Moçambique aspira a uma paz abensonhada*

Em 1988, quando João Paulo II visitou Maputo, o país vivia em guerra civil. Mais de três décadas depois, e antes de cruciais eleições marcadas para Outubro, o Papa Francisco chega, em Setembro, para abençoar um acordo que reconcilia a Frelimo, no poder, e a Renamo, na oposição. Um novo ciclo de governação com as armas em silêncio “seria histórico”, afirma Eric Morier-Genoud, autor de um livro extraordinário sobre a singular Diocese da Beira.  (Ler mais | Read more...)

O Papa Francisco, à chegada a Maputo, em 4 de setembro, acompanhado do presidente de Moçambique, Filipe Nyusi
© Paul Haring | CNS

Professor de História Africana na Queen’s University, em Belfast (Irlanda do Norte), Eric Morier-Genoud especializou-se em política e religião, guerra e resolução de conflitos na África Austral. A sua obra mais recente é Catholicism and the Making of Politics in Central Mozambique, 1940-1986, um livro fascinante de mais de 200 páginas centrado da Diocese da Beira, no seu primeiro bispo, Sebastião Soares de Resende, e nos numerosos missionários que, antes e depois da independência de Moçambique, lutaram por uma Igreja verdadeiramente africana contra um Estado colonial repressivo.

A propósito da visita do Papa Francisco a Maputo, na sequência de um acordo de cessar-fogo “permanente” entre a Frelimo e a Renamo, 27 anos depois de a Igreja Católica de Moçambique e a Comunidade de Sant’Egídio terem mediado os esforços para pôr fim a 15 anos de uma guerra civil que causou um milhão de mortos, o académico que já antes publicara The War Within: New Perspectives on the Civil War in Mozambique, 1976-1992, deu-me esta entrevista por e-mail:

A publicação do seu último livro coincide com a visita do Papa Francisco a Moçambique e com um novo acordo de paz entre a Frelimo e a Renamo. Concorda que é “um momento histórico”, como avaliou o presidente Filipe Nyusi?

O Governo de Moçambique e a Renamo [dirigida por Ossufo Momade, o sucessor de Afonso Dhlakama, que morreu em 2018] assinaram, em 6 de Agosto, um acordo dito de “Paz Definitiva e Reconciliação” [que se seguiu a outro, de “cessação das hostilidades”, firmado dias antes na Gorongosa, onde começou a guerra em 1977].

O Papa chega a Maputo um mês depois, em 4 de Setembro, para uma visita de 48 horas. São dois acontecimentos muito importantes que se relacionam, volens nolens [quer se queira, quer não], com um terceiro: as eleições gerais do próximo dia 15 de Outubro [para presidente da República, membros do Parlamento e – pela primeira vez – governadores das 11 províncias, que até agora eram designados pelo chefe de Estado]. Estes três acontecimentos articulam-se e irão produzir um novo ciclo governativo – o quinquénio 2020-2025.

A esperança de haver um novo ciclo de governação em paz plena constitui uma perspectiva animadora e potencialmente histórica. [O acordo, que é já o terceiro, entre os antigos inimigos prevê a integração dos combatentes da Renamo nas Forças de Defesa e Segurança do Estado e da Polícia – uma decisão que analistas descrevem como importantíssima, porque em Moçambique não é o Exército o mais poderoso].

Muitas nuvens pairam, no entanto, sobre este cenário: divisões no seio da Renamo (a ala militar separou-se e diz recusar o acordo de paz [que prevê o desarmamento dos últimos guerrilheiros, antes da chegada do Papa]); risco de conflitos resultantes das eleições; e a insurreição islamista que há dois anos abala o norte de Moçambique [em particular a província de Cabo Delgado].

Dançarinos moçambicanos acolhem o Papa Francisco à sua chegada a Maputo
© Paul Haring | CNS | Catholic New York

“A história da Igreja Católica em Moçambique é de grandeza nos séculos XVI e XVII, de declínio no século XVIII e de colapso em meados do século XIX”, tornando-se uma instituição “organizada, autónoma e auto-suficiente” apenas entre 1940 e 1986, o período que o seu livro aborda. Como é que a caracteriza actualmente? Que igreja é que o Papa Francisco vai encontrar? E que papel pode desempenhar?

