros muros históricos e não pode ser considerado representativo”.

Os romanos ergueram a Muralha de Adriano contra invasões militares, mas não fecharam as portas a imigrantes, sublinha Frye. O Muro de Berlim foi erigido para conter a emigração; a maioria dos que hoje se constroem é para travar a imigração.

Muralhas da Cidade do Vaticano, em Roma. Uma grande parte foi construída no século IX pelo Papa Leão IV, como protecção contra ataques de piratas e outros malfeitores. As muralhas actuais já não rodeiam totalmente a cidade – toda a gente (como os turistas nesta fotografia) pode caminhar pela Praça de São Pedro
© Dan Kitwood | Getty Images | The New York Times

O problema de muitos acreditarem que, depois do Muro de Berlim, viria um mundo sem fronteiras é que “os cientistas políticos interpretaram como sendo uma revolução o que, em 1989, não foi bem uma revolução”, diz-me, por seu turno, a geógrafa Élisabeth Vallet.

“As fronteiras não desapareceram; o que mudou foi a sua natureza e as suas funções”, explica a coordenadora e co-autora de Borders, Fences and Walls: State of Insecurity. “O que alterou, significativamente, o modo como as fronteiras são hoje encaradas foram os ataques de 11 de setembro nos EUA em 2001. Desde então, o medo tornou-se a força motriz das relações internacionais e o cimento dos muros atuais.”

Um muro define um ‘nós versus eles’, num contexto em que a globalização dilui identidades, esbate a noção de nacionalidade e, ao mesmo tempo, reforça a necessidade de nos definirmos segundo parâmetros que possam ser compreendidos e controlados”, afirma a professora de Geografia e Geopolítica na Universidade do Quebeque em Montreal, Canadá.

Os muros não são todos iguais, concorda Élisabeth Vallet. “O muro indo-paquistanês pode ser visto como um muro de manutenção da paz, uma maneira de os dois países dizerem ‘estamos de acordo em discordar’. É um sinal de fim de diálogo sem ser o princípio de uma guerra”, explica a académica canadiana.

“É também este o espírito dos muros entre as duas Coreias e entre o Norte e o Sul de Chipre. Já o muro na fronteira da Índia com o Bangladesh faz parte da tendência que agora vemos na Europa e nos EUA. O objetivo é prevenir a imigração, a entrada de indivíduos que o discurso dominante define como indesejáveis.”

São muros que “funcionam apenas parcialmente”, porque, muitas vezes, “os números apontados pelos governos são geograficamente limitados (à área do muro) e não têm em conta as estratégias [dos migrantes] para encontrar rotas alternativas, nem o facto de, apesar das restrições, os muros continuarem a ser escalados e atravessados.”

Uma parte da Grande Muralha da China, construída e reconstruída ao longo de séculos para (em vão) travar invasores vindos do Norte
© Kevin Frayer | Getty Images | The New York Times

O problema, adianta a diretora do projeto de investigação Borders in Globalization, é que os governos que fortificam fronteiras “assumem que a migração é um luxo” e que os migrantes têm outras opções. “Isso não é verdade! Poucos correriam o risco de morrer se pudessem ficar nos seus países. Os muros são uma solução falsa.”

Élisabeth Vallet recomenda que, em vez de “muros faraónicos”, que apenas criam “mercados lucrativos para complexos industriais-militares”, se invista “na manutenção da paz e na criação de um sistema de segurança humano para enfrentar os grandes movimentos migratórios, a escassez alimentar e as mudanças climáticas” – as quais, segundo especialistas, poderão desalojar “pelo menos 200 milhões de pessoas até 2050”.

O Muro de Berlim manteve-se de pé durante 10 316 dias. Será que os novos muros estão, também, condenados a desaparecer? “A ordem mundial parece redefinir-se a cada década que passa, por isso, é difícil determinar como é que as placas tectónicas das relações internacionais se vão realinhar nos próximos anos”, responde a professora no Quebeque. “Mas é óbvio que os novos muros acabarão por cair. Quando, não sabemos. Como, também não.”

