A única barreira erguida para conter a emigração e não a imigração, oficialmente designada “Antifaschitischer Schutzwall” ou Muralha de Proteção Antifascista, manteve-se de pé exatamente 28 anos, dois meses e 26 dias. Desde 16 de agosto de 1961 até 9 de novembro de 1989. A sua construção, ao dividir uma cidade, um país e um continente, definiu uma nova ordem mundial. O seu surpreendente colapso – “grande e glorioso acontecimento” – representou “o fim de um mundo simples e bipolar” e o início de outro “muito mais complicado”, diz-me o académico americano A. James McAdams, que é um dos maiores especialistas na Alemanha. Três décadas depois de cair a Cortina de Ferro e acabar a Guerra Fria, “o nosso desejo de voltar à simplicidade” do passado “está a alimentar o populismo da extrema-direita” – incluindo na antiga RDA – “e a criar novos muros”, ainda que muitos deles “sejam apenas mentais”. (Ler mais | Read more...)

1961: Operários da RDA erguem uma secção do Muro de Berlim, vigiados pela polícia da RFA
© Agence France-Presse | The New York Times
A. James McAdams é professor de Relações Internacionais e História Política na Universidade de Notre Dame, em Indiana (EUA), onde também dirigiu, entre 2002 e 2018, o Nanovic Institute for European Studies. Especialista em política alemã e europeia e no estudo comparativo do comunismo, é autor de vários livros considerados de referência: East Germany and Detente; Germany Divided: from the Wall to Reunification: Judging the Past in Unified Germany, Transitional Justice and Rule of Law in New Democracies; Crisis of Modern Times. A sua obra mais recente e que tem igualmente merecido críticas elogiosas, Vanguard of the Revolution: The Global Idea of the Communist Party, é o resultado de três décadas de investigação sobre “regimes ditatoriais que sempre [o] fascinaram” desde que, em 1973, fez a sua primeira “viagem existencial” a Berlim Leste, atravessando o muro que dividia a cidade. Deu-me esta entrevista por telefone.
A primeira vez que o professor atravessou a fronteira da República Federal da Alemanha (RFA) para a República Democrática da Alemanha (RDA), era um jovem de 18 anos que estudava e vivia em Berlim Ocidental. Que memórias guarda desse tempo?
Eu fui para Berlim Ocidental porque queria estudar alemão e assim poder ler filosofia. Por isso fiz cursos na Universidade Livre de Berlim, que ficava em Berlim Ocidental. O melhor desta minha experiência foi mesmo ir de Berlim Ocidental para Berlim Leste. Comecei a fazer isso numa base regular, e o impacto, para mim, foi profundo. Foi como viajar de uma cultura para outra totalmente diferente. De um modo de vida para outro completamente distinto. Viajar de uma cidade para outra é sempre um desafio. Neste caso, foi um puzzle.
Foi difícil ir de um setor da cidade para o outro?
Não foi difícil, porque eles [em Berlim Leste] tinham acabado de instaurar um novo sistema de vistos. Na altura, creio que se pagava cinco marcos da RFA, que depois nos obrigavam a trocar por marcos da RDA. Muitas vezes isso era um problema, porque aqueles cinco marcos equivaliam a uma grande quantia em Berlim Leste, e eu nunca sabia o que comprar com tanto dinheiro.
Viajava sempre sozinho?
Sim. Eu era e sou muito curioso.
Não tinha medo?
Não, embora naquela altura, até no metro houvesse muitos tipos com metralhadoras, cães-polícia, etc… Uma vez, esqueci-me que levava comigo uns ensaios em alemão, que tinha escrito para as minhas aulas e eram bastante críticos da RDA.
Quando entrei naquela terra-de-ninguém que separava o Oeste e o Leste, um dos guardas fronteiriços exigiu ler os meus ensaios. E ficou muito chateado. Colocou-me numa sala isolada com um polícia que se mostrou bastante desagradável comigo. Queria saber o que eu fazia, se estava envolvido em contrabando, se tinha literatura de dissidentes…
Ele acabou por se ir embora e foi substituído por um tipo simpático, de fato e gravata. Creio que era membro da polícia secreta, a Stasi [Ministerium für Staatssicherheit, SSD, ou Ministério da Segurança do Estado]. Na opinião dele, eu tinha escrito aqueles ensaios obrigado por capitalistas em Berlim Ocidental e não passava de um americano ingénuo.
Foi divertido como tudo acabou. Amigavelmente, ele foi recolhendo todas as informações que pretendia. Acho que foi assim que a Stasi iniciou um ficheiro sobre as minhas atividades, naquele dia e nas décadas seguintes.

Agosto de 1961: Manifestação contra a construção do Muro de Berlim
© Terry Fincher / Mirrorpix | Getty Images | The New York Times
Voltemos à atmosfera que encontrou em Berlim Leste quando lá entrou pela primeira vez, e que chegou a comparar a uma “anti-Disneylândia”.
Em 1973, Berlim Ocidental era um lugar com muita vida, onde havia tudo, lojas chiques, edifícios muito elegantes. Em Berlim Leste, pelo contrário, a maioria dos edifícios nem sequer tinham sido reconstruídos desde o fim da guerra [em 1945]. Estavam ainda esburacados pelas bombas. Porque não havia dinheiro suficiente para reparações. O dinheiro era aplicado noutras coisas. É claro que os soviéticos basicamente roubaram muitos dos recursos da RDA.
Outra coisa que me impressionou: as pessoas usavam roupas modestas, praticamente do mesmo modelo e com as mesmas cores escuras. Toda a gente parecia muito mais cansada do que em Berlim Ocidental. Porque tinham de trabalhar imenso! No entanto, não pareciam infelizes. Eram apenas diferentes.
Em 1973, não era nada habitual ver por ali americanos. Os Estados Unidos tinham acabado de estabelecer relações com a RDA e abriram uma missão diplomática em Berlim Leste. As pessoas olhavam-me com desconfiança e evitavam falar comigo. Talvez porque receavam que isso as deixasse em apuros. Gradualmente, porém, fui criando amizades, porque as minhas visitas se foram tornando regulares.
Foi assim que conseguiu quebrar o que chamou de “código de silêncio” dos académicos na RDA?
Nos Estados Unidos, conheci muitos académicos da Alemanha de Leste. Quando voltei a Berlim Ocidental em 1981 e 1982, comecei a contactá-los. Eles mostraram-se curiosos a meu respeito. Provavelmente alguns deles eram membros ou informadores da Stasi. Comecei a reunir-me com eles, e era natural que uns e outros tivessem interesse em partilhar comigo a sua narrativa.
Em 1987, vivia eu em Bona, fiz centenas de entrevistas a parlamentares e outras personalidades importantes da Alemanha Federal. Eu tinha a perspetiva deste lado, por isso, quando ia Berlim Leste, dizia: “Deem-me a vossa perspetiva”. Na primavera de 1988, a minha estadia mais longa em Berlim Leste, foram-me facilitados contactos incríveis de pessoas com quem ninguém no Ocidente jamais havia falado.
Por que é confiavam mais em si, sendo americano, do que nos alemães da RFA?
Os alemães do ocidente eram considerados “o inimigo principal”, porque, até 1989, clamavam ser os únicos representantes de toda a Alemanha. Os EUA, pelo contrário, eram apenas uma superpotência, e na Alemanha de Leste queriam ter acesso a académicos e políticos americanos para os poder influenciar.
Naquela altura, eu era professor na Universidade de Princeton e conhecia muitas pessoas na Administração americana e no Departamento de Estado que eram responsáveis pelas políticas para a RDA e o bloco soviético.
Em Berlim Leste, achavam que eu os poderia ajudar. Não os ajudei, mas ouvi-os. Tive em conta as suas narrativas, mesmo que discordasse abertamente deles em muitas questões importantes. Mas, com o tempo, fui conquistado suficiente confiança e eles convenceram-se de que não me centraria apenas nos aspetos negativos.
Tive sorte, porque fui o único cientista político ocidental que conseguiu fazer isto nos anos 1980. Não havia nenhum alemão da RFA capaz de viver em Berlim Leste naquela altura. Eu e a minha família [a mulher e dois filhos] vivemos aqui em 1988. E eu depois vivi sozinho na primavera de 1989. Isto era completamente invulgar.