A Igreja Católica em Moçambique é, hoje, uma instituição forte, empenhada em várias áreas, sejam a evangelização, a educação, a saúde ou a paz. É uma instituição muito antiga, com uma história própria, complexa, e com presença em todas as regiões do país.

É, portanto, uma instituição madura a que o Papa vai encontrar, com as suas doze dioceses, bispos e dois cardeais [D. Júlio Duarte Langa – que traduziu os documentos do Concílio Vaticano II para as várias línguas moçambicanas – e D. Alexandre dos Santos – que ajudou organizar e a mediar as primeiras negociações de paz no final dos anos 1980].

A mensagem de Francisco será muito bem recebida, porque a população aspira à paz, e a Igreja tem reputação de ser um bom mediador. A questão agora é saber que processo de reconciliação vai o Governo iniciar e com quem irá fazer esse trabalho. Eu espero que seja com a Igreja Católica, uma das poucas instituições que, depois do acordo de 1992, fez um trabalho de base, nas comunidades, a favor da reconciliação.

Freiras moçambicanas tentam cumprimentar o Papa Francisco à saída de uma reunião na Catedral de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, em Maputo
© Alessandra Tarantino | AP | religionnews.com

Como surgiu a ideia de centrar esta sua obra na Diocese da Beira? E seria ela “a voz dissidente da Igreja colonial” sem o seu primeiro bispo, D. Sebastião Soares de Resende, que desde a sua chegada, em 1943, denunciou os abusos sociais, raciais e laborais, que comparava a escravatura, cometidos pelas autoridades portuguesas em Moçambique?

Há muitos anos que estudo as religiões na Europa e em África, com particular enfoque na África do sul e em Moçambique. Nos anos 1990, a diocese de Beira chamou a minha atenção porque não encaixava nos discursos sobre este tema na altura.

Muitos diziam, seguindo discursos do presidente Samora Machel [1933-1986], na década anterior, que as igrejas protestantes em Moçambique tinham sido nacionalistas enquanto a Igreja Católica tinha sido colonialista.

Ora na Beira, o bispo era favorável à independência e, se uma parte significativa do clero era colonialista, também havia muitos padres a favor do nacionalismo africano e até alguns adeptos da Teologia da Libertação. Como definir a posição da Igreja da Beira perante esta diversidade? Nacionalista ou colonialista? Ou a pergunta estaria mal colocada?

A resposta que dou no meu livro é a de que a Igreja Católica é uma instituição singularmente complexa. Não a podemos definir somente pelos seus bispos ou pela sua hierarquia. Se a Igreja Católica tem uma hierarquia forte, também tem estruturas horizontais que são autónomas (em particular os institutos da vida consagrada e as sociedades da vida apostólica).

Assim sendo, um bispo pode adoptar uma determinada posição ou política enquanto os institutos e as sociedades podem, na mesma diocese, discordar e adoptar posições ou políticas (ligeiramente ou bastante) diferentes.

No caso da Beira, nos anos 1970, a diferenças acabaram sendo profundas e levaram a um conflito aberto entre certas congregações e o bispo, com consequências nunca antes vistas, como a decisão de um instituto [o dos Padres Brancos] abandonar um país em protesto contra a posição da hierarquia.

O Papa Francisco saúda os fiéis moçambicanos à chegada ao estádio de Zimpeto, em Maputo, onde celebrou uma missa campal
© Tiziana Fabi | AFP | Getty Images |

Sebastião era exímio na gestão das diversas congregações religiosas. Por que é que a Beira atraiu tantos missionários, tão diferentes na sua acção pastoral, dos conservadores Jesuítas e Franciscanos aos mais revolucionários Padres de Burgos?

A Diocese da Beira é um caso incomum de diversidade interna. Na altura da independência, tinha 18 institutos activos. Era um caso incomum, mas, ao mesmo tempo, bastante representativo da Igreja no seu todo.

Esta diversidade desenvolveu-se porque havia falta de missionários portugueses para trabalhar em todas as colónias. Os bispos tiveram, pois, de pedir a congregações religiosas estrangeiras que fossem para Moçambique.

O bispo da Beira era muito dinâmico e preocupava-se pouco com a nacionalidade dos seus missionários. Recrutava todos os institutos que aceitassem ira para a região central de Moçambique. Singular na Beira foi o facto de haver muitos institutos e de D. Sebastião ter um estilo de liderança também incomum.

