Na cidade onde o Bósforo une a Europa e a Ásia, um candidato da oposição até há pouco tempo desconhecido, Ekrem Imamoglu, desferiu uma humilhante derrota ao presidente que governa como um sultão. Não é ainda o fim de 25 anos de poder autocrático, mas é uma prova de vida da democracia. (Ler mais | Read more…)

A foto do presidente Recep Tayyip Erdogan nas mãos de um apoiante, numa rua de Istambul decorada com a bandeira nacional turca
© Reuters | The Independent
O reinado de Recep Tayyip Erdogan “está a chegar ao fim”, acredita Nesrin Nas, economista turca, que foi deputada e a primeira mulher na liderança do antigo Partido da Mãe Pátria, secular e nacionalista. “O medo desapareceu e a esperança começou a ocupar o seu lugar.”
E a esperança dançou e cantou nas ruas de Istambul durante toda a noite de 23 de Junho, depois de confirmado o triunfo histórico de Ekrem Imamoglu como presidente da Câmara de Istambul: 54,21% dos votos, segundo o Conselho Eleitoral Supremo (YSK) – um limiar nunca antes alcançado. Erdogan, por exemplo, aqui foi eleito em 1994 com apenas 25,2%, maioria relativa.
Até bastiões ultraconservadores que sempre votaram no Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, de Erdogan) – Fathi, Uskudar, Eyup e Beyoglu – deram a maioria ao candidato do Partido Republicano do Povo (CHP). Um resultado extraordinário, tendo em conta que quase todo o aparelho de Estado foi mobilizado contra Imamoglu.
Pela primeira vez num quarto de século, o AKP perdeu o controlo da cidade onde Erdogan iniciou a sua carreira política. “Quem ganha Istambul, ganha a Turquia”, dizia ele.
Foi um vexame para o mais poderoso líder turco desde Mustafa Kemal Atatürk, o fundador da moderna nação erguida das ruínas do Império Otomano.
Os istambullus não perdoaram a Erdogan ter pressionado os juízes do YSK a invalidar (alguns) resultados da votação de 31 de Março, sob a alegação de dúbias irregularidades, e a repetir o escrutínio em Junho. Muitos adiaram ou interromperam férias para votar. A afluência às urnas foi de 84% (mais de 8,9 milhões).
Em menos de três meses, Imamoglu aumentou a sua vantagem de 13 mil votos (0,2%) para mais de 700 mil sobre o rival, o ex-primeiro-ministro Binali Yildirim, do AKP, que obteve 44,99%, que perdeu até em circunscrições onde tinha ganhado em Março.
Um autarca praticamente desconhecido (ver caixa) até ser escolhido pelo mais antigo partido turco, Imamoglu, 49 anos, mostrou desde o início ser o oposto do “sultão” Erdogan, 65, que governa o país desde 2002, primeiro como chefe de governo e depois como presidente da república, com poderes quase absolutos desde um referendo em 2017, implacável para com qualquer forma de dissidência.
“Viemos para fazer a paz, para nos amarmos uns aos outros”, disse Imamoglu no discurso de vitória, de pé sobre o tejadilho de um autocarro, perante milhares de apoiantes.
“Não nos interessa a roupa nem o estilo de vida de ninguém. Queremos justiça e democracia. Nesta linda cidade, prometo-vos que iremos construir o futuro.”
A referência ao vestuário foi simbólica, pois o CHP, orgulhosamente kemalista e laicista num país predominantemente muçulmano, apoiou durante anos a proibição de as mulheres ocultarem o cabelo com o hijab em instituições e escolas públicas. Imamoglu não esconde a sua religiosidade, e o partido também se tornou mais tolerante.

Ekrem Imamoglu, o vencedor, tira uma fotografia a si próprio e aos seus simpatizantes/apoiantes, numa mercearia em Istambul, durante a campanha eleitoral, em Maio de 2019
© Chris McGrath | Getty Images | The Washington Post

