Os católicos na China enfrentam vários desafios: o êxodo para as cidades que esvazia as suas comunidades rurais; mais funerais do que baptismos, políticas repressivas, a “sinização” das religiões… É para manter viva uma Igreja há tantos anos dividida que o Papa Francisco firmou um “acordo histórico” com o regime de Xi Jinping, que lhe reconhece legitimidade na nomeação de futuros bispos. A próxima etapa poderá ser uma visita oficial a Pequim. (Ler mais | Read more…)

Missa de Domingo de Ramos numa igreja “clandestina” na aldeia chinesa de Youtong, província de Shijiazhuang, em Abril de 2016
© Adam Dean | The Telegraph
Há um “renascimento religioso” na China e o Governo “está preocupado”, diz-nos o sociólogo Richard Madsen, antigo missionário Maryknoll em Taiwan, um dos maiores estudiosos da cultura chinesa. “O Cristianismo, tal como o Islão e o Budismo tibetano, são especialmente problemáticos, devido à sua aspiração à universalidade, sob um Deus cuja lei é superior à de um governante temporal, e às suas ligações internacionais.”
Autor de obras de referência, como China’s Catholics: Tragedy and Hope in an Emerging Civil Society, Madsen constata que “tem havido um esforço contínuo para reprimir o Cristianismo”, que representará cerca de 10% da população, e agora ainda mais com um “plano de sinização” imposto pelo presidente, Xi Jinping, no último congresso do Partido Comunista.
Trata-se de uma campanha para “nacionalizar” as religiões, exigindo-lhes que se adaptem às tradições chinesas. Como o Confucionismo, que o governo espera “poder vir a suplantar o Cristianismo” – porque promove a lealdade ao líder e não fornece bases morais para o criticar. Não é de estranhar, atenta Madsen, que quase 50 por cento dos dissidentes presos por defenderem direitos humanos e democráticos sejam cristãos. “Isto inquieta Xi.”
No âmbito da “sinização”, muitas igrejas não registadas (uma obrigação legal) têm sido destruídas, cruzes removidas das suas torres sineiras, imagens de Jesus substituídas por fotografias de Xi, fiéis sujeitos ao pagamento de pesadas multas ou penas de prisão, como testemunhou o jornal South China Morning Post. O regime justifica estas acções com a necessidade de garantir “harmonia social”.
É muito difícil identificar o número exacto de cristãos na China. O regime estima que sejam 25 milhões, 18 milhões dos quais protestantes e 6 milhões católicos. Em 2010, o Pew Research Center contava 58 milhões de protestantes e 9 milhões de católicos. Outras fontes apontam para 100-130 milhões de protestantes e 10-12 milhões de católicos.
Segundo o Center on Religion and Chinese Society da Purdue University, em West Lafayette, Indiana, EUA, o Cristianismo é a religião que mais cresce na China “a um ritmo anual superior a 10%”, sobretudo desde há quatro décadas, depois que a “tolerância” do reformista Deng Xiaoping substituiu a era de perseguições de Mao Zedong. Mesmo que aquele ritmo abrande para 7%, “a China poderá tornar-se no maior país cristão do mundo em 2030, com 247 milhões de fiéis” – a maioria protestantes.
“Os católicos perderam, em número, a sua predominância em relação aos protestantes e este é um dos seus grandes desafios”, diz-me o historiador David E. Mungello, autor de várias obras, designadamente, The Catholic Invasion of China: Remaking Chinese Christianity.
“Em 1949, havia cerca de 3,5 milhões de católicos e apenas meio milhão de protestantes. Em 2012, as duas religiões tinham crescido, mas os católicos apenas três ou quatro vezes mais, enquanto os protestantes registaram um aumento exponencial.”
Por que é que o Protestantismo, que chegou à China apenas no início do século XIX, quando Robert Morrison, da Sociedade Missionária de Londres, aportou em Macau em 1807, está a suplantar o Catolicismo com que o jesuíta Matteo Ricci (ver cronologia) cativou o imperador da dinastia Qing no século XVI?
Explica o sinólogo Mungello: “O Catolicismo é uma igreja universal com uma autoridade central em Roma, embora esteja mais ou menos dividido entre uma igreja com bispos aprovados pelo governo e uma igreja não oficial com bispos obedientes ao Papa”
“O Protestantismo tem uma autoridade decentralizada e não uma estrutura unificada, uma flexibilidade que ajudou ao seu rápido crescimento. As house-churches protestantes não oficiais são difíceis de o governo controlar.”