Élisabeth Vallet, co-autora de Borders, Fences and Walls: State of Insecurity
© John Mahoney | Montreal Gazette

David Frye, autor de Walls: A History of Civilization in Blood and Brick
© easternct.edu

O tempo em que “um muro era melhor do que uma guerra”

As condições para a construção do Muro de Berlim começaram a ser criadas nos últimos meses da II Guerra Mundial, ganha em 1945 por inimigos naturais que se haviam aliado para derrotar Hitler.

A guerra matou um milhão e meio de berlinenses. Assim que acabou, os soviéticos – na altura os únicos ocupantes da capital alemã – começaram a pilhar todo o equipamento industrial pesado e a enviá-lo para a URSS. A cidade não conseguia praticamente sustentar-se a si própria, e uma “Guerra Fria” começou quase de imediato.

Vários tratados já haviam determinado o futuro de Berlim: seria dividida em quatro setores cada um deles administrado por representantes dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e União Soviética. Segundo estes acordos, toda a cidade, incluindo os setores ocidentais, ficaria em território da Alemanha de Leste controlado pela URSS. Era um plano impossível que só podia causar atritos.

Em 1946, os russos vetaram as primeiras eleições livres após a derrota nazi. Dois anos depois, adotaram uma estratégia ainda mais extrema, tentando matar à fome os aliados em Berlim. O bloqueio que impuseram podia ter provocado uma guerra, se as potências ocidentais não estivessem cansadas de lutar.

Durante quase um ano, as áreas controladas por americanos, britânicos e franceses subsistiram como se fossem uma ilha, abastecida apenas por via aérea. Assim nasceu uma nova cidade: Berlim Ocidental, que se tornaria no “ponto mais vulnerável” entre o Leste e Oeste da Europa.

Soldados americanos em Friedrichstrasse, nas proximidades do Checkpoint Charlie, quando o muro começou a ser construído em Berlim, em Agosto de 1961
© Don McCullin | Press Images | LUZphoto | TIME

Em 1 de dezembro de 1946, ergueu-se uma “Cortina de Ferro”, feita de cimento, arame farpado, alarmes, torres de vigia e vedação elétrica, que se estendia ao longo de 1400 km entre a Alemanha de Leste e a Alemanha Ocidental, e também entre a Hungria e a Áustria.

Em maio de 1952, Estaline delimitou as fronteiras da Guerra Fria, que, em 1959, já eram controladas por dezenas de milhares de guardas. A primeira Cortina de Ferro tinha, porém, um “defeito”: em Berlim, onde havia ainda livre circulação entre os sectores oriental e ocidental, era fácil aos alemães de Leste um passaporte para a liberdade.

Em 1961, o número de pessoas que fugiam para Oeste já ultrapassava os cinco milhões. O êxodo deixou o Leste com cada vez menos trabalhadores qualificados e agravou as dificuldades económicas. Nem a venda pelos soviéticos de mais de 50 toneladas de ouro para fazer face a esta perda de capital humano abrandou a corrente migratória.

No final de 1958, um frustrado Nikita Krutchov, sucessor de Estaline na liderança da URSS, decidiu apertar “os testículos do Ocidente”, como ele descrevia Berlim. Exigiu às potências ocidentais uma retirada total, anunciando a intenção de assinar um tratado separado com a Alemanha de Leste, o que, na prática, permitiria a Moscovo controlar todos os acessos a Berlim Ocidental.

Numa era já atómica – os EUA testaram a primeira bomba em 1945, a Rússia em 1949, a Grã-Bretanha em 1952 e a França em 1960 –, as palavras de Krutchov foram entendidas como uma ameaça de guerra nuclear. Em 1961, incapaz de conter a fuga de alemães do Leste para o Oeste e com um inexperiente John F. Kennedy na Casa Branca, o irascível senhor do Kremlin decidiu dar ouvidos a Walter Ulbricht, líder da Alemanha de Leste, que tinha vários conselhos para forçar a “rendição” das potências ocidentais.

Um alemão em Berlim Ocidental espreita por uma brecha no Muro de Berlim em construção, em Novembro de 1961
© Don McCullin | Press Images | LUZphoto | TIME

Em março de 1961, Ulbricht ordenara ao seu “número de dois”, Erik Honecker, que armazenasse arame farpado e blocos de cimento armado para construir uma gigantesca barreira à volta de Berlim Ocidental. Ideólogo formado na Escola Internacional Lenine em Moscovo, Honecker já sonhava com um muro desde 1953, quando uma revolta operária levou à fuga de jovens comunistas.