Apoiantes de Ekrem Imamoglu celebram a sua vitória, em Istambul
© Reuters | South China Morning Post
Nos agradecimentos aos aliados, Imamoglu não se esqueceu dos curdos – 10% do eleitorado de Istambul –, em particular os militantes do HDP, o Partido Democrático do Povo, que defende as minorias, dos arménios aos alevitas, e cujo líder, o jovem e carismático Selahattin Demirtas, foi fundamental para dar força ao candidato do CHP.
Demirtas, como agora Imamoglu, emergiu como uma estrela da política turca em 2014, ao ganhar 10% dos votos (terceiro lugar) nas eleições presidenciais 4, e ao fazer entrar o HDP na Assembleia Nacional, quinze meses depois, com 13% dos sufrágios.
Foi o bastante para Erdogan o colocar na prisão, juntamente com milhares de outros membros do seu partido, nos últimos três anos.
Manter esta aliança tácita com o HDP será crucial para Imamoglu, porque o “problema curdo”, depois de 35 anos de guerra e mais de 40 mil mortos, continua a ser um dos mais espinhosos para qualquer político na Turquia.
Desesperado à medida que as sondagens confirmavam a crescente popularidade de Imamoglu, Erdogan envolveu-se pessoalmente na campanha e ainda tentou usar Abdullah Öcalan, o líder do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, separatista) que cumpre pena perpétua por terrorismo, para que apelasse à neutralidade dos curdos. Estes ignoraram um e outro.
Foi um jogo arriscado. A eleição deixou de ser apenas local para se transformar num referendo à linguagem sectária e aos métodos repressivos de Erdogan.
Contados 95% dos votos, Binali Yildirim reconheceu a derrota. Erdogan também deu os parabéns a Imamoglu, mas todos os que o conhecem sabem que irá dificultar a tarefa do vencedor. Porque o AKP ainda controla 25 dos 39 distritos de Istambul e detém a maioria na assembleia municipal.

Numa barbearia em Istambul, clientes vêem e ouvem na televisão Muharrem Ince, o líder do CHP que escolheu Ekrem Imamoglu para ser o candidato do partido kemalista à cidade onde Erdogan iniciou a sua carreira política e que tem sido um bastião do islamista AKP, no poder
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Nem tendo ao seu serviço todos os media estatais e a máquina burocrática do AKP, o partido no poder, Binali Yildrim, o candidato de Erdogan, conseguiu derrotar Ekram Imamoglu
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“O resultado em Istambul é muito importante para a luta pela democracia, mas um Erdogan enfraquecido será muito perigoso”, alerta Nesrin Nas, numa entrevista que me deu, por telefone e correio electrónico.
“A sua prioridade, a partir de agora, vai ser manter unido o AKP e convencer o seu parceiro MHP [Partido do Movimento Nacionalista, extrema-direita, a manter-se numa coligação de facto]. A atmosfera política continuará tensa ainda durante algum tempo.”
“Há 25 anos que Istambul é a principal fonte de financiamento e receita do partido de Erdogan”, observa Nesrin.
“Para ele, o controlo da cidade” que representa 32% do produto interno bruto (PIB) e 25% dos 81 milhões de habitantes da Turquia “tem uma dimensão política, económica e social – perder tudo isto é um primeiro sinal de que irá perder a Presidência.”
Nas municipais de Março, apesar de ter sido o partido mais voltado, com 51,67% do total dos votos, o AKP já havia sofrido perdas importantes em seis grandes centros urbanos, designadamente Ancara (a capital), Adana, Antalya e Esmirna. A perda de Istambul foi descrita como “um tremor de terra”.
Para Yavuz Baydar, um dos mais respeitados e premiados jornalistas turcos, forçado por Erdogan ao exílio, a anulação da primeira vitória de Imamoglu foi uma “tentativa de autogolpe” por parte do presidente, perante a denúncia da “imensa corrupção e clientelismo” na cidade onde o estreito do Bósforo une a Europa e a Ásia.
Agora, a oposição ganhou “superioridade moral e combustível político para enfraquecer a estrutura de poder de Erdogan”, diz-me, por e-mail, o actual director do Ahval, diário digital trilingue (turco, árabe e inglês), com sede em Londres.
“A oposição secular permaneceu muito tempo num estado de letargia, porque, sendo um bloco da classe média, também beneficiava dos serviços sociais gratuitos oferecidos às massas devotas. O que impulsionou a revolta contra o poder de Erdogan foi, sem dúvida, a queda dos indicadores económicos e a epidemia de nepotismo que afecta o seu estatuto social.”
O nepotismo estará presente nos grupos e fundações religiosas criados pelo AKP que, em 2018, terão recebido dos cofres da câmara o equivalente a 130 milhões de euros, segundo um relatório municipal citado pelo site alemão DW (Deutsche Welle).
A Fundação para a Juventude (TUGVA) foi a que, alegadamente, recebeu mais fundos: 11,3 milhões. Do seu conselho de administração fazem parte Esra Albayrak, filha do presidente, e a mulher do ministro da Economia.