“Não há uma hierarquia definida, com bispos ou um papa com os quais o regime possa negociar. Isto deu liberdade às igrejas protestantes para desenvolverem espiritualidades distintas.”

As autoridades chinesas não reconhecem as “house churches” que funcionam independentes do Estado, como esta em Puyang, na província de Henan, no centro do país
© Greg Baker | AFP | Getty Images | The Washington Post
A “sinização” tem visado, particularmente, os protestantes, que a Freedom House em 2017 considerava enfrentarem “um grau mais elevado de perseguição”. No entanto, David Mungello está convencido de que o objectivo do regime é “dominar elementos rebeldes em todas as religiões, sejam católicos, protestantes ou muçulmanos uigures, sujeitos a um encarceramento em massa em campos na província de Xinjiang, no noroeste”.
A redução no número dos que se referem a Deus como Tianzhu (Senhor dos Céus) não se deve apenas ao aumento no número dos que O veneram como Shangdi (Senhor nas Alturas). Outras razões explicam que haja “mais funerais do que baptismos” entre os católicos, como observa Richard Madsen, director do Fudan-UC Center on Contemporary China, na Universidade da Califórnia, San Diego, EUA.
A grande maioria dos católicos chineses vivia em zonas rurais, pobres e isoladas. Em regiões como Xi’an, por exemplo, constituíam 90% da população. Nos últimos dois anos, um êxodo para as cidades, impulsionado pela transformação da China numa potência económica, abalou profundamente estas comunidades, que Madsen define como muito conservadoras, desconfiadas do Governo central, da modernidade e do secularismo.
A baixa natalidade causada pela política do filho único, que vigorou do fim da década de 1970 até 2015, afectou muito as famílias católicas, que transmitiam a fé de pais para filhos. A média de idades, refere Madsen, é agora de 75 anos, o que agudiza uma crise de vocações.
“Os católicos gostariam de evangelizar, atrair novos conversos, mas a repressão por parte do Governo e a divisão da igreja em uma facção ‘oficial’ [Associação Patriótica Católica Chinesa] e uma ‘clandestina’ dificultam esta missão”, salienta Madsen.

O Cristianismo é a religião que mais cresce na China, sobretudo desde há 4 décadas, depois que a “tolerância” do reformista Deng Xiaoping substituiu a era de perseguições de Mao Zedong
© Asia News
A repressão continua a ser praticada porque o Catolicismo “ainda é visto, por muitos líderes governamentais chineses, como uma religião estrangeira e invasora”, afirma David E. Mungello. “Quando os missionários católicos chegaram à China em 1579, foram obrigados a negociar de uma posição de fraqueza com um forte Governo imperial em Pequim. Hoje, mais uma vez, a China e o seu Governo central são fortes. Xi Jinping é um líder autoritário que impõe restrições às religiões. Não se trata de uma nova tendência, mas a reafirmação do tradicional autoritarismo chinês.”
A resposta católica à repressão, sobretudo a partir de 1600, recorda Mungello, tem seguido dois padrões. “O primeiro, desenvolvido pelos jesuítas, privilegiava a acomodação, isto é, a disponibilidade para responder às exigências oficiais na esperança de melhorar a capacidade de praticar a fé. O outro padrão enfatizava o martírio, na convicção de que o sangue dos mártires seria a semente para novos cristãos e as conversões permitiriam aos católicos crescer para combater a opressão.”
“Estes dois padrões, de acomodação e martírio, ainda hoje prevalecem”, adianta o historiador americano. “Cada padrão tem os seus proponentes, mas a história não apresenta provas claras de que um seja mais eficaz do que outro, por isso, muitos católicos tentam imitar Cristo combinando os dois padrões de acção, ainda que ambos tendam a divergir.”

Uma bandeira da China é erguida por alguns dos fiéis que o Papa Francisco saúda, na Praça de São Pedro, na Cidade do Vaticano, em 2016
© AFP | South China Morning Post
Estes padrões talvez ajudem a contextualizar as reacções aos esforços do Papa Francisco para reaproximar o Vaticano e a China, de relações cortadas desde 1950. “A tentativa de diálogo dividiu ainda mais os católicos chineses, muitos dos quais consideram a Igreja ‘clandestina’ um refúgio que os protege dos lobos no Governo”, admite Mungello.
