Cinco anos após o genocídio cometido pelo “estado islâmico”, a segunda maior minoria religiosa do Iraque e uma das mais perseguidas ainda não encontrou justiça e paz. Mas encontrou heróis. Como Pari Ibrahim, fundadora e directora executiva da Free Yezidi Foundation. Esta é a sua história. (Ler mais | Read more…)

Pari Ibrahim, fundadora e directora executiva da Free Yezidi Foundation, com crianças do campo de refugiados de Khanke, no Curdistão iraquiano
© Free Yezidi Foundation
Na madrugada de 3 de agosto de 2014, a vida de Pari Ibrahim mudou radicalmente. “Acordei com vozes agitadas à minha volta e perguntei aos meus pais: ‘O que se passa?’”. Eles responderam: “O estado islâmico entrou em Sinjar e está a matar os homens e a raptar mulheres e crianças. O estado islâmico está a cometer um genocídio e ninguém nos ajuda.”
Em Sinjar, no norte do Iraque, porque “o estado islâmico ameaça matar quem não se converter ao Islão”, os familiares de Pari e milhares de outros yazidis fugiam para o monte sagrado com o mesmo nome da cidade situada entre os rios Tigre e Eufrates.
“Fiz uma busca frenética por notícias online e não havia nada sobre o meu povo, que agonizava sem alimentos nem água, esperando lentamente pela morte”, conta-me Pari Ibrahim numa entrevista por e-mail.
“As nossas mulheres e meninas estavam a ser violadas e torturadas. Eu tinha de fazer alguma coisa.” E foi assim que, aos 24 anos, ela interrompeu a licenciatura em Direito na Universidade de Amesterdão e abandonou o emprego numa biblioteca para criar a Free Yezidi Foundation (FYF), organização de ajuda aos “mais vulneráveis”.

Yezidis forçados a fugir das suas casas pelo Daesh em Sinjar procuram refúgio na fronteira com a Síria, em 2014
© Rodi Said | Reuters | The Irish Times
Pari não se esquece que, em 1991, também ela, com apenas 2 anos, os seus três irmãos, a mãe e o pai tiveram de fugir para as montanhas da antiga Mesopotâmia, quando o ditador Saddam Hussein esmagou uma rebelião curda numa ofensiva que causou cerca de 20 mil mortos.
“Foi uma caminhada cansativa que parecia sem fim”, recorda. “Estava muito frio. Começou a cair neve e a chover torrencialmente. Não tínhamos nada. Os meus pais deixaram tudo para trás, para poderem carregar ao colo os filhos, demasiado frágeis para andarem sozinhos. Muita gente morreu.”
“Nós conseguimos chegar a Silopi, um campo de refugiados na Turquia, onde ficámos um ano, até sermos chamados para iniciar nova vida na Holanda, como refugiados políticos.”
Em 2014, desesperada “porque ninguém levantava um dedo” para salvar um povo que se considera o mais antigo do mundo, Pari Ibrahim organizou manifestações em Haia, na Holanda, e em Bruxelas, na Bélgica, em frente do Parlamento Europeu.
“Comecei a aparecer nas televisões. Iniciei [nas redes sociais] a hashtag #StopYezidiGenocide. Fui falar à ONU em Genebra e, depois disso, começaram a chegar fundos. Mas só quando o presidente Barack Obama decidiu que os EUA iriam lançar ataques aéreos contra o estado islâmico, é que sentimos, finalmente, que as nossas vozes tinham sido ouvidas.”

Pari Ibrahim, em 2016, na cidade de Sinjar, destruída pelo Daesh
© Free Yezidi Foundation
Sinjar seria libertada por soldados curdos e voluntários yazidis em 13 de Novembro de 2015, mas as acções do Daesh ainda hoje atormentam Pari e outros yazidis.
“Na minha família, 19 mulheres e meninas foram raptadas. Duas conseguiram fugir, mas 17 continuam desaparecidas. Não temos esperança de as reencontrar.”
“Vinte e um homens foram mortos. Estarão em valas comuns. Foram as duas sobreviventes que revelaram como os homens e as mulheres mais velhas foram enterrados vivos.”
“Foram elas que nos disseram que tinham sido torturadas e violadas. São memórias indescritíveis de quem perdeu tudo. Nós, como comunidade, perdemos tudo.”