Novembro de 1961: Com a Porta de Brandemburgo envolta em neblina, um homem olha para o recém-erguido muro que dividiu Berlim
© Heinrich Sanden Sr. | AP | RFL
Apesar de todas estas visitas, conversas e relacionamentos, a queda do Muro de Berlim em 1989 foi, para si, uma enorme surpresa…
… é importante reconhecer que foi uma surpresa para toda a gente! Foi uma surpresa para os Estados Unidos, para os líderes da RDA, para a União Soviética. Enquanto o muro estivesse de pé, ninguém imaginava o que aconteceria se ele fosse destruído. O Governo da Alemanha de Leste esperava que, mesmo derrubado o Muro, as pessoas não se iriam embora porque amavam demasiado o seu país. Tudo era imprevisível.
O que é que mudou?
Bem, Mikhail Gorbatchov chegou ao poder na União Soviética em 1985 e fez muitas promessas de reforma. Gorbatchov era um comunista que queria reforçar, não acabar com o comunismo! No entanto, sem querer, acabou por lançar as bases do que viria a acontecer na Alemanha.
Se Gorbatchov não tivesse iniciado reformas na URSS, o colapso da RDA teria demorado muitíssimo mais tempo. Ou, ainda mais importante: se Gorbatchov não tivesse iniciado as suas reformas, muito possivelmente qualquer manifestação popular na RDA teria sido esmagada pelas tropas soviéticas e alemãs do Leste. Teria sido uma enorme tragédia.
Trinta anos depois, já podemos responder às perguntas “como” e “porquê” aconteceu a queda do Muro?
Em retrospetiva, é sempre mais fácil perceber os vários fatores. Nos anos 1970 e 1980, era evidente que a economia da Alemanha de Leste não podia competir com a economia da Alemanha Ocidental, mesmo que os residentes da RDA vivessem melhor do que os da Polónia, por exemplo. Havia muitos problemas económicos. Toda a gente tinha consciência disso, mas ninguém imaginava possíveis os acontecimentos subsequentes.
Por outro lado, havia muitos dissidentes, corajosos e admiráveis, que desafiaram o governo. Eram, porém, um grupo muito, muito pequeno de pessoas. Não tinham qualquer possibilidade de impor mudanças. Eles protestavam e depois a reação habitual era: se fossem jovens estudantes, perdiam o lugar nas universidades; se fossem trabalhadores, perdiam os empregos. Os mais ativos acabavam na prisão ou eram expulsos do país.
A economia foi um fator importante. Os dissidentes foram outro fator. Mas a realidade é que quem realmente mudou tudo foi Gorbatchov. Porque abriu a possibilidade de reformar o socialismo. Ele apresentou ideias que pareciam atraentes, porque inicialmente pareciam apenas reformas económicas, e com isso encorajou muitas elites comunistas em todo o bloco soviético.
Muitas pessoas, naquela época, olharam para Gorbatchov como a esperança de que o comunismo poderia ser revitalizado. Não nos podemos esquecer que eram as elites quem detinha o poder. Elas controlavam tudo, e não abandonariam o poder voluntariamente, só porque as pessoas protestavam nas ruas. No entanto, Gorbatchov fez com que as elites se questionassem a si próprias.
Muita gente que eu conhecia começou a interrogar-se: será que estas mudanças [na URSS] resultarão também no nosso país? E também perguntavam: Se as pessoas continuarem a protestar, poderemos nós ripostar e correr o risco de uma guerra civil? Isto foi em 1988-1989. Ninguém tinha respostas. Nem sequer Gorbatchov.
Na RDA, algumas pessoas no regime resistiam e opunham-se a mudanças. “As reformas de Gorbatchov não se aplicam a nós”, diziam. Muitos dos que pertenciam às elites, ou eram quadros médios do partido e até agentes da polícia secreta reagiram indignados à decisão do governo de não empreender reformas. Mas o acontecimento que seria crucial foi a abertura do Muro de Berlim.

