Com a descoberta de abundantes reservas de gás natural no Norte, Moçambique esperava a bonança. Mas em vez de prosperidade veio o pesadelo de um grupo armado islamista que alguns comparam ao Boko Haram. (Ler mais | Read more…)

Esta mulher e centenas dos seus vizinhos viram as suas casas queimadas durante um ataque terrorista em Naunde, na província de Cabo Delgado, em 5 de Junho de 2018. Ela não fugiu porque não tinha outro lugar que a abrigasse
© Zeinada Machado | HRW
Depois de cinco séculos de colonialismo, uma década de luta armada e dezasseis anos de guerra civil, Moçambique enfrenta agora um novo conflito. O campo de batalha é a província de Cabo Delgado, no extremo norte, onde jovens muçulmanos radicais semeiam o terror.
“É um inimigo oculto”, diz D. Luís Fernando Lisboa, Bispo de Pemba, a capital provincial. “Ninguém sabe exactamente quem é e o que quer. Não tem rosto nem interlocutor com que se possa dialogar.”
“A única coisa que percebemos é que ele é bem claro ao expressar a sua fúria, o seu descontentamento, a sua maneira de gritar e de chamar a atenção.”
O inimigo a que o bispo se refere, num comunicado, identifica-se como Ahlu Sunnah Wa-Jamâ (os que seguem a tradição profética) ou al-Shabaab (Juventude), não por ligações ao movimento jihadista com o mesmo nome na Somália mas por ser assim designado pelas gentes locais.
As suas tácticas de guerrilha – assassínios, incluindo decapitações, raptos e destruição de aldeias – evocam métodos de outra organização islamista, o Boko Haram, na Nigéria. O objectivo será impor a sua presença pelo medo, provocando reacções desproporcionadas das autoridades e virar contra estas as populações.
O primeiro ataque, com catanas, facas e armas de fogo, foi cometido contra três postos da Polícia em Mocímboa da Praia, em 5 de Outubro de 2017, de que resultaram 16 mortos. A violência intensificou-se desde Maio último, e o número de vítimas, dez delas degoladas, não pára de aumentar.

Um comerciante em Mocímboa da Praia fecha a sua loja, em 7 de Março de 2018, depois de ataques de presumíveis islamistas que obrigaram as autoridades moçambicanas a reforçar a segurança na região
© AFP
Ahlu Sunnah Wa-Jamâ ou al-Shabaab surgiu primeiro como um “grupo religioso”, provavelmente em 2011, para contestar as autoridades muçulmanas em Cabo Delgado que “não praticavam um Islão da linha do profeta Maomé”.
Só em finais de 2015 é que passou a “incorporar células militares”, revela o estudo Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique: O Caso de Mocímboa da Praia, da autoria do xeque Saide Habibe e dos académicos Salvador Forquilha e João Pereira.
Segundo estes investigadores, o grupo é constituído por jovens muçulmanos, a maioria da etnia Mwani, oriundos de Mocímboa da Praia e de distritos vizinhos. Muitos dos seus líderes têm ligações a “círculos religiosos, comerciais e militares de grupos islâmicos radicais na Tanzânia, Somália, Quénia e região dos Grandes Lagos.”
Para se distinguirem dos muçulmanos que criticam, os Shabaab usam “turbante branco à volta da cabeça, cabelo rapado, barba grande, bata e calças curtas de cor preta, apenas um pouco abaixo do joelho”.
Embora tenham afrontado os líderes muçulmanos locais (entrando calçados e armados nas mesquitas tradicionais, e depois criando os seus próprios templos), os jovens insurrectos têm um conhecimento rudimentar do Islão e uma doutrina pouco elaborada.
Vagamente, querem impor a Sharia (lei islâmica), desmantelar as estruturas do Estado, impor uma educação corânica e um maior controlo sobre as vestes e comportamentos das mulheres.