Uma família yazidi que fugiu da violência em Sinjar, abriga-se uma escola na região autónoma curda de Dohuk, no norte do Iraque, em Agosto de 2014
© Safin Hamed | AFP | Getty Images | thestar.com
“Temos agora a certeza de que o estado islâmico cometeu um genocídio, já reconhecido pelo Departamento de Estado americano, pelo Museu do Holocausto dos EUA, pela Comissão da Nações Unidas para a Síria, pelo Parlamento Europeu e por outras instituições e organismos internacionais”, realça Pari.
Até 20 de julho deste ano, as estatísticas são estas: dos 550 mil yazidis que viviam no Iraque, 360 mil são agora deslocados internos. O número de órfãos totaliza 2745. Foram encontradas 80 valas comuns, além de dezenas de outras sepulturas individuais.
Pelo menos 68 templos foram destruídos. Mais de mil yazidis foram obrigados a emigrar. Calcula-se em 6417 o número de raptados. Foram libertados 3487, mas 2930 continuam cativos ou desaparecidos.
“A vida dos deslocados internos é muito dura”, atesta Pari, cuja fundação dá apoio – terapêutico, educacional e profissional – a mulheres e crianças no campo de Xanque, província curda de Duhok, onde cerca de 16 mil residentes coexistem com outros 12 mil que habitam tendas e edifícios improvisados e inacabados nas imediações.
“É extremamente difícil viver numa tenda. Ao fim de cinco anos, as pessoas perdem a esperança. Os psicólogos na FYF alertam-nos que cada vez mais pessoas têm pensamentos suicidas. E a realidade é que há cada vez mais suicídios.”

Mulheres yazidis choram a morte dos seus entes queridos, numa cerimónia que marcou a abertura da primeira vala comum das vítimas do Daesh em Kojo, Sinjar, Curdistão iraquiano
© Alessio Mamo | Al Jazeera
“O genocídio ainda não acabou”, alerta Pari. “Por isso, insistimos na necessidade de uma intervenção, para sabermos onde estão as mulheres e as crianças desaparecidas.”
“A comunidade internacional falhou totalmente ao não perceber o carácter do estado islâmico. Não soube prevenir o seu aparecimento e, do ponto de vista da justiça e responsabilidade, não sabe o que fazer desde a queda do autoproclamado califado.”
“É difícil entender o objectivo de tratados e convenções sobre genocídio, crimes contra a humanidade e outras atrocidades se as potências mundiais não agem quando esses crimes são cometidos em flagrante”, critica Pari.
“Agora que terminou com êxito a campanha militar para, pelo menos, privar o estado islâmico de território, muitos pensam que o trabalho está feito. Isso é errado. Ainda há dezenas de milhares de membros do Daesh espalhados pela Síria e pelo Iraque. E há muitos na Europa.”
“Os sobreviventes do genocídio merecem ser ouvidos e participar nos julgamentos dos crimes do estado. Até isso acontecer, não haverá justiça. Se um daeshi for condenado por ser terrorista, mas não por comprar e vender escravas yazidis, onde está o peso legal deste processo?”
“Não há uma solução única” para este problema”, acentua a directora executiva da FYF. “Se houver um tribunal, provavelmente julgarão apenas os cabecilhas do Daesh. Serão, talvez, 10, 20, 50. Mas os perpetradores são dezenas de milhares, soldados rasos que admitiram envolvimento em centenas e violações e assassínios.”

Famílias yazidis que fugiram de Sinjar aguardam por ajuda num edifício abandonado que, em 2014, antes da derrota do Daesh, usavam como residência principal, em Dohuk, região autónoma curda no norte do Iraque
© Youssed Boudlal | Reuters | Al Jazeera
O que Pari Ibrahim não quer é um sistema em que muçulmanos sunitas sejam acusados sem provas e sem direito a advogados de defesa. “Isso não é justiça, mas vingança. Corremos este risco no Iraque e na Síria onde os tribunais não são fiáveis.”
O que ela quer é uma colaboração entre um tribunal internacional e as SDF naqueles dois países. “É um enorme desafio. Se falharmos, os genocidas regressarão. Aliás, já começaram a construir o ‘estado islâmico 2.0’.”
Além de justiça, os yazidis reclamam “maior representação política”. No parlamento de Erbil, de um total de 111 lugares, “5 são atribuídos aos cristãos, 5 aos turcomanos e até um aos arménios, comunidade muito pequena –, mas nenhum aos yazidis”, constata Pari. “Isto é injusto. Devíamos ter direito a 5, pelo menos.” Na capital iraquiana, os yazidis têm apenas uma deputada, Vian Dakhil.
Concentrados em áreas disputadas por Bagdad e Erbil que se mantêm subdesenvolvidas porque nem o Governo central nem o governo regional curdo têm certeza de que, no futuro, controlarão estes territórios, os marginalizados yazidis reclamam, igualmente, “oportunidades iguais em termos económicos e académicos”, destaca Pari Ibrahim.