1961: Uma funcionária dos correios recolhe a correspondência em Karl-Marx-Allee. Caixas postais públicas como esta eram um dos locais favoritos da polícia secreta comunista, que furtivamente aqui tirava fotografias para controlar o que era enviado e para quem
© Gyula Nagy | Fortepan | RFL
Podemos situar isso no tempo?
Isto começou, de certa maneira, em agosto de 1989, porque algumas pessoas na RDA perceberam que, se fossem passar férias à Checoslováquia ou à Hungria, talvez pudessem encontrar meios de entrar no Ocidente. Na Hungria, onde já estavam em marcha reformas significativas, as autoridades decidiram não mais controlar a fronteira.
Porquê?
Porque as pessoas na Hungria tinham perdido a confiança no seu governo e muitos reformistas já estavam no poder, depois de eleições relativamente abertas. Esses novos líderes perguntavam: por que havemos de nos preocupar com os alemães do Leste?
Sem medirem as consequências – toda a gente ignorava as consequências! –, no verão de 1989, decidiram, pura e simplesmente, que os guardas fronteiriços deixariam de disparar sobre quem tentasse ir para o Oeste.
Na Alemanha de Leste, ansiosas por partir, milhares de pessoas começaram a passar férias em países como a Hungria. Mas, muitos milhares de outras decidiram ficar no seu país e lutar por reformas.
Em outubro de 1989, começaram manifestações na RDA. De início, a polícia fazia detenções, só que os manifestantes eram cada vez mais que se tornou impossível deter toda a gente. Todas as segundas-feiras as pessoas saíam à rua e protestavam contra o governo.
Outubro de 1989 foi quando o professor voltou a Berlim Leste…
Sim, quando aqui cheguei, havia manifestações por toda parte. Parecia que se instalara o caos. Mas, mesmo nesta altura, ninguém que eu conhecia, dentro e fora do partido, imaginava que o seu país estaria prestes a desaparecer. E muito menos ninguém imaginava que haveria reunificação das duas Alemanhas. As pessoas na RDA não tinham interesse na reunificação. Nem os alemães na RFA.
Não?
Não, porque ninguém imaginava, antes da queda do Muro, que a reunificação fosse possível. Sei isso porque entrevistei muitos alemães na RFA. Quando lhes perguntava quais as possibilidades de reunificação, eles respondiam-me: “Seria bom, mas isso vai demorar muito, muito tempo. Não temos planos para isso.” No entanto, à medida que iam chegando à Alemanha Ocidental mais e mais pessoas do Leste, os responsáveis na RFA ficaram com um problema e interrogaram-se: “O que vamos fazer com tanta gente?”.
Os alemães do Leste não pensavam ainda em reunificação. Só queriam mudar-se para o Oeste. Isso deixou o governo em Bona muito confuso. Nesta altura, já admitia a ideia de reunificação, mas a decisão foi: “Temos de abrandar este processo. Porque é demasiado complicado.”
Não nos podemos esquecer que, em outubro de 1989, ainda havia a possibilidade de uma ação militar da União Soviética na RDA. Havia pessoas em Berlim Leste e em Moscovo que queriam que os soviéticos interviessem e que as tropas da Alemanha de Leste lutassem contra o seu próprio povo.
A maior preocupação na RFA era evitar tudo o que pudesse gerar violência. Só que, em Moscovo, Gorbatchov já tinha decidido que a URSS não interviria.
Gorbatchov terá dito nessa altura aos líderes da RDA que eles tinham de escolher entre permanecer no passado ou avançar para o futuro…
…. sim, isso foi em outubro de 1989, e os líderes da Alemanha de Leste ficaram furiosos. Gorbatchov foi assistir às comemorações do 40º aniversário da fundação da RDA e disse a Erich Honecker, na altura o líder do Partido [da Unidade Socialista, SED]: “A História castigará aqueles que se atrasarem”. Ou seja, se não aceitarem reformas agora, vão ter sarilhos. Só que este aviso ainda deixou o governo em Berlim Leste mais determinado em recusar mudanças.
É claro que nada disto era importante. O episódio crucial foi a abertura do Muro de Berlim. Isso mudou tudo! A pessoa responsável pela abertura acidental do Muro foi um tipo chamado Günter Schabowski [1929-2015]. E eu conheci-o pessoalmente.

Agosto de 1961: Separadas por arame farpado, duas mulheres conversam em Berlim Leste
© Patrice Habans | Paris Match | Getty Images | The New York Times
Conte-nos como o conheceu…
No Politburo do partido, ele era um tipo com uma certa importância, embora não tanto como a de Erik Honecker. Era esperto e procurava uma chance de subir na hierarquia. Quando começaram as manifestações em Berlim Leste, em outubro de 1989, Günter Schabowski foi um dia discursar à varanda do Comité Central [de que era o porta-voz]. Prometeu que seria um grande reformador, mas os manifestantes que o ouviam basicamente riram-se dele….
No final de outubro, graças aos meus contactos na cidade, tive oportunidade de me encontrar com Schabowski. Fui ter com ele à sede do Comité Central e, misteriosamente, também apareceu por lá o embaixador dos Estados Unidos. Não sei como… Naquele encontro, Schabowski revelou-se tão orgulhoso de si mesmo, dizendo que amava Gorbatchov, que iria reformar a Alemanha de Leste e que tudo ficaria melhor. Era tudo fanfarronice.
Quando eu e o embaixador descíamos a escadas, já de saída, aproximou-se de nós o assistente pessoal de Schabowski. Abraçou-nos e murmurou: “Esta gente não faz a mínima ideia do que se está a passar lá fora.”
O governo [de Egon Krenz, que sucedeu a Honecker na liderança do partido] estava, naquela altura, a preparar legislação que facilitasse a concessão de mais vistos para entrada em Berlim Ocidental. O objetivo principal era estancar o êxodo através da Hungria. Ainda não havia bem um plano concreto. Era apenas uma ideia.
Na tarde de 9 de novembro de 1989, uma semana e meia depois do nosso encontro, Schabowski deu uma conferência de imprensa [onde estavam presentes vários media internacionais, para ler um decreto que recebera de Krenz, autorizando formalmente que os alemães do Leste se deslocassem “sem condições prévias” à RFA]. Um jornalista [Peter Brinkmann, do jornal Bild, interrompeu a leitura e] perguntou quando é que a nova lei entraria em vigor. Schabowski, todo ufano, respondeu: “Imediatamente, sem demora!”
E, imediatamente, muitos acorreram ao Muro, concentrando-se no posto fronteiriço que separava Berlim Oriental e Berlim Ocidental. Perplexos, desorientados, os guardas não sabiam como agir. “Schabowski consentiu e nós queremos ir para Berlim Ocidental”, insistiam as pessoas. Os guardas cederam: “OK, se é isto o que os líderes querem, então passem”. O que, inicialmente, era um pequeno grupo, tornou-se num ápice uma enorme multidão. E foram eles que abriram o Muro de Berlim.
[Günter Schabowski perdeu o cargo e também a casa em Waldsiedlung (Colónia do Bosque), espécie de condomínio de 23 moradias unifamiliares, onde, em 1958, Honecker mandara erguer um muro de 5 km de diâmetro e dois metros de altura, com torres de vigia operando 24h por dia.
Em 1977, Schabowski foi condenado a três anos de prisão (só cumpriu um), por ter participado numa outra conferência, a que autorizou a polícia fronteiriça a disparar sobre os cidadãos que procuravam fugir do país. Foi o único dirigente que reconheceu a sua culpa e pediu perdão aos familiares das vítimas: “Como protagonista dessa visão do mundo, sinto-me envergonhado e arrependido.”]