Ele não exigia uma ou outra linha pastoral, social ou política, mas aceitava e apoiava todas, enquanto trabalhassem para o bem da Igreja. É claro que ele tinha algumas preferências, mas a sua postura era a de apoiar todos de maneira igual. Os bispos e administradores apostólicos que lhe sucederam não tiveram o mesmo equilíbrio e isso criou tensões e, em certos casos, crise.

A maior parte dos sucessores de D. Sebastião teve dificuldade em dirigir a diocese até à independência. O caso mais dramático foi o de D. Manuel Ferreira Cabral: entrou de tal modo em conflito, que acabou por fugir da sua diocese e renunciar ao cargo.

Mulheres moçambicanas com cestos de comida à cabeça dançam durante um encontro do Papa Francisco com bispos, padres, religiosos, seminaristas e catequistas na Catedral de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, em Maputo
© Paul Haring | CNS

Quando é que a Igreja percebeu que tinha de ser “menos imperial e mais profética”? Que papel é que os missionários desempenharam nesta evolução?

As reformas do Concílio Vaticano II e o crescente nacionalismo em Moçambique, no início dos anos 1960, cristalizaram e reforçaram as diferenças entre institutos religiosos na Diocese da Beira. Os Combonianos, por exemplo, chegaram ali em 1968 e participaram destas dinâmicas.

Politicamente, uns começaram por favorecer o nacionalismo africano, outros viam neste nacionalismo o risco de [enveredar pelo] comunismo. Religiosamente, uns queriam manter o trabalho da Igreja assente em grande obras sociais, outros queriam renovar e modernizar a pastoral e centrar-se nos leigos.

A ideia duma Igreja profética só foi articulada nos anos 1970, embora haja traços dela na década de 1960, já com o bispo da Beira e vários missionários a desenvolver um projecto religioso para além do colonialismo. Os Combonianos alinharam neste última perspectiva.

Consequentemente, nos anos 1970, houve discussões e até conflitos sobre a linha pastoral e política que a Igreja teria de adoptar. Alguns institutos assumiram posições intransigentes contra o Estado e contra a hierarquia católica. Houve discussões profundas em todo o país, e até no Vaticano.

Freiras moçambicanas preparar os seus telemóveis para fotografar o Papa Francisco, que na sua viagem a Maputo, considerada “estratégica” para consolidar a paz, denunciou a corrupção e consolou mães e filhos afetados com o vírus HIV
© Ben Curtis | AP

No seu livro, é interessante constatar que, embora muitos missionários, sobretudo depois do Vaticano II, fossem a favor da independência dos territórios africanos, a maioria era “anticomunista” e só alguns, os mais adeptos da Teologia da Libertação, se assumiam abertamente marxistas. Como é que estas tensões afectaram a Igreja?

É verdade: a maioria dos missionários em Moçambique antes da independência era anticomunista. O tempo era o de Guerra Fria, e o Vaticano era oficialmente contra o comunismo. Mas, na categoria de anticomunista havia posicionamentos muito diferentes.

Para falar só de política, havia adeptos do colonialismo que entendiam este como a melhor forma de garantir a continuação e expansão do Cristianismo.

Havia os que defendiam uma reforma do colonialismo, alguns deles dizendo que o sistema deveria evoluir (devagar) para uma forma de independência africana, outros achando que a sociedade deveria evoluir para um modelo multirracial num império federal português.

Um terceiro grupo era favorável ao nacionalismo africano e à independência de Moçambique, mas receava o comunismo e, por isso, apoiava o nacionalismo africano somente cristão.

Os missionários adeptos da Teologia da Libertação constituíam um outro grupo, mais pequeno, mas desempenharam um papel significativo ao estabelecer ligação com a Frelimo durante a guerra de libertação, e ao oferecer, depois da independência, um apoio incondicional à revolução da Frelimo.

Tudo isto levou a uma multiplicação de vozes e a uma fragmentação da postura da Igreja antes da independência – eu refiro que, a certo momento, houve uma implosão da Igreja na Diocese da Beira (nos anos 1970). Por outro lado, isto abriu um leque de possibilidades para o futuro.

A Igreja poderia ter seguido vários rumos – alguns deles recusados pela maioria dos missionários; outros não autorizados pelo Vaticano; e outros ainda negados pelo governo de Moçambique após a independência.