O financiamento do grupo provém, sobretudo, de “actividades ilícitas” que envolvem tanzanianos, chineses, vietnamitas e outros no tráfico de madeira, (que renderá cerca de 3 milhões de dólares por semana), carvão vegetal, marfim e rubis (extraídos de minas ilegais, são vendidos por mais de 20 milhões de dólares por ano).
O dinheiro angariado serve para “sustento pessoal e das famílias”, mas também para “aliciar novos membros, financiar propaganda do grupo e comprar armas em redes informais, internas e externas.”

O governo moçambicano mandou destruir a mesquita de Nanduadua, em Mocímboa da Praia (na foto), depois de um ataque de jovens radicais muçulmanos que usavam este templo, alegadamente, para propagar ideias extremistas
© AFP | The Daily Mail
O grupo, com 350 a 1500 membros, estrutura-se em “múltiplas células autónomas, unidades, divisões e figuras com poder diverso”, capazes de rapidamente superar a morte ou captura dos seus chefes, sem afectar a sua operacionalidade.
Tem bases internas (em Macomía, Mocímboa da Praia e Montepuez, onde são treinados por antigos polícias e guardas fronteiriços expulsos das corporações) e externas (na Tanzânia e Grandes Lagos, treinados por chefes de milícias contratados no Quénia e na Somália).
Importante salientar que todos o membros do grupo são “socialmente marginalizados, sem emprego formal e sem escolarização”. Entre eles há, também, jovens imigrantes, tanzanianos, somalis e outros, que chegam a Cabo Delgado “em busca de oportunidades”.
Os líderes do grupo receberam formação fora do país por “não terem espaço nas mesquitas locais”. Outros membros são vendedores que antes controlavam o comércio de produtos de primeira necessidade ou materiais de construção.
A pobreza, o desemprego, a exclusão social e política (sentimento de marginalização dos mwanis, maioritariamente muçulmanos, em relação aos macondes, predominantemente católicos) e a carência de serviços básicos (educação e saúde) são as principais razões apontadas para a adesão ao grupo. Mas há outras: “a busca de aventura e camaradagem, a oportunidade de realizar sonhos”.
Para os jovens rebeldes, o grupo é como que “uma nova família”, que lhes oferece “segurança e solidariedade, reconhecimento e valorização pessoal”. Representa, também, “uma forma de desafiar as autoridades locais e uma oportunidade de construir uma nova ordem social e política”.

Três décadas de austeridade, ajustamento estrutural e transferência de riqueza para os muito ricos agravaram as condições económicas da maioria das pessoas, que vêem o crescente enriquecimento no topo. Em Moçambique, os camponeses querem produzir mais, mas não tem autorização para lhes garantir mercados
© AFP | The Daily Mail
O aparecimento de al-Shabaab coincidiu com o início dos contratos para a exploração de gás natural liquefeito na Bacia do Rovuma – Moçambique tem as 12ªas maiores reservas confirmadas do mundo – num investimento inicial de 30 mil milhões de dólares [25.800 milhões de euros].
Um estudo macroeconómico conduzido pelo South African Standard Bank calculou em 600 mil o potencial de empregos que podem ser criados até 2035, o gás natural a representar 56% do PIB de Moçambique até à mesma data.
O problema é que os grandiosos projectos das petrolíferas estrangeiras não estão a beneficiar as populações do Norte. “Em Mocímboa da Praia, em Palma, etc… temos famílias cada vez mais pobres, que tentam desenrascar a vida com o comércio de rua”, diz-me, em entrevista por e-mail, Joseph Hanlon, especialista em desenvolvimento e autor de dois livros sobre Moçambique, o mais recente Galinhas e cerveja: uma receita para o crescimento.
“Os jovens e as famílias vêem os trabalhadores das companhias que exploram o gás chegarem com muito dinheiro, em grandes carros. Querem, por isso, desafiar o Estado, os xeques e a mesquitas locais. Pelo que se vê, estão a ser bem sucedidos.”