Duas mulheres curdas exprimem deste modo apoio a Selahatin Demirtas, líder do PartidoDemocrático do Povo, defensor das minorias, que, da prisão, onde Erdogan o colocou, fez um apelo ao voto – que se revelou crucial – em Imamoglu
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Nesrin Nas concorda que uma grave crise económica (o desemprego subiu para 14,7%, a taxa mais alta da última década, a inflação situa-se nos 18,7%, a OCDE prevê, para este ano, uma contracção no crescimento de 2,6%; a lira perdeu 28% do seu valor em 2018 e 10% desde Janeiro de 2019) foi um factor que influenciou os resultados eleitorais.”
“Mas também pesou “o estilo [tirânico] de Erdogan e do seu aliado, Devlet Bahçeli [líder do MHP] – ambos abalaram a paz interna”, sobretudo nas cidades e, em particular, nas cidades curdas, “onde as pressões são insustentáveis”.
“Só se sentem seguros os que estão próximos de Erdogan”, lamenta Nesrin Nas, salientando que, desde o fracassado golpe para derrubar o presidente em 2016, “quase um quinto da população está sob investigação e os tribunais deixaram de ser independentes, objectivos e transparentes, num gigantesco recuo do Estado de Direito”.
Dezenas de milhares de pessoas foram demitidas ou presas, “a maior parte delas activistas dos direitos humanos, dirigentes da oposição, intelectuais e jornalistas”, acusados de pertencerem ou serem simpatizantes do movimento Izmet, de Fethullah Gülen, um teólogo refugiado nos EUA que no passado foi aliado de Erdogan.
“Muitas pessoas já perceberam que este regime é disfuncional, que só produz desigualdade, injustiça e pobreza”, afirma Nesrin Nas. “As eleições municipais permitiram que os dissidentes se unissem e fizessem e ouvir a sua voz.”
Também no AKP se levantam vozes incomodadas com o “carácter errático e desligado da realidade” de Erdogan, como descreve Yavuz Baydar. “O presidente rodeou-se de bajuladores que já não representam o partido original, e tornou-se num obstáculo mais do que num trunfo”.
Por ser “demasiado poderoso”, Erdogan tem travado qualquer motim interno, mas, agora, depois de duas derrotas consecutivas em Istambul, talvez os principais críticos – Abdullah Gül (presidente de 2007 a 2014) e Ali Babacan (que foi ministro da Economia, responsável pelas negociações com a União Europeia) “possam desafiar Erdogan, se forem suficientemente ousados” e formarem “um novo movimento de centro-direita pró-ocidental.”
Outro potencial adversário é Ahmet Davutoglu, que chefiou a diplomacia (de 2009 a 2014) e o Governo (de 2014 a 2016), e estará a preparar também a criação de um novo partido. Baydar acha-o “demasiado ambicioso para as suas limitadas capacidades e visão irrealista do mundo, além de ser odiado pelos curdos pela destruição que ordenou quando era primeiro-ministro”.
Embora feliz pela “bofetada” que os istambullus deram a “um quase ditador, cada vez mais isolado”, Yavuz Baydar, tal como Nesrin Nas, prevê que os próximos tempos serão ainda tumultuosos.
“A crise económica vai ressurgir em pleno, a par com o conflito com os Estados Unidos”, que ameaçam expulsar Ancara de um programa de caças avançados F-35, se insistir em comprar à Rússia um sistema de mísseis de defesa aérea S-400 e avançar com a produção conjunta de uma nova geração de S-500.
Baydar teme que a Turquia “possa ser arrastada para uma deriva nacionalista e entrar numa nova e mais obscura fase”. Porque, para Erdogan, todos os conflitos políticos são existenciais, e ele ainda possui os instrumentos necessários “para se livrar dos inimigos”.
Ekrem Imamoglu fez história