Depois de dez anos de preparação, um acordo que muitos não hesitam em considerar histórico foi anunciado a 22 de Setembro, reconhecendo a legitimidade do Vaticano na nomeação de futuros bispos da Igreja chinesa.
No dia 26, em resposta aos críticos, o Papa Francisco clarificou: “Este é um diálogo, mas será o Papa que nomeará [os bispos]. Que isto fique bem claro. (…) Penso na resistência dos católicos que sofreram. E sim, irão sofrer. Há sempre sofrimento num acordo, mas eles têm muita fé.”
No dia 16 de Outubro, dois bispos católicos chineses, Joseph Guo Jincai e John Baptist Yan Xiaoting, convidaram o Papa a visitar Pequim, depois de terem participado pela primeira vez – com permissão do regime – num sínodo no Vaticano. “Esperamos por ele”, disse Guo ao diário da Conferência Episcopal italiana, Avvenire. “A nossa presença aqui [em Roma] era considerada impossível, mas tornou-se possível.”
Uma visita papal à China terá uma grande importância, dado que não há relações formais entre o Vaticano e Pequim desde 1951. Taiwan, pressentindo que o acordo recém-firmado poderá levar ao corte de laços com Taipé, também convidou Francisco a visitar Taipé.

Joseph Zen, antigo cardeal de Hong Kong, nascido numa família católica de Xangai, acusou o Papa Francisco de “trair” os fiéis chineses
© Asia News
As iniciativas do Papa deixam apreensivos muitos católicos. Um dos principais críticos tem sido Joseph Zen, antigo cardeal de Hong Kong, nascido numa família católica de Xangai, que acusou Francisco de “trair” os fiéis.
A oposição de Zen, que foi repreendido pelo Vaticano, merece a simpatia de Anthony E. Clark, professor de História Chinesa na Universidade de Whitworth University, em Spokane, Washington, e autor de China’s Saints: Catholic Martyrdom during the Qing, 1644-1911.
“Estou muito desapontado”, lamentou Clark, numa entrevista que me deu, notando que Francisco, ao assinar um acordo com Pequim, “está a seguir “um caminho muito diferente” do dos predecessores, em particular João Paulo II, que considerava os regimes comunistas uma ameaça ao mundo. “Parece-me que a Santa Sé está agir com ingenuidade e a aceitar um compromisso perigoso”.
Recém-regressado da China, Clark diz que a maioria dos católicos com quem se encontrou, embora se mostrem ansiosos por uma visita do Papa, “sentem-se confusos por Roma alinhar, aparentemente, com um governo que se tem mostrado inconsistente no tratamento dos cristãos” e que “afirma abertamente pretender eliminar a religião.”
Clark desconfia das “mensagens contraditórias” enviadas pelos líderes chineses, mas o sociólogo Richard Madsen olha para os esforços do Vaticano como “um risco que vale a pena correr”, para fazer “renascer a evangelização”, mesmo que o Partido Comunista “espere um resultado oposto”.
Para Madsen, o acordo anunciado em Setembro “foi o primeiro passo numa complicada negociação sobre as relações entre a China e o Vaticano”, numa área específica “onde convergem os interesses” de ambas as partes.
“Ao contrário das negociações que fracassaram no passado, quando se tentou resolver ao mesmo tempo um amplo pacote de questões – incluindo o reconhecimento diplomático da República Popular da China e não de Taiwan –, desta vez os negociadores concentraram-se num pacote mais pequeno – a nomeação de bispos que servem a Igreja registada oficialmente.”

Católicos na aldeia chinesa de Paowo, na província de Shaanxi, dirigem-se para o “Monte da Cruz”, um lugar sagrado construído pelo missionário Liu Jialu para ser uma réplica do Calvário
© China Photos | Getty Images
Até agora, embora “mais de 95% dos bispos” já fossem aprovados pelo Vaticano e pelo Governo chinês, este era “um processo informal e complicado”, refere Madsen, especificando: “Um representante do Vaticano, num gabinete descaracterizado em Hong Kong, recolhia informação sobre possíveis candidatos a bispos e remetia-a ao Vaticano.”