“Tudo isto faz parte de um fenómeno global – Itália, Brexit, Trump…”, comenta Hanlon, que foi conselheiro político da campanha Jubileu 2000 para cancelar a dívida dos países mais pobres.
“Três décadas de austeridade, ajustamento estrutural e transferência de riqueza para os muito ricos (1% ou 0,1%) agravaram as condições económicas da maioria das pessoas, que vêem o crescente enriquecimento no topo.”

“Os jovens e as famílias em Cabo Delgado vêem os trabalhadores das companhias que exploram o gás chegarem com muito dinheiro, em grandes carros. Querem, por isso, desafiar o Estado, os xeques e a mesquitas locais“
© AFP | The Daily Mail
Em Moçambique, adianta Hanlon, “estas políticas têm sido impostas pelo FMI e pelos doadores. Os camponeses querem produzir mais, mas Moçambique não tem autorização para lhes garantir mercados. Dezenas de milhares de camponeses não podem, por exemplo, vender os seus feijões boér por falta de mercados.
(Segundo um estudo da ONG britânica International Growth Centre, 1,2 milhões de produtores nos distritos das províncias de Nampula, no Norte, e Zambézia, no Centro, enfrentam uma grave crise económica devido à superprodução de feijão boér na Índia – seu único mercado internacional – que fez cair em mais de 50% o preço.)
“Moçambique não pode obrigar as companhias que vão extrair petróleo e gás a dar formação profissional e empregos aos locais, nem sequer exigir que os alimentos básicos sejam cultivados em Cabo Delgado”, lamenta Hanlon, antigo jornalista da BBC e do diário britânico The Guardian.
É uma situação dramática num país onde 15 milhões (quase 60%) dos seus 28 milhões de habitantes (dados de 2016) vivem em pobreza extrema, ou seja, com menos 1,90 dólares/0,84 cêntimos de um euro por dia.
Sobre a acção das forças de segurança moçambicanas, que já efectuaram centenas de detenções e encerraram as mesquitas do al-Shabaab, Hanlon acha que só “uma mão pesada não ajuda”, mas admite que elas “enfrentam “o dilema clássico de que a guerrilha está em vantagem – neste caso, um pequeno grupo ataca, mata e desaparece no espaço de uma hora, antes de aparecer a polícia. É muito difícil proteger os aldeões.”

Aisha, residente em Naunde, Cabo Delgado, diz que, no dia 5 de Junho de 2018, acordou às 2h da madrugada ouvindo tiros e gritos
© Human Rights Watch
A instabilidade, de que se estarão a aproveitar mercenários como o americano Erik Prince (da infame empresa Blackwater responsável por atrocidades do Iraque), que a troco de muitos milhões de dólares terá “oferecido “protecção” a Moçambique, está a provocar um êxodo. Centenas de pessoas em pânico fogem de aldeias costeiras, muitas delas abandonando os campos antes das colheitas.
A companhia de gás Anadarko suspendeu parte dos seus trabalhos e retirou funcionários. As embaixadas de Portugal, EUA e Reino Unido recomendaram aos seus cidadãos que evitem deslocações aos Norte.
Até que ponto, esta crise terá impacto nas eleições autárquicas de Outubro próximo, e nas legislativas, presidenciais e provinciais em 2019? “Na prática, a resposta política tem sido quase nula – da Frelimo ou Estado, da oposição ou da sociedade civil”, contata Joseph Hanlon.
“Desde há três anos que os habitantes em Cabo Delgado vinham alertando para a situação, mas o Governo e a Frelimo não reagiram – é como se o pessoal intermédio tivesse receio de dar más notícias aos seus superiores. Esta região costeira [e os mwanis, em particular] deu votos significativos à Renamo nas anteriores eleições em 2014, mas a Renamo não soube tirar partido.”