Ekrem Imamoglu: Uma vitória simbólica para a oposição e humilhante para Erdogan
© Murad Sezer | Reuters
Em Dezembro de 2018, quando o Partido Republicano do Povo (CHP) escolheu o seu candidato a presidente da Câmara de Istambul, poucos tinham ouvido falar em Ekrem Imamoglu. Mas, seis meses depois, ele tornou-se “o rosto mais visível” da oposição e um provável candidato ao lugar do chefe de Estado, Recep Tayyip Erdogan, nas eleições previstas para 2023.
Nascido há 49 anos na cidade de Trabzon, região do Mar Negro, no nordeste da Turquia, Imamoglu (o nome pronuncia-se sem o “g”, tal como Erdogan) estudou Economia na Universidade de Istambul antes de se dedicar aos negócios de construção civil da família.
Em 2014, cinco anos depois de entrar na política, foi eleito presidente da câmara de Beylikdüzü, um pequeno município de classe média na parte europeia de Istambul, onde ganhou fama de bom administrador.
Durante a campanha para desalojar o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) da maior e mais rica cidade do país, a principal estratégia de Imamoglu para conquistar eleitores foi a amabilidade e a serenidade com que se dirigia às pessoas, nas ruas e bazares. Aos que recusavam apertar-lhe a mão, ele oferecia um abraço.
Fundamentais foram também as redes sociais – tem 2,7 milhões de seguidores no Twitter –, que lhe permitiram romper um bloqueio quase total imposto por mais de 90% dos media, colocados ao serviço de Binali Yildirim, o candidato de Erdogan.
“A minha maior arma é um método milenar de comunicação: passar a palavra de boca em boca”, explicou Imamoglu, que em 31 de Março e depois numa nova votação em 23 de Junho derrotou Yildirim, desferindo um duro e humilhante golpe a Erdogan e ao AKP, que há 25 anos controlavam Istambul.

Ekrem Imamoglu distribuiu beijos e abraços durante a campanha eleitoral
© AP | The National
Se “o coração da Turquia” se rendeu a um quase desconhecido, muito se deve a um rapazinho de 13 anos que, por acaso, lhe ofereceu um glorioso slogan. Passava o seu autocarro por uma rua de Istambul quando o garoto, chamado Berkay, lhe disse: “Irmão mais velho, tudo vai ficar bem (her şey çok güzel olacak). “Exactamente, bravo!”, exclamou Imamoglu, afectuoso e sorridente. Foi o bastante para o vídeo desta conversa se tornar viral numa nação cansada da face habitualmente crispada de Erdogan.
“Sejam quais forem as feridas abertas, para as cicatrizarmos temos de nos encontrar, individualmente, com todos os segmentos da sociedade, todas as identidades étnicas, todos os grupos religiosos”, disse o candidato do CHP, o mais antigo partido turco fundado pelo pai da nação, Mustafa Kemal Atatürk.
Seguindo um recém-publicado Livro do Amor Radical, concebido por Ates Ilyas Bassoy, director de campanha, Imamoglu deu instruções aos partidários para “não serem insultuosos ou cínicos” no contacto com os adversários.
A sua mensagem positiva contrastou com os insultos de Erdogan, a quem pediu uma audiência para discutir propostas para Istambul. Foi um gesto intrigante que agradou às massas conservadoras e religiosas que votam no AKP: em 23 de Junho, vários bastiões do partido do presidente escolheram Imamoglu e não Yildirim.
Também contou muito o facto de Imamoglu assumir que é muçulmano praticante, num partido que, com um novo líder Kemal Kiliçdaroglu, deixou de ser elitista e hostil a expressões públicas de fé.
“Eu vou reconciliar esta nação”, prometeu Imamoglu, que contou com o apoio do Partido Democrático do Povo (HDP, centro-esquerda e pró-curdo) e do Partido Bom (IYI, direita), da historiadora Meral Aksener, que abandonou o MHP, quando este movimento se aliou a Erdogan.
No discurso da vitória, em 23 de Junho, Ekrem Imamoglu assegurou que a sua porta estará sempre aberta a todos, os que votaram e não votaram nele. Os apoiantes esperam mais: que, tal como aconteceu com o combativo Recep Tayyip Erdogan em 1994, Istambul seja a rampa de lançamento para o gentil homem que veio de Beylikdüzü chegar ao palácio presidencial em Ancara.

Nesrin Nas, economista turca, que foi deputada e a primeira mulher na liderança do antigo Partido da Mãe Pátria, secular e nacionalista
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Yavuz Baydar, premiado e influente jornalista que Erdogan forçou ao exílio, actual director do Ahval, diário digital trilingue (turco, árabe e inglês),com sede em Londres
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Estes artigos foram publicados originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Julho-Agosto 2019 | These articles were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, July-August 2019 edition