“Havia depois discussões informais com responsáveis locais e nacionais para se chegar a um consenso sobre um candidato aceitável a ambas as partes. Havia aqui uma natureza ad hoc. A informação recolhida pelo representante do Vaticano – que não podia viajar para a China Continental – era necessariamente imperfeita.”
O acordo anunciado em Setembro, que “vai ao encontro da Lei Canónica, como a Igreja reclamava”, parece abordar também outra questão, relacionada com o estatuto de oito bispos ordenados sem autorização do Vaticano e, consequentemente, excomungados.
“A China quer que eles sejam reconhecidos e o Vaticano aceitou ‘perdoá-los’”, informa Madsen. “Suspeito que alguns deles poderão ser ‘convencidos’ a resignar. Atualmente, 100% dos bispos oficiais já são aprovados pelo Vaticano.”
O que fica por resolver, adianta o sociólogo americano, é o estatuto dos bispos da “Igreja clandestina”, aceites pelo Vaticano mas não pelo regime. “Eu pensava que este assunto ficaria encerrado, mas não. Além disso, o acordo também é ‘provisório’, ou seja, poderá ser revogado se uma das partes não gostar do rumo seguido.”
Para o historiador das relações sino-católicas David E. Mungello, o acordo “é mais uma promessa do que uma solução a longo prazo, para servir, sobretudo, os interesses das hierarquias” do Vaticano e da China.
“É uma vitória provisória das forças da acomodação a que resistirão os que se inspiram na memória dos mártires santos chineses”. Para estes, o compromisso “não vale o sacrifício dos católicos que foram presos ou perseguidos pela sua fé”
No entanto, conclui, “se a curto prazo, Xi Jinping é uma grande ameaça à Igreja Católica, vista a longo prazo, uma história de mais de quatro séculos marcada por tantos actos de devoção e milhares de mártires deixou, provavelmente, a Igreja Católica na China capaz de resistir a tudo.”
“A China reconheceu legitimidade ao Vaticano na nomeação dos bispos e isso é um progresso muito importante”
O padre jesuíta francês Benôit Vermander é um dos mais importantes estudiosos da China, onde vive desde 1992 e é professor de Antropologia Religiosa na Universidade (estatal) de Fudan, em Xangai. Doutorado em Ciência Política (em Yale e Paris) e em Teologia (em Taiwan, onde dirigiu o Taipei Ricci Institute), é consultor do Concelho Pontifical para o Diálogo Inter-religioso. Pintor (sob o nome artístico de Bendu), caligrafista, poeta, é autor de vários livros, como Les Jésuites et la Chine (2012), Chine brune ou Chine verte, les dilemmes de l’État-parti (2007) e Le Christ chinois, héritages et espérance (1998). Deu-me esta entrevista por e-mail:
O que é ser católico na China? Como define as relações entre as igrejas “oficial” e “clandestina”? O Catolicismo na China é ainda visto como uma religião estrangeira, uma ameaça ao Estado e ao Partido Comunista, ou já é tolerada como uma igreja “indígena”?
O actual estatuto do Catolicismo na China continua a ser, em grande medida, o de uma religião “nas margens”.
A partir do século XIX até ao êxodo em direcção às cidades no primeiro decénio do século XXI, desenvolveu-se um catolicismo dos campos, popular e rural, que manteve fortemente as suas próprias tradições.
O êxodo abalou profundamente a estrutura tradicional do catolicismo chinês, desconhecendo-se ainda se os golpes desferidos ao catolicismo rural estão a ser ou serão compensados pelo aparecimento de um novo catolicismo urbano.
Numa carta pastoral, [publicada] em Dezembro de 2007, Monsenhor Aloysius Jin Luxian, bispo de Xangai, evocava o fraco crescimento do número de católicos, comparado com o das igrejas protestantes, e discernindo as razões da ausência de espírito missionário dos leigos.
Estes olham ainda, frequentemente, para o trabalho de evangelização como sendo domínio exclusivo do clero (padres e religiosos), quando este mesmo clero, segundo o bispo de Xangai, mostra o perigo de dependência da televisão e da Internet.
A divisão entre igreja clandestina e igreja oficial não é assim tão nítida como habitualmente se diz. A oposição pode ser forte em certas províncias e mitigada noutras, e assistimos até a uma certa “divisão de trabalho” em algumas localidades.