O presidente da Comunidade Islâmica de Moçambique, Abdul Rachid, recusa-se a acreditar que os rebeldes em Cabo Delgado sejam muçulmanos moçambicanos e que a motivação deles seja religiosa.
“São forças externas que vêm explorar um solo com riquezas”, acusa. “O Governo não deve recorrer apenas à força, mas também tentar entender as razões que levam às acções terroristas.”
Numa cerimónia que, em 15 de Junho, assinalou o fim do Ramadão, o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, fez um apelo à comunidade islâmica: “É essencial que as mesquitas continuem a incutir na nossa camada juvenil crenças e valores de maneira a evitar que façam uso da sua própria religião para promover o ódio e a violência.”
“A imagem do Islão é a de uma religião profundamente pacífica de valores nobres. Uma religião comprometida com o bem.”
O Bispo de Pemba, D. Luís Fernando Lisboa, deixou igualmente um conselho: “Não nos deixemos cegar por preconceitos religiosos, étnicos e políticos (…) para que a paz, que é sempre fruto de justiça, volte a reinar entre nós.”
“Uma seita que quer criar uma contra-sociedade”
Eric Morier-Genoud, professor na Queen’s University de Belfast, Irlanda do Norte, é especialista em história, política, religião, guerra e resolução de conflitos na África Austral. O seu último livro, publicado este ano, é The War Within: New Perspectives on the Civil War in Mozambique, 1976-1992. O próximo [publicado em 2019] abordará o Catolicismo e a política na região central de Moçambique. Deu-me esta entrevista, por e-mail:

Habitações queimadas no distrito de Macomía, província de Cabo Delgado, depois de um ataque atribuído a muçulmanos radicais
Como explica o aparecimento de um grupo islamista em Moçambique, país onde coexistem várias confissões religiosas?
Moçambique é um país onde as relações entre as várias religiões são bastante harmoniosas e positivas. Dito isto, tem havido uma radicalização de alguns sectores religiosos nos últimos vinte anos, em particular cristãos protestantes e muçulmanos.
Em meios islâmicos cresceu uma corrente que quer aplicar a Sharia, rejeitando o Estado secular que existe. Em 2014, nasceu na cidade de Mocímboa da Praia uma seita chamada Ahlu Sunnah Wa-Jamâ [seguidores da tradição profética] ou al-Shabaab [Juventude, como os locais designam os membros do grupo], que tentou estabelecer uma contra-sociedade, à volta das mesquitas que foi criando.
O objectivo é viver segundo os princípios da lei islâmica, sem interacção com o Estado e o resto da sociedade, proibindo os seus membros de frequentarem escolas e hospitais públicos, ou de interagirem com a administração central.
Como é que descreve o Islão em Moçambique, e como é que a comunidade islâmica nacional está a reagir a esta insurreição?
O censo de 2007 revela que 17,8% da população em Moçambique segue o Islão – a percentagem é provavelmente mais alta, porque em certas zonas apenas foram contados como muçulmanos os que rezavam nas mesquitas cinco vezes por dia. No Norte de Moçambique, esta religião é dominante.
Em Cabo Delgado, 58% dos habitantes são muçulmanos, sobretudo ao longo da costa. Todas as organizações provinciais e nacionais reagiram duramente contra esta insurreição. Todas condenaram a violência e denunciaram as interpretações religiosas radicais e heterodoxas da rebelião.
As autoridades em Cabo Delgado têm colaborado com a Policia desde o início, porque estão muito preocupadas que o bom nome do Islão possa vir a ser manchado por esta minoria violenta cujos princípios a maioria não reconhece.
Esta é uma rebelião de carácter fundamentalmente religioso ou a ambição é controlar os recursos de petróleo e gás numa província pobre de maioria muçulmana? E é um fenómeno circunscrito ao Norte?
A rebelião é um fenómeno, por enquanto, limitado ao Norte de Moçambique. Os ataques têm sido cometidos apenas em Cabo Delgado, em seis distritos, de Pemba [a capital da província] até à fronteira com a Tanzânia.