“Vocês têm o direito à paz”, disse o Papa Francisco aos moçambicanos, durante a missa campal no Estádio de Zimpeto, em Maputo, onde se rezou e dançou
© Paul Haring | CNS

Na década de 1970 e, em particular, em 1974, ano da Revolução de Abril em Portugal, os missionários em Moçambique, alguns presos pela PIDE por denunciarem massacres, enfrentavam ainda mais destemidamente as autoridades coloniais. Pressentiriam eles que estava iminente a queda do regime em Lisboa?

Os missionários católicos não previram, especificamente, o golpe de Estado do 25 de Abril em Portugal. Mas muitos anteviam (alguns deles desde o inicio dos anos 1960) que haveria mudança de regime político e o fim do colonialismo a curto ou a médio prazo.

A partir de 1973, verificava-se em Moçambique um ambiente de fim de reino (e fim de império). E foi por esta altura que foram cometidos grande massacres, alguns dos quais denunciados por missionários. Face a esta situação, os missionários reagiram de formas diferentes, como disse antes.

A maioria mostrou-se politicamente neutra; alguns optaram por defender o regime de maneira mais frontal e empenhada, uns colaborando com a PIDE/DGS; outros enfrentaram o colonialismo directamente, denunciando os abusos em público, falando de paz e assinalando um outro futuro possível.

Finalmente, alguns padres espanhóis de Burgos e umas irmãs no centro de Moçambique apoiaram a luta de libertação para acelerar a proclamação da independência.

Tecidos tradicionais africanos com a imagem do Papa à venda numa loja em Maputo, antes da chegada do chefe da Igreja Católica
© Gianluigi Guercia | AFP| Getty Images | The Washington Post

O período pós-independência foi um desafio e um revés para a Igreja, que perdeu o seu património nas nacionalizações e se viu perseguida pela Frelimo de Samora Machel, desconfiado de que o clero católico apoiava a Renamo. Quando e por que razão ficou aberto o caminho para uma reconciliação?

A independência foi um período difícil para a Igreja Católica em Moçambique, tal como foi para as outras organizações religiosas no país. Houve nacionalizações, acusações, muita suspeição e alguma repressão.

O período mais duro foi entre 1977 e 1980, quando o Estado confrontou a Igreja directamente, fechando lugares de culto, condenando bispos a detenção domiciliária, etc.

Embora tenha sido difícil, há quem considere que este período também foi benéfico, porque forçou a Igreja a repensar o seu papel e a reorganizar-se.

O processo de nacionalização libertou a Igreja da tarefa e do peso das suas instituições sociais (educação e saúde), e permitiu que se decentralizasse, des-hierarquizasse e centrasse nas comunidades eclesiásticas e nos leigos.

Assim emergiu a “Igreja das palhotas” (Pe. Luizia, A Igreja das Palhotas, Ed. Paulinas, 2017). A partir de 1982, o Estado mudou de política religiosa e decidiu diminuir o fosso que os separava, reforçando o que os unia.

Enquanto as tensões diminuíam, a guerra civil avançava e desfazia comunidade eclesiásticas. Após a guerra, a hierarquia da Igreja reergueu-se e o Estado devolveu-lhe as propriedades que havia nacionalizado.

Por isso, hoje não se fala tanto de reconciliação entre Igreja e Estado. Só alguns sectores católicos pedem uma reconciliação em relação ao período colonial, quando a hierarquia apoiou sem reservas o colonialismo.

O Papa Francisco numa visita a um centro que acolhe doentes com VIH e que é administrado pela Comunidade de Sant’ Egídio, que ajudou a Igreja Católica de Moçambique a mediar o primeiro acordo de paz entre a Frelimo e a Renamo em 1992
© santegidio.org

Que balanço faz do processo de paz Frelimo-Renamo de 1992 e como avalia o acordo anunciado em Agosto e a amnistia geral aprovada pelo Parlamento em Julho? Conduzirá esta à justiça ou, como critica a Human Rights Watch, “é uma traição” às milhares de vítimas dos “graves abusos” cometidos pelas duas partes beligerantes”?

O acordo de paz de 1992, mediado pela Igreja Católica moçambicana, e por Sant’Egidio (após anos de trabalho de outros actores, incluindo líderes protestantes e franciscanos) foi um sucesso. Permitiu mais de 25 anos de paz, talvez não uma paz perfeita, mas sólida.