1962: Crianças fingindo que estão a construir um muro em Berlim Ocidental
© Raymond Depardon | Magnum Photos | The New York Times
Quando o professor ouviu a notícia da queda do Muro, qual foi a sua reação?
Fiquei totalmente em estado de choque. Um escritor famoso da Alemanha Ocidental, Peter Schneider, que na altura dava aulas nos EUA e escreveu um romance sobre o Muro de Berlim [O Saltador do Muro, Ed. Cotovia], perguntou-me: ‘Jim, o que achas disto? O que significa isto?’
E eu disse: “Não faço a mínima ideia!” [Terá sido esse também o sentimento de Peter Wyden, jornalista americano nascido em Berlim, correspondente da Newsweek, quando, no final de 1989, terminou Wall: The inside Story of Divided Berlin, uma obra de 762 páginas que já era obsoleta antes de chegar às livrarias.]
A realidade é que ninguém sabia. A única certeza, naquele momento, era a de que quem vivia em Berlim Leste podia agora entrar livremente em Berlim Ocidental. As pessoas ficaram a saber – e precisaram de saber – que não seriam castigadas se atravessassem a fronteira.
Não se pode dizer que a Alemanha de Leste mergulhou no caos, mas tornou-se num país quase sem regras. Quando voltei em 1990, para as primeiras eleições, em março, as pessoas estacionavam onde lhes apetecia. No meio da estrada. Em cima dos passeios. Não havia polícia nas ruas… Tinham ido para casa. Uma coisa é certa, antes de o Muro cair, a Stasi já havia decidido que não mais iria disparar sobre quem queria partir para o outro lado.
Porquê?
Porque muitos dos manifestantes que estavam a ser detidos eram filhos dos líderes do país. Isto tornou-se um problema grave. “Queremos ver os nossos filhos na prisão?” A resposta era fácil: “Não, não queremos, porque amamos os nossos filhos, mesmo que eles protestem contra o nosso governo.” E isto, entre setembro e outubro, foi extremamente importante.
Como é que sabe que os filhos das elites protestavam?
Pessoas do governo em Berlim Leste disseram-me que os filhos de importantes dirigentes tinham sido detidos durante a visita de Gorbatchov, em 7 de outubro de 1989, no 40º aniversário da fundação da RDA. Quando esses jovens e centenas de outros foram capturados pela polícia, os agentes não sabiam como agir – eram muitos. Colocaram-nos num armazém. Terão sido libertados, dias depois, porque os pais intervieram.
No exército, na polícia secreta, no partido, muitos se interrogaram: “Vale a pena resistir?” Porque, naquela altura, repito, havia gente no Politburo e entre os militares da RDA e da URSS que ponderava usar a força para esmagar as manifestações.
Esta é uma das razões por que pessoas como eu nunca consideraram possível a abertura do Muro de Berlim. Eu achava que os soviéticos iriam usar da força. A Administração americana e o Governo da RFA também receavam isso, porque conduziria a uma guerra civil.
Só que, em vez de guerra civil, houve reunificação.
Sim. Quando se abriu o Muro de Berlim, a primeira pergunta dos alemães do Oeste foi: “O que fazemos com todas estas pessoas? A Constituição obriga-nos a cuidar de todos, porque são alemães.” Depois veio a pergunta seguinte: “Queremos a reunificação de toda a Alemanha?” O problema é que tantas pessoas partiam para Oeste que havia o receio de a RDA perder toda a sua população.
Em novembro de 1989, Helmut Kohl apresentou um plano detalhado para a reunificação, mas esta não seria imediata. Em dezembro, quando se tornou claro que as pessoas dos dois lados do Muro se consideravam um só povo, a RFA começou a tentar controlar todo o processo, de modo a atrasá-lo.
O que se decidiu, então, foi criar um governo provisório na RDA. Em março de 1990, já eu estava de volta à Alemanha, realizaram-se eleições para esse governo. Surpreendentemente, a União Democrata-Cristã [ligada à CDU, de Kohl], que era uma espécie de “partido falso” em Berlim Leste, obteve resultados muito bons, ao contrário dos sociais-democratas.
Nada disto impediu a fuga de pessoas para a RFA e a reunificação teve de ser acelerada, em grande medida porque a moeda da Alemanha de Leste valia muito pouco, enquanto os marcos da Alemanha Ocidental eram muito valiosos na RDA.
As pessoas do Leste dificilmente poderiam comprar o que quer que fosse no Oeste, mas as da RFA podiam comprar tudo o que quisessem na RDA. Foi por isso que a Alemanha Ocidental decidiu permitir, até um certo limite, que os alemães do Leste tivessem acesso a marcos da RFA a uma taxa de 1 para 1. Não havia alternativa, e eu acho que foi uma boa decisão. Foi esta unificação económica que possibilitou a unificação política.
Havia ainda uma questão pendente que seria resolvida depois. A Alemanha, que não ganhou a guerra, continuava a ser um país ocupado. Não só nunca tinha sido assinado um tratado de paz, como quatro potências (EUA, França, Grã-Bretanha e União Soviética) permaneciam forças ocupantes em Berlim. Foi preciso chegar a um acordo entre todos para restaurar a soberania da Alemanha – um processo complicado.