As tradições locais, as feridas do passado, por vezes ainda não cicatrizadas, desempenham um grande papel. Não é uma questão de dogma, mas uma diferença na apreciação de oportunidades, de concessões aceitáveis ou não, que dependem em parte da atitude das autoridades locais.
A igreja oficial contará com cerca de 1900 padres, enquanto a igreja clandestina terá uns 1200. Várias estimativas apontam para um total de 10 a 12 milhões de fiéis católicos. Anthony Lam Sui-ki, [investigador] do Holy Spirit Center em Hong Kong, compilou e relacionou dados públicos com entrevistas no terreno.
A sua conclusão: em 2005, havia 12 milhões de católicos, um número que foi diminuindo ao longo dos anos e agora está em declínio. Ele estima que, actualmente, a população católica seja cerca de 10,5 milhões.
Entre 1996 e 2014, segundo os cálculos de Lam, o número de vocações masculinas passou de 2300 para 1260, enquanto o de vocações femininas caiu de 2500 para 156. O número de ordenações desceu de 134, em 2000, para 78, em 2015. Uma política nacional muito restritiva e a crise do catolicismo rural diminuirão mais acentuadamente o número de ordenações futuras.
Na edição de 3 de Março de La Civiltà Cattolica [revista jesuíta], escreveu um artigo em que aborda a campanha de “sinização” das religiões, que muitos comparam a “um esforço para reprimir o Cristianismo” na China. O que entende por “sinização” e porque apoiou este projecto?
Eu não apoiei! Escrevi claramente que os católicos na China devem evitar dois perigos. O apelo a uma “sinização religiosa” coincidiu com a aplicação de regras mais restritivas à prática da religião e, de um modo geral, com uma nova ênfase no papel dirigente do Partido [Comunista] em todos os aspectos da vida social e cultural.
Neste contexto, podemos entender que o apelo tenha enfrentado resistência por parte de muitos sectores religiosos: há perigos óbvios associados ao cumprimento cego de uma política ditada a partir de cima, que poderá conduzir a uma perda de substância na verdadeira essência da fé e identidade pessoal.
Nenhuma religião pode tornar-se mero instrumento de um aparelho político. As igrejas cristãs têm caído por vezes nesta armadilha, em contextos culturais e históricos, acabando por sofrer as consequências seja qual for a natureza do sistema político que lhes exige subserviência.
Por outras palavras, decência básica e fidelidade ao âmago das convicções pessoais têm de, necessariamente, guiar o modo como os cristãos (e provavelmente os fiéis de outras religiões) reagirão ao que as autoridades lhes exigem. Seguir de forma cega e irreflectida directrizes cujo conteúdo permanece vago é a primeira armadilha a evitar a todo o custo.
No entanto, é preciso prevenir também uma segunda armadilha: as igrejas cristãs não podem negligenciar o apelo à “sinização” só porque ele emana do governo.
É verdade que estas comunidades, porque têm de se defender contra todo o tipo de intrusões, são mais propensas a adoptar uma atitude defensiva, que impossibilita mudanças e inovações. A atitude certa, para os cristãos, é provavelmente ouvir o apelo e avaliar as mudanças, imaginárias e reais, mantendo-se conscientes dos perigos que daí possam advir.
Ainda não está claramente definido o que o governo espera que seja a acção das organizações religiosas e dos crentes. Ainda há espaço para o diálogo. As comunidades religiosas precisam de se adaptar a uma conjuntura em mudança – um contexto social urbano, muitíssimo diferente do ambiente rural em que a Igreja tradicionalmente funcionava.
A “sinização” de todas as religiões é um princípio adoptado pelo Partido [Comunista] em 2015 e solenemente reafirmado por Xi Jinping [o líder] no 22º Congresso, em Outubro de 2017. Esta política vai mais longe nas exigências e constrangimentos que impõe do que inicialmente se previa.
Em todo o caso, mesmo que esta política levante questões, é preciso ter em conta que na China tudo está sempre em evolução. Até mesmo no interior do partido começam a ouvir-se vozes para que as medidas prometidas sejam consideravelmente abrandadas ou amenizadas, porque é real o risco de ver multiplicados rancores e tensões.