Há um debate sobre as causas desta insurreição. Alguns analistas acham que o terrorismo islâmico internacional já se infiltrou em Moçambique. Outros acham que há uma ligação às riquezas descobertas na zona, mais precisamente jazigos gigantes de gás e petróleo.
Dizem também que há ligação a uma economia criminosa na região, seja a exploração ilegal de madeira e de pedras preciosas, ou a caça furtiva e contrabando com a Tanzânia.
Na minha opinião, com base em informação e pesquisa a que tive acesso, esta rebelião é, principalmente, um fenómeno religioso.
Existem ligações à sociedade e economia locais e ao mundo islâmico internacional, mas os insurrectos querem, acima de tudo, estabelecer uma sociedade regulada pelo Direito islâmico.
Há também elementos que apontam para a ambição de restaurar os xeicados e sultanatos swahilis que existiram na região antes da efectiva colonização portuguesa.
Há analistas que relacionam este fenómeno islamista com “tensões etno-raciais, religiosas, políticas, geracionais” e outras, referindo que a chegada de companhias estrangeiras para explorar os hidrocarbonetos no Norte alterou a relação de forças entre as etnias Mwani e Maconde. Concorda?
A insurreição emergiu num meio particular, feito de tensões sociais, económicas, políticas e religiosas muito fortes. Havia expectativas de desenvolvimento que não se concretizaram. Há tensões geradas pela posse da terra.
Há tensões comunitárias fortes entre mwanis e macondes. Embora haja, aparentemente, muitos mwanis que aderiram al-Shabaab, há também pessoas de outras etnias e de outras regiões de Cabo Delgado, homens de Nampula e alguns estrangeiros. A questão é complicada e vai precisar de muito mais estudos.
Mas parece certo que a insurreição beneficia ou poderá aproveitar-se destas frustrações, destes sentimentos de marginalização e das tensões sócio-religiosas existentes, para ganhar mais apoios e se expandir.
Não é automático nem garantido, mas é possível. Vai depender, em parte, da resposta à situação que o Estado moçambicano e as multinacionais do gás e petróleo que trabalham em Cabo Delgado estão a dar e irão dar.

Mesquita em Pemba, capital de Cabo Delgado: O presidente da Comunidade Islâmica de Moçambique, Abdul Rachid, recusa-se a acreditar que os rebeldes na província sejam muçulmanos moçambicanos e que a motivação deles seja religiosa
© Mercedes Saiagues | irinnews.org
Como é que as forças de segurança estão a lidar com a situação? Têm os meios necessários para resolver a crise?
Os comunicados da administração do Estado e das Forcas de Defesa são muito limitados e por vezes contraditórios. Não é, por isso, muito claro o que está ou não a ser feito.
O que sabemos é que o Estado organizou [em Junho] um comando regional para Cabo Delgado e tem vindo a estabelecer parcerias com países da região que enfrentam o mesmo tipo de problemas.
Moçambique firmou já um acordo com a Tanzânia para, em conjunto, lidarem com esta insurreição que tem ligações transfronteiriças. Também assinou um acordo com a República Democrática do Congo e com a Uganda, assim como com outros países, como a Rússia, para a partilha de informações e treino de tropas.
A Polícia tem meios e unidades adequadas para este tipo de trabalho. A minha preocupação tem mais a ver com a resposta do Estado em matéria social, política e religiosa – o ‘psicossocial’, como dizem os militares.
Líderes muçulmanos queixam-se que a Polícia está a reprimir indiscriminadamente, e avisam que isso pode criar ressentimentos entre a maioria dos crentes. É, pois, necessário uma acção que impeça a insurreição de explorar o sentimento de marginalização e as tensões sociais.
Este é um fenómeno circunscrito ou poderá alastrar-se a outras regiões de Moçambique a e a países vizinhos?