1962: Homenagem, em Berlim Ocidental, a Peter Fechter, baleado por guardas fronteiriços da RDA quando tentou saltar o muro
© Wieczorek | ullstein bild | Getty Images | The New York Times
Neste processo complicado, como é que avalia o julgamento dos antigos dirigentes da RDA, um país onde a Stasi terá tido, entre 1950 e 1989, mais de 90 mil funcionários e cerca de meio milhão de “informadores” – ou seja, “um espião por casa 66 cidadãos”?
Depois da reunificação, a grande questão que se colocou na Alemanha, tal como em Portugal, em Espanha, na Grécia ou na América Latina, foi: “O que fazer com os ditadores?”
O que a RFA decidiu foi julgar seletivamente os envolvidos em atos de violência. Achei isso muito problemático. Não quiseram julgar informadores ou membros do partido, mas os que participaram nos assassínios das pessoas que tentavam escalar o muro.
Houve julgamentos de guardas fronteiriços e de alguns dirigentes do Politburo – os responsáveis pelos homicídios. Aplicou-se ao Leste a Lei Básica do Oeste. Muitos desses guardas foram punidos, apesar de estarem a apenas cumprir ordens. Quase todos os membros do Politburo também foram condenados em processos criminais, mas as suas penas não foram pesadas.
As centenas de milhares pessoas que foram informadores, altos funcionários do partido, agentes secretos tiveram um processo diferente, centrado na Função Pública. Na Alemanha, a Função Pública inclui todo o tipo de pessoas: militares, professores, cobradores de impostos, etc… Para este grupo enorme foram criadas comissões que avaliaram caso a caso se estas pessoas poderiam continuar a exercer as suas profissões. Foi uma tragédia para muitos dos despedidos.
Pior: os empregos perdidos no Leste foram depois ocupados por alemães que chegaram do Oeste e se aproveitaram da má sorte dos que foram castigados.
Não diria que tudo foi errado. Muitas coisas tinham mesmo de ser feitas. Lidar com o passado é muito complicado. A realidade é que a maneira como se procedeu na Alemanha afastou muitas pessoas.
Isso nota-se 30 anos depois. As narrativas históricas parecem estar a mudar. Enquanto Joachim Gauck, que foi presidente entre 2012 e 2017, dizia que “as massas na Alemanha de Leste [onde foi um destacado dissidente] se ergueram contra o opressor no seu desejo de liberdade”, o historiador Ilko-Sascha Kowalczuk disse agora, numa recente entrevista, que a revolução foi obra de “um pequeno grupo de ativistas” e não da maioria dos cidadãos, que “ficaram atrás das cortinas, à espera de ver o que iria acontecer”.
É mais complexo do que isso. Eu conheço bem, respeito e admiro muito Joachim Gauck. Os dissidentes desempenharam papéis heróicos. Foram muito corajosos. Mas não fizeram a revolução. E as massas nas ruas também não fizeram a revolução.
Houve um fator muito mais decisivo: as elites perderam a vontade de lutar. Desistiram de usar a força. Neste período, antes da queda do Muro e a reunificação, as elites acreditavam que ainda iriam desempenhar um papel importante na nova Alemanha.
A tragédia – e isto é importante para entender a situação atual – é que, assim que a Alemanha foi reunificada, os dissidentes perderam o interesse. A maioria desapareceu. Ainda hoje, os dissidentes não são levados a sério. Muitos deles não queriam sequer a unificação. A alguns só interessava reformar o socialismo – não abandonar o socialismo. Eram idealistas.
O novo governo alemão também não se interessou por eles. Lembro-me de, naquela altura, perguntar a razão de haver tão poucos alemães de Leste entre as mais destacadas figuras políticas do país reunificado. Alguns diziam-me: “Então, e Angela Merkel? E Joachim Gauck?” Sim eles são importantíssimos. Mas, a verdade é que são uma pequeníssima minoria. A maioria dos cargos principais eram e continuam ocupados por alemães ocidentais. Há muita amargura e ressentimento no Leste.

1963: Reencontro natalício de dois irmãos, quando, pela primeira vez desde a construção do muro, os habitantes de Berlim Ocidental foram autorizados a atravessar a fronteira para reverem familiares em Berlim Leste
© Ian Berry | Magnum Photos | The New York Times
Isso também se vê numa sondagem do Allensbach Institute divulgada em julho deste ano. Inquiridos sobre se a democracia é a melhor forma de governo, só 31% dos que vivem no Leste concordaram, contra 72% dos que vivem no Oeste. Em termos identitários, a fractura parece igualmente profunda: 71% dos alemães ocidentais descreveram-se simplesmente como “alemães; só 44% na antiga RDA se assumiu desse modo (47% dizem-se “alemães do Leste”). Será que a Alemanha continua a ser dois países, como perguntava recentemente o jornal The Washington Post?
Não iria tão longe. Acho que tudo isto é indicativo de que, quando a vida é mais dura numa parte do que noutra do país, a tendência das pessoas é identificarem-se de forma diferente. No caso do Leste, as pessoas queixam-se: “Nós somos diferentes, e estamos lixados porque vocês [do Oeste] se aproveitaram de nós”.
Nos anos 1990, o professor já havia constatado que os alemães do Leste se sentiam tratados pelos do Oeste como “cidadãos de segunda classe”. Esse sentimento persiste?
Sim, continua presente, mas por razões diferentes. Nos anos 1990, havia uma grande esperança de que a situação iria melhorar. E a vida melhorou, de certo modo, quando se pôde trocar um marco por outro marco, comprar um Mercedes ou uma boa casa…
Ao longo dos anos, porém, é cada vez mais incontestável que a Alemanha de Leste pagou o preço mais elevado pela reunificação. Hoje, é na Alemanha de Leste que se vê maior desemprego. É onde se vê os mais velhos, os que não tiveram possibilidade de se mudar para a RFA em 1989, em dificuldades porque as pensões de reforma não chegam para sobreviver. É também onde vivem os que não conseguiram educação superior e, portanto, não encontraram empregos no Oeste.
Muitos reconhecem que “a principal razão para a malaise atual” foi o êxodo de mais de 1,9 milhões de alemães de Leste. Filhos e netos, que eram os mais jovens e cultos, partiram e não voltaram. Um responsável social-democrata na Saxónia dizia recentemente ao diário Financial Times: “Quando perguntamos aos alemães no Oeste o que mudou para eles, respondem-nos: ‘Nada’; quando perguntamos aos do Leste, respondem-nos: ‘Tudo’”…
…sim, é verdade. Mas este não é um problema só da ex-RDA, mas também de outros antigos países comunistas. Por exemplo, muitos polacos emigraram para Inglaterra, Irlanda ou Escócia em busca de empregos. Deixaram para trás os que tinham menos educação.
A Polónia, por seu turno, criou imensas oportunidades para os ucranianos [que, a partir dos anos 1990, também começaram a emigrar para Portugal, onde hoje são a terceira maior comunidade estrageira – não apenas antigos camponeses e operários, mas também engenheiros, médicos, músicos, professores ou ex-militares].
Há, contudo, uma distinção importante a fazer: muitos dos que hoje protestam e apoiam a extrema-direita na Alemanha de Leste ainda não tinham nascido quando o Muro de Berlim caiu, em 1989, e se deu a reunificação, em 1990. Desconhecem tudo o que aconteceu. E nada desse tempo lhes interessa.
Para as pessoas sem emprego ou educação, é gratificante, psicologicamente, acreditar no argumento de que “isto é tudo culpa da Alemanha Ocidental”. Talvez as suas vidas fossem melhores quando o Leste era comunista. Muitos dizem disso. A vida não era grande coisa na RDA, mas a comida era subsidiada, havia assistência médica…
O que hoje interessa aos líderes da extrema-direita que mobilizam manifestações não é a realidade, mas a metodologia. É muito tentador quando dizem: “Não somos alemães; somos alemães do Leste.” Ou quando dizem: “Nós somos os verdadeiros alemães, porque lutamos pela verdadeira Alemanha, e esta não é a que existe no Oeste.” É uma psicologia que atrai as pessoas que procuram um sentido para circunstâncias complexas.