Actos violentos circunscritos entre 2013 e 2014, opondo Governo e Renamo, conduziram a um meio acordo de paz em 2014, antes das eleições nacionais, mas este não foi suficiente para impedir o regresso da violência, no ano seguinte e até 2016, quando a oposição declarou um cessar-fogo unilateral.

O Acordo Paz e Reconciliação assinado em Agosto último conclui as negociações iniciadas em 2013 e, oxalá, termine este período de violência política.

Quanto à amnistia geral, acredito que foi necessária para chegar agora a pacto de paz dita “definitiva”. O que a Human Right Watch e outros na sociedade civil criticam é que esta amnistia (a seguir à de 2014) irá impedir a responsabilização dos crimes cometidos e a compensação das vítimas.

Arisca-se, assim, a criar a impressão de que crimes políticos não têm consequências jurídicas. E, provavelmente, isso irá também dificultar, senão impedir, um trabalho de memória e reconciliação que muitos acham necessário para não se repetir este tipo de situação no futuro.

“O acordo 1992 mediado pela Igreja Católica moçambicana e por Sant’Egidio (após anos de trabalho de outros actores, incluindo líderes protestantes e franciscanos) foi um sucesso”, diz Eric Morier-Genoud. “Permitiu mais de 25 anos de paz, talvez não uma paz perfeita, mas sólida”
© s.hdnux.com

O conflito com a Renamo não é o único em Moçambique. A alegada insurreição islamista na província de Cabo Delgado representa, também, uma grave ameaça que o Estado parece incapaz de travar. Como se avizinha o futuro?

A insurreição islamista no norte de Moçambique começou há quase dois anos. Um grupo de religiosos radicais cresceu à margem da sociedade e contra a sociedade. Tornou-se violento em Outubro de 2017. Desde então, temos ataques regulares, agora quase diários, contra aldeias e vias de transporte.

O Governo de Moçambique conseguiu conter, geograficamente, os insurrectos na zona norte de Cabo Delgado. Mas estes rebeldes não só mantiveram as suas posições como intensificaram os ataques (que inicialmente eram só nocturnos e contra aldeias indefesas). Ultimamente, terão até estabelecido ligação ao ‘estado islâmico’ [Daesh].

Sendo Cabo Delgado uma zona de investimentos bilionários nos sector do gás e outros minerais, o Estado moçambicano e a comunidade internacional estão extremamente preocupados. É um problema que eles terão de resolver juntos, numa acção não apenas militar, mas também politica, social e religiosa.

* Este título, com o objetivo de juntar as palavras “benção” e “sonho”, inspira-se no livro Estórias Abensonhadas, do escritor moçambicano Mia Couto

Uma relação de mais de cinco séculos

© ACN | zenit.org

A história do Catolicismo em Moçambique conheceu “grandeza, declínio e colapso”, diz o académico Eric Morier-Genoud. Para poder sobreviver, a Igreja deixou de ser “imperial” para se tornar “profética”. 

1498

Em 11 de Março, mês em que as naus de Vasco da Gama, a caminho da Índia, aportam em Moçambique, é celebrada a primeira missa, em latim, na ilha de São Jorge;

1505

Construção da primeira igreja, em Sofala. Os primeiros missionários enviados pela Igreja são Jesuítas e Dominicanos;

1562

Em 12 de Fevereiro, o Papa Pio IV autoriza o rei de Portugal a nomear um administrador eclesiástico para os reinos de Ormuz, Moçambique e Sofala, pertencentes à longínqua Diocese de Goa, criada em Janeiro de 1533 por Clemente VII;

1590

A partir deste ano, enfrentando imensas dificuldades, nem Dominicanos nem Jesuítas conseguem expandir-se e concentram-se na área do Rio Zambeze, onde trabalham com populações brancas de ascendência portuguesa e pequenos núcleos de africanos que habitam as propriedades daquelas duas ordens;

1612

Em 21 de Janeiro, a pedido do rei Filipe II, o Papa Paulo V desliga Goa da Província de Moçambique, que se torna uma prelazia;

1759

O Marquês de Pombal expulsa os Jesuítas de Portugal e a Igreja perde metade dos missionários em Moçambique;