Nos últimos dois anos, o Governo chinês tem sido acusado de uma “ofensiva contra o Cristianismo”, incluindo a demolição de igrejas, por exemplo. Será que a “sinização” vai pôr fim a esta alegada perseguição?
As directivas e políticas tornam-se cada vez mais e mais rígidas. Estão a criar e criarão mais tensões. No entanto, devemos evitar uma descrição apocalíptica da realidade. A dramatização de todas as notícias que vêm da China não ajuda os cristãos chineses, que tentam “safar-se” e viver a sua fé no dia a dia.
A maioria das comunidades continua a encontrar-se e a rezar em igrejas oficiais. A situação difere de lugar para lugar, por motivos que continuam a não ser claros. Mas deve ser sublinhado que a situação actual não se compara às perseguições sofridas durante a Revolução Cultural [1966-1976].
Como avalia a importância e o impacto do recente acordo (anunciado em 22 de Setembro) entre o Vaticano e Pequim sobre a nomeação dos bispos chineses?
O acordo estabelece um mecanismo para a nomeação de bispos ‘no futuro’, o que deverá eliminar uma grande fonte de tensões no passado. Obviamente que ambas as partes querem chegar a um entendimento sobre as nomeações – e isso será posto à prova com as primeiras escolhas que forem feitas.
Ambas as partes querem também manter a possibilidade de ajustar o processo de acordo com as dificuldades que poderão vir a encontrar no caminho. O mecanismo exacto não se conhece, mas naturalmente que visa um consenso sobre os candidatos mais apropriados. Este é um mecanismo para consolidar a confiança, permitindo novas e mais profundas discussões.
Eliminar esta fonte específica de tensão (o que não significa que todas as fontes de tensão sejam eliminadas!) poderá ajudar o diálogo entre o Vaticano e a China em temas como os refugiados e o aquecimento global. Para o Vaticano, é preciso envolver a China, de uma forma activa e positiva se quisermos fazer avançar questões da governação global.
Num contexto de acrescidas limitações e tensões religiosas, este acordo é visto como um sinal de que as rígidas políticas recentemente aplicadas pelo Governo [chinês] poderão ser mitigadas e equilibradas. É claro que tudo isto precisa de ser comprovado. Ainda não foi clarificado o estatuto dos atuais bispos da Igreja clandestina.
Poderá haver um acordo não escrito, ou um entendimento, com vista a uma maior tolerância para com estes bispos por parte do Governo chinês, ou sobre a possibilidade de eles virem a integrar uma futura Conferência Episcopal unificada. Esta poderá ser a parte mais difícil do que ainda falta fazer, o que talvez explique a ênfase no facto de o acordo ser provisório.
Ainda há, pois, muito trabalho a fazer e armadilhas a evitar. Contudo, o facto de, pela primeira vez, a China reconhecer a legitimidade do Vaticano na nomeação dos bispos representa um progresso muito importante.”
O Vaticano parece centrar-se em objectivos eclesiásticos enquanto a China provavelmente ainda espera um acordo político, com o restabelecimento de relações diplomáticas, em detrimento de Taiwan. Qual a sua opinião?
A política chinesa visa simultaneamente vários objectivos, e esses objectivos podem ser contraditórios ou expressos de forma diferente por um ou outro interlocutor chinês. É preciso evitar uma percepção monolítica da China e dos seus objectivos.
Quando certos limites são ultrapassados, é preciso dizê-lo claramente e, mais uma vez, poderão surgir no futuro problemas mais graves do que os actuais. É necessário, todavia e com todo o vigor, continuar o diálogo, para dar aos católicos mais espaço na sua própria sociedade.
É preciso permanecermos lúcidos, mas não ajudaremos em nada os católicos chineses se diabolizarmos sem cessar a China, como fazem alguns media americanos, por motivos que não são apenas religiosos.