1988: Um jogo de raquetes num dos principais bairros de Berlim Leste – Weissensee – no ano que precedeu a queda do muro
© Nelly Rau-Häring | Hatje Cantz | creativeboom.com
No entanto, a maior parte dos líderes da Alternativa para a Alemanha (AfD, extrema-direita) são do Oeste. São eles que se aproveitam do sentimento de abandono e nostalgia no Leste, que exacerbam o medo da imigração, da globalização…
… os que estão a tentar aproveitar-se da situação fazem-no porque ambicionam o poder. Querem influenciar a política. Esta gente é extremamente egoísta. Quando olham para a Alemanha do Leste, veem uma oportunidade. No caso das pessoas na antiga RDA, não é bem ordem o que elas desejam. O que querem é um mundo sem mais mudanças. E a mudança que mais temem é a imigração.
A verdade, como se vê noutros países europeus, é que não precisamos de imigrantes para odiar os imigrantes. Há pessoas que nunca viram um refugiado, um muçulmano, mas dizem: “São eles os causadores dos meus problemas!” Ou então: “É a UE a causa dos meus problemas!”
Se somos jovens, temos um emprego mau, não temos educação e temos medo do futuro, é fácil sentirmo-nos atraídos por quem nos diz: “Não se preocupe, vamos resolver tudo e vocês ficarão bem.” As pessoas no Leste não foram, necessariamente, deixadas para trás, mas sentem-se assim.
Parece haver um sentimento de oportunidade perdida, não apenas na antiga RDA, mas também em países como a Hungria ou a Polónia que pertenceram igualmente ao bloco soviético, mas perderam o entusiasmo pela União Europeia e agora são governados por partidos de extrema-direita…
… bem, uma das razões para o que vemos hoje é que, de início, havia demasiado idealismo. As expectativas das pessoas eram elevadíssimas. E, além disso, algumas decisões que foram tomadas tiveram um custo muito elevado. Uma delas foi a privatização. Assim que vieram as pessoas do Oeste encorajar que fossem privatizadas empresas públicas, centenas de milhares de pessoas perderam os seus empregos. O Leste tornou-se, para o Oeste, uma oportunidade para ter matérias-primas e mão-de-obra baratas.
As oportunidades perdidas foram os erros cometidos no processo de democratização plena destes países. Também se calculou mal quanto tempo seria necessário para as condições de vida melhorarem.
Os Estados Unidos, por seu turno, são igualmente responsáveis pela situação atual. O seu maior erro foi a insistência na expansão da NATO. Muitos dos antigos países comunistas queriam fazer parte da Aliança Atlântica, por acreditarem que os EUA garantiriam a sua segurança. Para a Rússia, isso foi um gesto totalmente hostil. Hoje, enfrentamos um problema, porque os russos estão a manipular líderes e informação na Europa.

5 de Novembro 1989: Uma longa fila de carros da RDA na fronteira da Alemanha com a Checoslováquia, que seria aberta cinco dias depois
© Klaus Feix | EPA | euroactiv.com
A Rússia deveria ter sido incluída no “projeto europeu”?
Acho que a Rússia deveria ter tido uma maior participação. Um dos problemas do Ocidente, e não apenas dos EUA, é que na Europa Ocidental havia um sentimento de triunfalismo. Ganhámos a guerra. Democracia e capitalismo estão em marcha. Somos os vencedores e toda a gente nos deveria imitar.
Isso conduziu a um excesso de confiança e a políticas erradas. Havia também o sentimento de fim da História e de que tudo iria melhorar. Vemos agora que estavam criadas as condições para a desilusão, a frustração por promessas não cumpridas, a hostilidade e a fúria.
Isto ajuda a perceber por que é que, hoje em dia, assistimos na Europa de Leste ao crescimento do populismo. E este populismo no Leste, em particular na Hungria e na Polónia, não é bem como o do Ocidente, porque tem maiores implicações proletárias.
Como é que avalia o legado de Angela Merkel, a chanceler que veio do Leste e que se prepara para sair de cena após 25 anos como chanceler da Alemanha?
Angela Merkel é uma pessoa extraordinária! Liderou a Alemanha em tempos difíceis. Foi também muito corajosa na sua decisão de acolher um milhão de imigrantes. Muitos consideram que foi, talvez, um erro abrir as portas a tanta gente. Mas eu acho que foi uma decisão moral.
A Europa precisa destes exemplos. E a Alemanha tem sido uma grande força moral na Europa graças a Merkel. Não sei o que vai acontecer depois dela. Mas sei que tenho por ela grande estima.
Poderia Angela Merkel ter feito mais pela Alemanha de Leste ou não?
Acho que ela fez o que podia, oferecendo apoio financeiro ao Leste. Mas a verdade é que tem sido extremamente difícil reconstruir o país. É preciso ainda muito tempo. Os alemães do Oeste não podiam dizer aos do Leste para ficarem na RDA. Eu não critico Angela Merkel.
Também gosto de Joachim Gauck, com quem tive muitas conversas sobre filosofia. É um homem muito íntegro e foi um bom presidente. A Alemanha teve sorte em ter estes líderes do Leste.
Olhando para trás, vemos que, primeiro, toda a gente se surpreendeu; depois, todos eram muito idealistas; a seguir, ninguém sabia o que fazer. Hoje, a democracia liberal está em risco no Leste. Parece-me uma sequência lógica.