Um cartaz nas ruas de Sinjar homenageia Vian Dakhil, a única deputada yazidi no Parlamento iraquiano cujo discurso, inesperado e emotivo, denunciando o genocídio do seu povo obrigou a comunidade internacional a agir contra o Daesh. Em 2014, ela recebeu o Prémio Anna Politovskaya pela coragem e determinação que demonstrou
© Alessio Mamo | Al Jazeera
A província de Nínive, que inclui Sinjar, já enfrentava escassez de empregos e serviços antes da chegada do Daesh, segundo um estudo do Middle East Research Institute (MERI).
Os yazidis tinham apenas acesso a um hospital de cerca de 15-20 camas. Sem maternidade, muitas grávidas eram obrigadas a deslocar-se a Duhok, distante 167 km.
Também não há universidades nem faculdades na região. Para terem ensino superior, os yazidis vão para Mosul, cidade que nunca foi, para eles, muito hospitaleira.
Estima-se que, só em 2013, cerca de 1300 alunos abandonaram os estudos devido a ameaças de morte.
“Em comparação com outros, sinto que somos sempre relegados para último plano”, queixa-se Pari. “Talvez agora que somos reconhecidos pelo mundo [Nadia Murad, uma das sobreviventes, ganhou o Nobel da Paz, em 2018, e vários outros prémios], possamos ter mais portas abertas.”

Famílias yazidis provenientes de Sinjar chegam ao posto fronteiriço de Fishkhabur, entre a região curda de Dohuk, no Iraque, e a Síria, em 10 de Agosto de 2014. Foram milhares as que fugiram das suas aldeias e procuraram refúgio nas áreas controladas por forças curdas depois de uma ofensiva do Daesh
© Moises Saman | Magnum | TIME
A rivalidade entre árabes e curdos no norte do Iraque também tem impacto na representação das minorias, segundo o estudo do MERI.
Na luta pelo controlo territorial, ambas as partes exercem intensa pressão sobre os yazidis para que se identifiquem como curdos ou árabes, “subvertendo a sua distinta identidade religiosa”.
Entre 1970 e 2003, tentando subjugar os insurrectos curdos, Saddam Hussein repovoou Sinjar e arredores com árabes sunitas.
Para estabelecer laços de lealdade, os yazidis receberam-nos de braços abertos, escreve Susan Shand em Sinjar: 14 Days that Saved the Yazidis from Islamic State. Deram-lhes o título de “Kreef” ou “Padrinho”. Todas as crianças yazidis tinham, à nascença um “kreef”.
A queda de Saddam e a ascensão ao poder de um governo maioritariamente xiita em Bagdad geraram grande ressentimento entre os árabes sunitas. Quando o Daesh chegou, muitos deles viraram-se contra os yazidis.
Os combatentes curdos (peshmerga) que protegiam as aldeias yazidis também se retiraram sem aviso, o que muitos condenaram como “traição”.
“Estamos muito longe de restabelecer a confiança”, assevera Pari Ibrahim. “Vizinhos tornaram-se captores, amigos tornaram-se violadores e famílias inteiras foram cúmplices e participantes activos nos crimes cometidos contra o meu povo. Sem justiça, não será possível restaurar a confiança e a amizade.”

Um homem reza à porta do mais sagrado tempo yazidi – o túmulo do Sheikh Adi – em Lalish, no norte do Iraque
© David Honl | zumapress.com | Corbis | National Geographic
“Árabes e curdos precisarão de muito tempo, e de muitos actos de boa fé, até que os yazidis – impotentes, sem privilégios e em risco – voltem acreditar neles. A ideologia do Daesh ainda não foi derrotada. O meu povo continua, com razão, a sentir-se ameaçado.”
Para o “estado islâmico”, os yazidis são “adoradores do diabo”, o que muito ofende esta minoria cuja fé incorpora elementos zoroastras, maniqueístas, judeus, cristãos e muçulmanos sufis. “É uma religião oral, sem um livro sagrado”, descreve Susan Shand.
“Venera um ser supremo chamado Yasdan, que criou o mundo e o olha passivamente. Dele emanam sete grandes espíritos, o maior dos quais é o Anjo Pavão, denominado Melek Taus e considerado o alter ego de Deus.”
“É por Melek Taus, a quem rezam cinco vezes por dia, ser também conhecido como Shaytan, palavra árabe para ‘demónio’, que os yazidis são erradamente chamados de ‘adoradores do diabo’, um equívoco reforçado pelo facto de não haver conceito de inferno no Yazidismo.”
Os yazidis acreditam que “a transmigração da alma leva à sua purificação através de um renascimento contínuo, por isso a morte não tem um destino final.”