As tensões agravaram-se a partir de junho de 1961, sobretudo depois de uma cimeira entre Kennedy e Krutchov ter “corrido muito mal” para o presidente dos EUA, como ele próprio confessou. O líder soviético começou a falar em “libertar” Berlim Ocidental. Ulbricht exprimiu o desejo de a “estrangular”.

Em 25 de julho, Kennedy falou ao país pela televisão: “Não podemos permitir que os comunistas nos expulsem de Berlim, seja gradualmente ou pela força.” Depois de ler a transcrição do discurso (só no ano seguinte a Telstar tornaria possível as transmissões por satélite), Krutchov teve um ataque de fúria. Ameaçou com uma resposta “termonuclear”, segundo um diplomata americano. Uma semana depois convocava uma reunião de líderes do Pacto de Varsóvia para 3-5 de agosto, em Moscovo.

No entanto, de todos os conselhos que Ulbricht lhe dera – desde cortar os acessos ao aeroporto de Berlim Ocidental com balões gigantes até bloquear os canais de comunicação usados pelos controladores aéreos –, Krutchov só aceitou um; isolar Berlim Ocidental com arame farpado.

E foi isso que começou a ser feito por polícias e soldados do Leste em 13 de agosto de 1961, um domingo, depois de um telefonema de Erich Honecker para o exército na noite anterior.

No último dia antes de a vedação ficar concluída, mais de 2500 pessoas fugiram do Leste – em 23 de agosto, a fronteira seria completamente fechada.

Junto ao sector francês do Muro de Berlim, uma família da RFA despede-se dos entes queridos na RDA, em Novembro de 1961
© Don McCullin | Press Images | LUZphoto | TIME

Em Washington, pressentindo o início do fim da crise, Kennedy comentou: A wall is a hell of a lot better than a war (“Um muro é muito melhor do que uma guerra”).

A vedação tornar-se-ia, posteriormente, um verdadeiro muro de cimento, com cerca de 155 km de comprimento e quase 4 metros de altura. Em constante renovação, sobretudo a partir de 1979, cruzava 24 km de rios, 20 km de bosques e mais de 37 km de áreas residenciais. Interrompia o trajeto de 32 linhas férreas urbanas, quatro de metro, 3 autoestradas e 192 ruas e avenidas, entre Berlim Leste e Berlim Ocidental e entre a República Federal da Alemanha (RFA) e a República Democrática Alemã (RDA).

O interior do Berliner Mauerweg era formado por cabos de aço para maior resistência. Acompanhava-o uma “faixa da morte”, constituída por um fosso, gradeamentos e cercas elétricas, sistemas de alarme, 302 torres de vigia, 20 bunkers e uma faixa rodoviária por onde circulavam, 24h por dia, veículos militares, cães-polícia e soldados munidos de armas automáticas com ordens para atirar a matar.

A primeira vítima, em 17 de agosto de 1962, foi Peter Fechter, um jovem alemão de 18 anos, alvejado quando tentou escalar o muro. A última, em 2 de junho de 1989, foi Chris Gueffroy, de 20 anos.

Em 28 anos de existência deste “muro da vergonha”, mais de 500 pessoas conseguiram escapar ilesas, cerca de 3200 foram presas, mais de 160 perderam a vida e outras 120 ficaram feridas.

John F. Kennedy e Nikita Krutchov numa cimeira em Viena, em Junho de 1961. No mês seguinte, o presidente americano falou ao país pela televisão: “Não podemos permitir que os comunistas nos expulsem de Berlim, seja gradualmente ou pela força.” Depois de ler a transcrição do discurso (só no ano seguinte a Telstar tornaria possível as transmissões por satélite), o líder soviético teve um ataque de fúria. Ameaçou com uma resposta “termonuclear”
© Corbis | Gerry Images | history.com

Fontes:

Walls: A History of Civilization in Blood and Brick, de David Frye; Berlin Wall Memorial

Este artigo foi publicado originalmente num edição especial da revista SÁBADO, em Novembro de 2019 | This article was originally published in a special edition of the Portuguese news magazine SÁBADO, on November 2019

 

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