Novembro de 1989: Alemães de Berlim Ocidental escalam o muro para celebrar a queda da última cortina de ferro, perante o olhar impávido de soldados da RDA
© Hesse | ulstein bild | Getty Images | National Geographic
Em 1990, num ensaio que escreveu para o World Policy Journal e a que deu o título de “Um Obituário para o Muro de Berlim”, o professor perguntava: “Que epitáfio vão os historiadores escrever para o Muro de Berlim, daqui a dez ou vinte anos, quando refletirem sobre a sua queda? Será o fim do Muro (…) a prova do ponto de viragem por que todos ansiávamos desde que a cidade de Berlim foi brutalmente dividida (…) ou irão os historiadores referir-se a este período em que agora entramos como um tempo de indecisão fatídica e oportunidades perdidas?” Encontrou o epitáfio adequado?
Bem, o epitáfio acabou por ser muito mais complicado do que alguma vez podíamos imaginar. A queda do Muro expôs a nossa incapacidade de prever o que aconteceu, expôs a nossa falta de humildade e expôs os nossos limites em controlar desfechos políticos.
Gostaria de sublinhar isto, para que não haja dúvidas: a queda do Muro de Berlim foi um grande e glorioso acontecimento. Atravessei-o muitas, muitas vezes. Sei como ele era terrível.
A ordem europeia baseava-se no Muro de Berlim. Até 1989, esta ordem assentava no facto de que a última incerteza das relações Leste-Oeste seria resolvida com a construção do Muro. Porque, até então, os alemães de Leste partiam em massa para Berlim ocidental, de carro, de comboio, de avião…
Havia uma enorme tensão entre as duas superpotências no que dizia respeito a Berlim. Era uma situação muito assustadora. Por isso, quando o Muro foi erguido, tudo se estabilizou. Não era bom. Era horrível para as pessoas na Alemanha de Leste. Mas tornou-se a realidade que se julgava possível.
O Muro foi construído com base na ideia de que as duas superpotências tinham de se respeitar mutuamente. Num tempo de relativa estabilidade e imprevisibilidade, o Muro foi possível porque a Alemanha estava dividida. Não foi uma boa solução. O Muro era feio e temível, mas criou estabilidade. E não apenas estabilidade económica, política e militar, mas também uma certa estabilidade psicológica.
Uma das razões por que não foi possível prever a queda do Muro foi porque nas nossas mentes, nas mentes dos decisores políticos, o Muro de Berlim era uma realidade, era o modo em que mundo se organizou.
Quando escrevi o ‘obituário’ do Muro, pouco depois da sua queda, o meu argumento era o de que não se pode imaginar este tipo de transformação sem um impacto a longo prazo na vida das pessoas.
Em 1989, passámos de um mundo simples e bipolar, em que havia o Leste e Oeste, em que, na perspetiva ocidental, nós éramos os bons e eles os maus, para vivermos hoje num mundo muito mais complexo, que nós continuamos a tentar simplificar.
Isso é uma coisa natural, mas o problema é que a simplificação conduz a perigos extraordinários. Olhemos para o Brexit, o exemplo clássico da simplificação total do mundo. Vai causar-nos problemas enormes. Outro exemplo é o populismo, que tudo resume a “nós versus eles”; “caucasianos versus imigrantes”; “cristãos versus muçulmanos”…
Há uma tendência para simplificar tudo, mas o mundo atual é muito mais complicado. O nosso desejo pela simplicidade vai levar-nos a criar novos tipos de muros. Talvez só muros mentais… mas ainda assim muros. E um deles é o muro psicológico que nos separa da Rússia e vai ser tão difícil de desmantelar. Acho que vai ficar de pé durante muito tempo. Talvez o epitáfio para o Muro de Berlim seja este: “Um muro caiu, outros se levantam.”
E, no entanto, o soviético Mikhail Gorbatchov, que muito contribuiu para o colapso do Muro de Berlim, fez tudo para haver uma reconciliação com o Ocidente…
Sim, é uma pena. Hoje, os russos queixam-se de que Gorbatchov perdeu o seu império. Mas ele foi muito corajoso. Queria manter vivo o comunismo, mas era demasiado idealista. O que aconteceu com Gorbatchov tem sido o destino de muitos grandes homens e mulheres na História. São punidos pelas memórias e falsas memórias do passado.
Gorbatchov está a ser castigado, porque as pessoas dizem que ele deveria ter calculado melhor o que podia e não podia acontecer. Isso é ridículo, porque ninguém sabia o que iria acontecer. Foi uma surpresa total. Mas todas as revoluções são uma surpresa.
O comunismo suicidou-se e a democracia liberal corre risco de morte

© Ralph Gatti | AFP | Getty Images | boston.com
O seu livro mais recente, aclamado como “a primeira e mais profunda história política do Partido Comunista”, chama-se Vanguard of the Revolution: The Global Idea of the Communist Party. Quando é que começou a preparar esta obra e porquê?
Desde os meus tempos em Berlim Leste que comecei a interessar-me pelo comunismo. Eu que estudei filosofia e marxismo, perguntava a mim próprio: o que leva pessoas, por natureza, boas a cometer atos terríveis em nome de grande ideais? Os primeiros comunistas no século XIX, como se sabe, eram grandes idealistas. Acreditavam que a História avançaria numa direção de progresso.
Foi nos anos 1990 que comecei a interessar-me a sério pelos partidos comunistas. Por que é atraíam tantas pessoas e porque se mantinham elas fiéis? Apercebi-me de que nunca ninguém escrevera um livro sobre o partido comunista, uma organização com milhões e milhões de membros, que governou um terço do mundo e cujo principal representante era a União Soviética.
Comecei a escrever Vanguard of the Revolution há dez anos. Abrange um período de 150 anos [desde o Manifesto Comunista nos anos 1840 até à dissolução da URSS na década de 1990] e cerca de 40 países. E eu visitei a maioria deles, da Bielorrússia ao Vietname e outros. Eu falo dos partidos comunistas da Europa (infelizmente, não o de Portugal), da URSS, da Jugoslávia, da China, da Coreia do Norte, de Cuba…
Este é um livro sobre a vida e morte de um partido. É, de certo modo, uma espécie de autópsia. Respondo aqui a três perguntas: por que nasceu este partido, por que durou tanto tempo e por que morreu? O que digo aos meu alunos é que, hoje, também podemos fazer estas três perguntas sobre a democracia liberal. Porque é que formas políticas de governo não duram para sempre? Por que devemos assumir hoje que as democracias liberais existirão amanhã? É triste, mas é a realidade.