O fenómeno está circunscrito, por enquanto, mas parece que ganhou algum terreno, em Maio e em Junho, afectando agora seis distritos de Cabo Delgado.
Muita gente receia que a insurreição se alastre ao sul desta província, ou que possa chegar à muito populosa província de Nampula onde mais de 38% da população é muçulmana e de onde são originários alguns membros da seita.
Como disse antes, não é garantido: vai depender das escolhas estratégicas da insurreição, assim como da resposta militar, social e psicossocial do Estado moçambicano e dos seus parceiros.
Há laços entre o grupo islamista e a Renamo [que os mwanis têm apoiado, ao contrário dos macondes, mais próximos da Frelimo]?
Não há e não creio que possa haver. A Renamo é um movimento secular, tal como a Frelimo. É interessante que muitos elementos da Renamo olhem de forma negativa para esta insurreição, como uma conspiração, uma criação da Frelimo, ou que a Frelimo a esteja a usar para atrasar as negociações entre o Governo e a Renamo, para deste modo se manter no poder.
A prazo, todavia, considero que a rebelião poderá vir a aproximar os dois partidos para, juntos, a combaterem.
Uma província rebelde

O Governo de Moçambique foi obrigado a mobilizar tropas para tentar travar a insurreição islamista na província de Cabo Delgado
© Schalk van Zuydam | AP
Cabo Delgado, onde células de muçulmanos radicais semeiam o terror desde Outubro de 2017, foi onde a secular Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) começou a luta armada, a partir da vizinha Tanzânia, contra o poder colonial português, em 25 de Setembro de 1964.
A independência chegou em 1975, mas a paz foi interrompida de 1977 até 1992, quando a Renamo, criada pela antiga Rodésia (actual Zimbabwe), se revoltou contra a Frelimo, ex-partido único.
O conflito causou, por todo o país, cerca de um milhão de mortos, cinco milhões de deslocados internos e milhares de amputados. As cicatrizes desta guerra civil ainda não cicatrizaram.
Com 2,3 milhões de habitantes, 58% dos quais fiéis ao Islão, distribuídos por três principais grupos étnicos (Maconde ou Makonde, Macwa e Mwani), Cabo Delgado é uma das regiões mais pobres de Moçambique.
Os macondes, maioritariamente católicos, serão a base da Frelimo, que detém a Presidência da República e uma maioria no Parlamento desde as eleições gerais de 2014.
Os mwanis, predominantemente muçulmanos, pobres, marginalizados e excluídos dos projectos de desenvolvimento (gás e petróleo), estarão mais próximos da Renamo, a oposição que não reconheceu a derrota e não tem sabido capitalizar a sua popularidade local.
“Terras de Mussa ibn Bique”
* Moçambique deve o nome ao seu primeiro governante, um emir árabe muçulmano chamado Mussa bin Bique (Moisés filho de Ambique). Os portugueses, que aqui chegaram com Vasco da Gama em 1498, referiam-se à região como “Terras de Mussa bin Bique”, expressão posteriormente simplificada para Moçambique.
* O Cristianismo continua a principal religião de Moçambique nas suas várias denominações. Os muçulmanos, na maioria sunitas, representam 17,9% da população, menos do que os católicos (28,4%), ateus e agnósticos (18,7%), mas mais do que os cristãos protestantes sionistas (15,5%), os cristãos protestantes evangélicos (10,9%), as crenças tradicionais (7,3%) e os cristãos anglicanos (1,3%);
* Os povos de Moçambique pertencem ao grupo dos Bantu, que habita toda a África a sul do Saara e que, por sua vez, tem várias etnias. Em Cabo Delgado destacam-se duas: Maconde e Mwani. Os macondes são maioritariamente católicos e os mwanis predominantemente muçulmanos.
Estes artigos, agora actualizados, foram originalmente publicados na revista ALÉM-MAR, edição de Julho-Agosto de 2018 | These articles, now updated, were originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, July-August 2018 edition