Sheikh Kato, líder espiritual dos yazidis, e outros clérigos libertam pombas brancas durante a cerimónia que marcou a abertura da primeira de mais de 70 valas comuns em Kojo, Sinjar. Sobreviventes e famílias das vítimas do genocídio perpetrado pelo Daesh juntaram-se aqui em Junho de 2019
© Alessio Mamo | Al Jazeera
O pior que pode acontecer a um yazidi é ser expulso da comunidade, porque isso “significa que a sua alma jamais progredirá”. As conversões são proibidas e só os nascidos na religião a ela podem pertencer.
A comunidade tem quatro castas. A mais importante é a de Baba Sheikh, seguido como um “homem santo”, e a sua família. A quarta, a dos Murid ou Plebeus, inclui a maioria dos yazidis. Não há casamentos mistos entre estas castas.
O “estado islâmico” colocou, uma comunidade conservadora perante um dos seus maiores desafios. O que fazer com as antigas escravas dos daeshis e os seus filhos nascidos de violações?
Para já, os líderes aceitaram apenas acolher as mulheres, não as crianças, forçando muitas delas a escolhas duríssimas. Abandonar os filhos, dá-los para adopção ou ficar com eles arriscando o repúdio do colectivo.
“Nós, na Free Yezidi Foundation, apoiamos as sobreviventes e as suas escolhas”, orgulha-se Pari Ibrahim. “Estaremos com elas em qualquer circunstância. Para as que tiveram filhos de pais violadores, tentamos encontrar-lhes alternativas de vida no estrangeiro.”
“Não podem ficar no Iraque, porque a maioria dos yazidis jamais aceitará os seus filhos. Receiam que, tendo o mesmo sangue, possam vir a imitar o mau comportamento dos pais”.

Um baptismo yazidi no templo sagrado de Lalish, no norte do Iraque
© Francesco Brembati | worldnomads.com
“Não me chocam estas reacções, porque a nossa comunidade está traumatizada”, ressalva Pari. “Mas temos de proteger as nossas mulheres e os seus direitos, independentemente do que pensam os homens e as famílias. E não podemos ignorar os direitos de as crianças ficarem com as mães. Não podemos agravar a dor das sobreviventes.”
“Estamos a tentar modernizar a religião”, garante Pari Ibrahim. “Este é apenas um dos muitos problemas internos que temos de resolver.”
“As mulheres são sempre as que carregam o peso das tradições. E estas tradições têm de mudar. A decisão de não permitir o regresso das mulheres com os filhos dos violadores é antiquada e cruel.”
O que, talvez, forçará a comunidade “a adaptar-se e ajustar-se à vida moderna” poderão ser as pressões da diáspora, sobretudo dos jovens, admite Pari. Centenas de yazidis estão a juntar-se a outros que já vivem no estrangeiro, sobretudo na Europa.

Uma jovem yazidi, numa sessão de apoio psicológico na Alemanha – um dos principais países de refúgio na Europa -, tenta contar a sua história de vida usando pedras, para marcar os acontecimentos traumáticos, e flores, para ilustrar os momentos mais felizes
© Inka Reiter | Forbes
“Na Holanda ou na Alemanha, temos de respeitar as leis europeias”, observa Pari. “Isto não é mau, porque nos encoraja a aprender e a respeitar regras modernas que nos serão benéficas. E porque nos oferece a possibilidade de viver em sociedades onde não somos tratados de forma inferior, só por termos uma religião diferente.”
“Cada vez mais yazidis procuram o exílio porque a pátria não é segura”, reconhece Pari, temendo que parte da sua cultura se perca.
“Cinco anos depois do genocídio, pouco foi feito para tornar Sinjar um lugar aonde possamos regressar. Não há infra-estruturas, não há segurança, não há justiça. Temos medo que tudo se repita. Este não é o nosso primeiro genocídio – é o 74º.”

Dilbar Ali Ravu, 10 anos, é beijado pela tia Dalal Ravu, durante uma reunião de famílias no Iraque, em Março de 2019, após cinco anos de cativeiro imposto pelo Daesh
© Philip Issa | Associated Press (AP)
Em Amesterdão, Pari Ibrahim conseguiu acabar o curso de Direito, em 2017. “Sou a primeira pessoa da minha família a concluir a universidade – o que é, para mim, uma enorme conquista.
Inicialmente, o meu sonho era ser juiz num tribunal na Holanda, para garantir que as vítimas e os sobreviventes sejam ouvidos. Mas a Free Yezidi Foundation preenche-me e aqui tento aplicar a justiça de uma forma diferente.”
“Fico muito feliz quando vejo o sorriso das mulheres e crianças que acompanhamos nos nossos [dois] centros. Alegra-me que sintam amor e protecção, mesmo que por breves instantes.”
“É uma alegria ouvir os que beneficiam do nosso trabalho dizerem que mudámos as suas vidas e lhes restituímos a esperança de dias melhores.”

Pari Ibrahim, fundadora e directora executiva da Free Yezidi Foundation
© Free Yezidi Foundation
Este artigo foi originalmente publicado na revista ALÉM-MAR, edição de Outubro de 2019 | This article was originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, October 2019 edition