História de encontros e desencontros

O missionário jesuíta Matteo Ricci, que ofereceu ao Cristianismo “cidadania na China”, e o seu amigo e discípulo Paulo Xu Guangqi, astrónomo, matemático, alto oficial do império no final da dinastia Ming
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1294: Os primeiros missionários católicos chegam à China com o franciscano italiano Giovanni da Montecorvino (1246-1328), graças à autorização do imperador Kublai Kahn, neto de Gengis Khan, da dinastia mongol Yuan (1271-1368). O cristianismo entrara no país em 635, com a Igreja Nestoriana do Oriente, no início da dinastia Tang (618-917);
1582: Após a morte de São Francisco Xavier, às portas da China, em 1552, é Matteo Ricci (1552-1610) quem inaugura as importantes missões jesuítas no final da dinastia Ming (1368-1644). Este homem que estudou em Coimbra e, em Macau, começou por compilar o primeiro dicionário de chinês-português, já tinha aberto residências missionárias em Zhaoqing (1584), em Shaozhou (1589), em Nanchang (1595) e em Nanjing (1598), quando se instala definitivamente em Pequim, em 1601. Tem autorização do imperador Wanli que, impressionado com os seus conhecimentos de linguista, geógrafo e cartógrafo, e o esforço de conciliar o pensamento católico com o património cultural chinês, incluindo os ritos do confucionismo, lhe oferece não apenas alojamento, mas permite a evangelização e conversão das elites. Para o jesuíta Giuliano Raffo, este encontro representa “a primeira vez que o Cristianismo obtém cidadania na China”;
1656: Luo Wenzao (posteriormente conhecido como Gregório López), torna-se o primeiro padre chinês. Embora convertido e baptizado pelo franciscano António de Santa Maria, é admitido na Ordem Dominicana em Manila (Filipinas), onde estuda e é ordenado. Em 1673, o Papa Clemente X nomeia Luo vigário apostólico de Nanjing, para suceder ao francês Ignace Catolendi. Luo recusa, mas em 1679 não pode desobedecer a um decreto do Papa Inocêncio XI. O seu superior consente, na condição de o novo bispo ser “um sábio e erudito”, aconselhado por missionários dominicanos, porque estes se opõem à tolerância por parte dos jesuítas da prática de ritos ancestrais chineses. Por não aceitar a requerida supervisão, Luo é consagrado em Cantão (Guangzhou) e não em Manila, em 1685, pelo franciscano Bernardino Della Chiesa. Tem mais de 70 anos. O segundo bispo chinês só é consagrado em 1926 – 241 anos depois;

O “édito da tolerância”, assinado em 1692 pelo imperador Kangxi (na imagem), foi
muito influenciado pelo padre jesuíta português Tomás Pereira
1692: O imperador Kangxi (1654-1722) decreta que todas as igrejas, “onde quer que se encontrem, devem ser preservadas”, e que “não haverá qualquer oposição a que os que desejem adorar a Deus entrem nesses templos”. Este “édito da tolerância” é muito influenciado pelo padre jesuíta português Tomás Pereira, que mantém uma relação privilegiada com o imperador, como conselheiro pessoal, mestre musical e emissário diplomático. É ele o tradutor nas negociações que conduzem ao primeiro tratado sino-russo, em 1689.
1704: O Papa Clemente XI interdita, formalmente, a inclusão dos ritos chineses na prática religiosa, vistos como “idolatria herética”, e o imperador Kangxi, considerando a ordem do Vaticano “uma afronta”, expulsa a delegação papal e a maioria dos missionários católicos. As perseguições aumentam, sobretudo após 1724, quando o imperador Yongzheng proíbe o oficialmente o Catolicismo. Sobrevivem comunidades católicas em zonas rurais, mas a Igreja entra em crise;
1814: O imperador Jiaqinq vai mais longe e proíbe todo o Cristianismo, condenando à morte os europeus, por proselitismo, e desterrando para regiões remotas os chineses que não revertam as conversões. Só em 1858, com o Tratado de Tianjin, é que a enfraquecida dinastia Qing volta a aceitar missionários, e o Catolicismo ressurge em força;

Chiang Kai-Chek, um cristão metodista (à esq.) estabeleceu relações entre a República da China e o Vaticano em 1942, mas, em 1951, Mao Zedong, fundador da República Popular da China (à dir.), corta os laços com a Santa Sé, desencadeando uma vaga de perseguições e repressão
1900: Cerca de 30 mil cristãos, missionários e convertidos são assassinados durante a Revolta dos Boxers como são apelidados os membros da Sociedade dos Punhos Harmoniosos, grupo que contesta o domínio estrangeiro da China;