1820-1830

Neste período, com o anticlericalismo provocado pela guerra civil entre liberais e absolutistas em Portugal, a Igreja entra em colapso em Moçambique. Em 1855, só há aqui cinco padres e nenhum prelado. Na segunda metade do século XIX, após a independência do Brasil, e em paralelo com o projeto colonial “Partilha da África”, as elites em Lisboa decidem construir neste continente o “terceiro império português”. Com escassez de fundos, porque só conseguem ocupar a costa e o vale do Rio Zambeze, procuram atrair a Igreja Católica e empresas privadas para assistir ao seu esforço de colonização, uma deles a Companhia de Moçambique, a quem é dado o controlo do centro do território. Na segunda metade do século XIX, regressam os missionários – em 1909, já havia 71 padres (seculares e membros de ordens religiosas e dez freiras – um número sem precedentes;

1910

Com a revolução que pôs fim à monarquia e instaurou a República Portuguesa, um novo regime anticlerical expulsa novamente os jesuítas e outras congregações, em Portugal e em Moçambique;

1916-1926

A partir de 1916, é autorizado o regresso das ordens a Portugal. Em 1918, depois do golpe militar de Sidónio Pais, um novo Governo restabelece os laços com a Santa Sé, decidindo subsidiar a Igreja nas colónias africanas e favorecendo os padres seculares (com vínculo a um bispo e presbitério diocesanos, ao contrário dos sacerdotes regulares, ligados a institutos religiosos), porque são “considerados mais nacionalistas”;

1930

Depois de outro golpe, em Maio de 1926, que instaurou a “Ditadura Nacional”, as missões católicas ultramarinas ganham “estatuto orgânico, o que lhes permite receber apoio ideológico e financeiro do Estado. Com isto, aumenta o número de missionários;

D. Sebastião Soares de Resende (à esq. de batina), o primeiro bispo da Diocese da Beira, numa foto de 1959
© delagoabayworld.wordpress.com

1940

A Santa Sé e Salazar, no poder desde 1932, assinam uma Concordata e um Acordo Missionário, oferecendo à Igreja amplo espaço de missão nas colónias, em áreas como a educação, a saúde e o serviço social. (Em 1941, é assinado o adicional, e mais detalhado, Estatuto Missionário.) Esta Concordata distingue-se dos 28 acordos assinados pelo Vaticano com outros países europeus, porque embora estabeleça uma clara separação entre Igreja e Estado em Portugal, define uma aliança estreita entre as duas partes nas colónias. Na metrópole, a Igreja abdica de ser indemnizada pela nacionalização dos seus bens durante a Primeira República e aceita que o seu pessoal não receba salários do Estado Novo; nas colónias, o regime investe maciçamente nas atividades missionárias, desde a atribuição de terras ao financiamento de dioceses. A Igreja, por seu turno, aceita que a sua hierarquia seja de nacionalidade portuguesa e concorda não só em evangelizar mas em “civilizar” os africanos. O Vaticano nomeia D. Teodósio Clemente de Gouveia, um vicentino, para arcebispo da arquidiocese de Lourenço Marques (actual Maputo) e administrador apostólico interino das dioceses da Beira e de Nampula;

1943

No dia 21 de Abril, a Santa Sé nomeia o primeiro bispo da Beira: Sebastião Soares de Resende. Este padre secular, de 37 anos, professor e vice-director do Seminário Maior do Porto, chega em 1 de Dezembro à sua diocese – com uma área de 360.645 km2, ocupava metade da colónia de Moçambique, tinha dois milhões de habitantes e apenas 1,9% de católicos.

1962

O presbiteriano Eduardo Mondlane, educado nos Estados Unidos, funda a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) em Dar-es-Salam, na Tanzânia, de onde inicia a luta armada pela independência;

1970

Em 1 de Julho, o Papa Paulo VI recebe, no Vaticano, os chefes da guerrilha em Angola (Agostinho Neto), Guiné (Amílcar Cabral) e Moçambique (Marcelino dos Santos), provocando a fúria do Governo de Marcello Caetano, que viu neste encontro um encorajamento aos católicos, no Continente e no Ultramar, a opor-se à guerra colonial;

1971

A sociedade missionária dos Padres Brancos decide abandonar Moçambique, onde está presente desde 1946, por “falta de condições para fazer uma verdadeira evangelização”. O governo marcellista antecipa-se a este gesto sem precedentes e expulsa-os antes de eles saírem de livre vontade;