Berlim 1958: Uma estátua de Estaline, em bronze e com 5 metros de altura, nua rua que então se chamava Stalinallee (agora Karl-Marx-Allee). No âmbito de uma campanha de desestalinização soviética, a estátua foi removida e quebrada em pedaços durante uma operação furtiva pelas autoridades comunistas da RDA em 1961. Uma orelha do ditador foi escondida e agora está em exibição num café nas imediações
© Anna Gereb | Fortepan | RFL
Pode resumir as suas respostas às três perguntas que formulou sobre o partido comunista?
(Risos) Bem, eu escrevi 573 páginas… O Partido Comunista começou por ser um ideal revolucionário num contexto em que pequenos grupos de pessoas estavam dispostas a fazer sacrifícios por uma causa maior. Durou muito tempo por ser uma combinação de idealismo, força e produtividade. Ou seja, se pudermos mostrar às pessoas que as suas vidas melhoram, as pessoas mantêm-se a nosso lado. E morreu porque os líderes perderam completamente o idealismo e perderam a vontade de usar a força.
Já não há partidos comunistas idealistas, produtivos e determinados a usar a força?
Bem, a China e a Coreia do Norte há muito que deixaram de ser regimes de partidos comunistas. Há cerca de duas décadas que a Coreia do Norte mudou a sua Constituição, e já não se descreve como Estado comunista. Hoje, é um regime totalitário e brutal, dirigido por uma família carismática.
No caso da China, nos anos 1990, o partido começou a livrar-se de muitos dos seus princípios e características associados aos antigos ideais comunistas. Basicamente, o Partido Comunista Chinês converteu-se ao capitalismo. Hoje, assenta sobretudo em poder, riqueza e corrupção.
Reparem nos discursos de Xi Jinping, que eu li, e vão ver que ele não é um dirigente brilhante. Os seus discursos parecem legitimar o partido olhando para todo o lado. Ele cita Confúcio, evoca os primórdios da China, fala de comunismo – mas não muito, fala de nacionalismo, fala das ameaças do mundo exterior. Mas isto não é o que os partidos comunistas eram.
E Cuba?
Cuba é o exemplo de um país onde ainda há comunistas, mas toda a gente concorda que já não há idealismo e que a experiência falhou. Ainda existe uma atitude romântica para com Fidel Castro [1926-2016], mas isso tem a mais a ver com o passado, como é que Cuba se libertou do império colonial e, sobretudo, com a hostilidade para com os Estados Unidos.
Um dos maiores erros que os EUA continuam a cometer é não estabelecer relações diplomáticas plenas com Cuba. É um erro gigante. Porque se um governante em Cuba quiser justificar as despesas com a Defesa só tem de dizer: “Os EUA ameaçam-nos.” Se a economia está mal, a justificação é: “A culpa é dos EUA.”
Se houvesse relações entre Washington e Havana, tudo o que tem a ver com socialismo e o comunismo se desmoronaria, porque as pessoas anseiam por se juntar às suas famílias [nos EUA] – como aconteceu, de certa maneira, na Alemanha de Leste.
O que mantém a ilha de Cuba unida são os dirigentes do partido e os militares. É difícil dizer que Cuba ainda é um país comunista. Bem, Fidel Castro nunca gostou do Partido Comunista. Fidel Castro só se importava com ele mesmo. O partido apenas servia para o apoiar. Quando ele chegou ao poder, nem sequer era comunista.
O que eu digo no meu livro é: não assumam que por alguém dizer que é comunista, isso seja verdade. Olhem para a sua história, para as suas suas ações, para o que eram e o que são…
Hoje, o que eu vejo é que os partidos comunistas são apenas organizações ligadas a sindicatos, que são capazes de reivindicar melhores salários e melhores condições sociais e às vezes são suficientemente influentes para integrarem governos de coligação.

1973: Uma estátua de Lenine com 19 metros de altura adornava uma das praças de Berlim. Em 1991, o monumento, de granito rosa, foi demolido, cortado em pedaços e enterrado numa floresta.A cabeça da estátua seria desenterrada em 2015 para ser exposta num museu da cidade
© Vladimir Musaelyan | TASS | RFL
Quer dizer que o partido comunista foi morto pelo partido comunista?
Sim, o partido comunista suicidou-se. Queria permanecer no poder mas, sem querer, acabou por se matar.
Das três fases que refere para o comunismo, em qual delas está a democracia?
Creio que estamos na última fase da democracia liberal. Isto não quer dizer que a democracia irá desaparecer. Mas acho que algumas das suas características estão em perigo. Tribunais fortes, um sólido estado de direito, liberdade de imprensa, direitos humanos, tratar todas as pessoas como seres iguais… tudo isto está em risco, em particular nos Estados Unidos.
E também nos antigos Estados comunistas da Europa de Leste….
… sim, claro. E também nos países da Europa Ocidental! É muito triste. Talvez a democracia liberal recupere. Para isso é necessário haver partidos e políticos dispostos a aceitar compromissos e a falar uns com os outros.
O “pai” da democracia liberal foi [o filósofo britânico] John Stuart Mill [1806–1873]. O que ele dizia é que os partidos são complicados. Temos, por isso, de reconhecer que às vezes temos razão, outras vezes não, e outras ainda mudamos de opinião. Temos de ser capazes de discordar no que concerne a questões complicadas. O mundo não é simples, mas complicado.
Eu agora escrevo imenso sobre populismo e os intelectuais da nova direita. Os populistas não são fascistas. Surgem em democracias e querem livrar-se do liberalismo, por causa da sua associação com a igualdade de direitos e a tolerância.
Os populistas querem eleições só para chegar ao poder, mas sem valores. Acabarão provavelmente por renegar a democracia. Há outras formas misteriosas de governo que estão a emergir: as que controlam o acesso à Internet. Isto preocupa-me. Quando falo com os meus alunos sobre isto, termino sempre as aulas com uma nota de esperança. Porque temos de ser otimistas.
Eu ensino em Notre Dame, que é uma universidade católica. Acreditamos que todos os seres humanos têm dignidade. Não podemos transigir neste aspeto. O problema é que, nos EUA, há políticos que não aceitam isto. Dizem que só alguns americanos têm dignidade. Isto é assustador.
Quando aceitarmos, como quer a extrema-direita, não só na América como na Europa, que só o nosso grupo tem direitos, tudo estará perdido. E, tal como os comunistas, também nós, sem querer, estaremos a caminho do suicídio.

A. James McAdams é autor de livros de referência como East Germany and Detente; Germany Divided: from the Wall to Reunification: Judging the Past in Unified Germany, Transitional Justice and Rule of Law in New Democracies; Crisis of Modern Times. A sua obra mais recente, que tem igualmente merecido críticas elogiosas, é Vanguard of the Revolution: The Global Idea of the Communist Party
© A. James McAdams
Esta entrevista foi publicada, em versão mais reduzida, numa edição especial da revista SÁBADO, em Novembro de 2019 | A shorter version of this interview was published in a special edition of the Portuguese news magazine SÁBADO, in November 2019