1926: O Papa Pio XI (1867-1939) convida seis padres chineses a visitarem Roma e ordena-os bispos na Basílica de São Pedro, apesar do desacordo do episcopado missionário na China. São então criados vários vicariatos apostólicos, administrados por bispos chineses;
1942: O Vaticano estabelece relações diplomáticas com a República da China, liderada pelo cristão metodista Chiang Kai-shek, do partido nacionalista Kuomintang, que formaria um governo no exílio na ilha de Taiwan depois de derrotado na guerra civil chinesa;
1949: Em 1 de Outubro, Mao Zedong, rival comunista de Chiang, proclama a República Popular da China. Três milhões de católicos chineses e um milhão de protestantes são forçados a aceitar o novo regime, que professa o ateísmo;
1950-1955: A República Popular da China corta relações com a Santa Sé (em 1951). Missionários, padres, freiras e outros fiéis cristãos são forçados ao exílio. Muitos são presos, acusados de “sabotagem ideológica”. O Vaticano mantém relações diplomáticas com Taiwan;

Y. T. Wu (Wu Yaozong, 1893-1979), o líder protestante que, com o Movimento Patriótico das Três Autonomias (MPTA, autogoverno, autossustentação e autopropagação), procurou “harmonizar” Cristianismo e Maoísmo
1954: Um grupo de 138 líderes protestantes chineses publica o “Manifesto Cristão”, inaugurando o Movimento Patriótico das Três Autonomias (MPTA, autogoverno, autossustentação e autopropagação). Um dos fundadores é o pastor Y. T. Wu (Wu Yaozong, 1893-1979), que procura “harmonizar” Cristianismo e Maoísmo;
1957: Criação da Associação Patriótica Católica Chinesa (APCC), à semelhança do protestante MPTA. A resposta do Papa Pio XII (1876-1958) é a encíclica Ad Apostolorum Principis, publicada em 1958, com a qual condena as actividades da APCC e ordena a excomunhão dos bispos que esta escolher;
1966-1976: A Revolução Cultural de Mao intensifica a perseguição a todas as religiões. Milhares de clérigos e fiéis são presos, enviados para campos de trabalhos forçados ou executados. Igrejas são atacadas, confiscadas pelo regime e reutilizadas para fins não religiosos;
1981: Os católicos chineses são proibidos de jurar lealdade à Santa Sé, embora possam considerar o Papa “líder espiritual”, sem autoridade administrativa sobre a Igreja oficial;

Em 2017, o Vaticano estendeu a mão à China de Xi Jinping, o líder que tomou posse um dia depois da eleição de Francisco em 2013. Um acordo provisório sobre a ordenação de futuros bispos foi assinado em 22 de Setembro de 2018
1994: O Estado chinês impõe o registo obrigatório de todos os lugares de culto;
2000: O Papa João Paulo II (1920-2005) canoniza 87 mártires chineses. O regime em Pequim acusa o Vaticano de ingerência nos seus assuntos internos;
2007: Bento XVI escreve uma carta pastoral aos católicos da China, exprimindo interesse numa reaproximação a Pequim, mas as autoridades ressentem-se do facto de o Papa se dirigir aos fiéis e não directamente ao regime;
2014: A China abre, pela primeira vez, o seu espaço aéreo a um avião papal, durante a visita de Francisco à Coreia do Sul;
2017: O Vaticano estende a mão à China de Xi Jinping, o líder que tomou posse um dia depois da eleição de Francisco em 2013, procurando um acordo sobre a ordenação de futuros bispos;
2018: Todas as dioceses católicas da China recebem ordens dos bispos alinhados com o regime, para delinearem, até 2022, uma estratégia de “sinização”. O Partido Comunista Chinês e a Associação Patriótica passam a controlar não só clero e leigos, mas também documentos e interpretações históricas, teologia, doutrina social, arquitectura, arte sacra, liturgia e livros litúrgicos. Em 22 de Setembro, no dia em que a China e a Santa Sé assinaram o Acordo Provisório sobre a Nomeação dos Bispos, o Papa Francisco decidiu “readmitir na plena comunhão eclesiástica” oito bispos chineses que tinham sido ordenados “sem Mandato Pontifical”.
Estes artigos, agora revistos e actualizados, foram publicados originalmente na revista AlÉM-MAR, edição de Novembro 2018 | These articles, now revised and updated, were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, November 2018 edition. An English summary of these articles can be read here.