1972

Por denunciarem, com provas, as matanças de civis cometidas pelas tropas portuguesas, são presos e expulsos os Padres de Burgos que trabalham em Tete. Aqui é perpetrado, em 16 de Dezembro, o massacre de Wiriyamu, amplamente divulgado na Europa só em 1973, primeiro pelo padre comboniano Luís Afonso Costa, que seria expulso de Moçambique, e depois pelo sacerdote, escritor e historiador jesuíta inglês Adrian Hastings, no jornal The Times, na véspera da visita de Marcello Caetano a Londres, em Julho;

Samora Machel, numa foto de 1971, durante a guerra pela independência de Moçambique, teve uma relação difícil com a Igreja Católica
© enca.com

1973

Num discurso ao Sacro Colégio, em 22 de Dezembro, o Papa Paulo VI diz: “Até que não chegue a hora em que os direitos de todos os povos, entre os quais os direitos à autodeterminação e à independência, sejam devidamente reconhecidos e dignificados, não poderá haver paz verdadeira e duradoura, mesmo que a prepotência das armas possa temporariamente ter a supremacia sobre as reacções dos opositores”;

1974

Em Janeiro, numa assembleia plenária em Nampula, os Missionários Combonianos (34 padres, 19 irmãos e 41 irmãs) decidem apresentar à Conferência Episcopal de Moçambique um documento intitulado Um Imperativo de Consciência. O texto tem a data do dia 12 e é assinado por todos os membros do grupo, mas também pelo bispo desta arquidiocese, D. Manuel Vieira Pinto. Nele se questiona a política colonial do regime e o comportamento de “cumplicidade” e “contratestemunho” da Igreja Católica. No dia 14, é expulso também o bispo Vieira Pinto;

1975

Em 25 de Junho, a Frelimo chega ao poder. Samora Machel, o novo líder, acusa a Igreja Católica de colaboração com a opressão colonial, e nacionaliza todas as suas estruturas nas áreas da educação e da saúde. Perante o avanço da guerra civil com a Renamo, o movimento anticomunista de Afonso Dhlakama, Machel “desiste de alienar as instituições cristãs e abandona as ambições anti-religiosas”. A partir de 1986, a Frelimo começa a devolver as propriedades nacionalizadas após a independência;

O primeiro acordo de paz mediado pela Igreja Católica de Moçambique foi assinado, em Roma, em 4 de Outubro de 1992, pelo presidente Joaquim Chissano (da Frelimo, à esq.) e por Afonso Dhlakama, da Renamo, pondo fim a 16 anos de guerra civil que causou um milhão de mortos
© Sapo Notícias

1988

A convite da Frelimo, o Papa João Paulo II visita Moçambique, e o Vaticano nomeia cardeal o arcebispo de Maputo D. Alexandre dos Santos. Este desempenha, no ano seguinte, um papel fundamental nas negociações entre a Frelimo e a Renamo das quais resulta um acordo de paz em 1992;

2014

O Papa Francisco nomeia o segundo cardeal de Moçambique, D. Júlio Duarte Langa, bispo emérito de Xai-Xai (antiga João belo), uma diocese no Sul;

2019

De 4 a 6 de Setembro, o Papa Francisco visita Moçambique no âmbito de uma viagem apostólica a África que o primeiro-ministro em Maputo, Filipe Nyusi, descreve como “marco histórico”.

Fontes: “Catholicism and the Making of Politics in Central Mozambique, 1940-1986 (Eric Morier-Genoud, 2019); A Igreja Católica e o Estado Novo” (Pedro Ramos Brandão, ‘Latitudes’, Nº 27, Setembro 2006); “História da Igreja em Moçambique” (fradescarmelitas.org.br); “Os Missionários Combonianos e o Estado Novo” (Carlos Neves Sobrinho, ambicanos.blogspot.com, Março 2016); “Y a-t-il une spécificité protestante au Mozambique?” (Eric Morier-Genoud, ‘Lusotopie’, 1998); “Breve Retrospectiva ao historial de relacionamento entre a Igreja Católica e o Estado em Moçambique” (Benedito Marime, Setembro de 2017); Agência Ecclesia.

Eric Morier-Genoud é professor de História Africana na Queen’s University, em Belfast (Irlanda do Norte). Especializou-se em política e religião, guerra e resolução de conflitos na África Austral
© chathamhouse.org

Esta entrevista (com um título diferente) e esta cronologia foram inicialmente publicados na revista ALÉM-MAR, edição de Setembro de 2019 | This interview (under a different headline) and this timeline were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, September 2019 edition

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