Obcecado em desmantelar o legado de Obama e em mudar o regime em Teerão, o actual presidente dos EUA deixou o Médio Oriente à beira de nova guerra, ao repudiar o acordo nuclear com o Irão. Enfraqueceu também a aliança transatlântica, ao abandonar mais um compromisso internacional, ameaçando empresas europeias com sanções. (Ler mais | Read more...)
Por que motivo está Donald Trump ansioso por se reunir com Kim Jong-un, orgulhoso do seu arsenal atómico, e acaba de renegar um acordo que demorou vários anos a negociar e impediria o Irão de desenvolver armas nucleares?
“Primeiro, porque Barack Obama nunca chegou a um entendimento com a Coreia do Norte e, por isso, não há qualquer legado para o actual presidente dos EUA desfazer”, diz-me, em entrevista por e-mail, Rouzbeh Parsi, professor de Estudos de Direitos Humanos na Universidade de Lund, na Suécia e director do European Iran Research Studies. “Segundo, porque não há qualquer animosidade ideológica em relação à Coreia do Norte nos círculos que rodeiam Trump, tanto quanto a que nutrem pelo Irão.”
Trump e Kim insultaram-se várias vezes publicamente. O primeiro ofendeu o segundo como “maníaco”, “Little Rocket Man numa missão suicida”; o segundo injuriou o primeiro como “lunático” e “psicopata”. Estes vitupérios mútuos não impediram que fosse agendada uma cimeira bilateral para 12 de Junho, em Singapura.
Mas “o estilo de Trump impossibilita qualquer encontro” entre o presidente iraniano, Hassan Rouhani, “independentemente [de ter ou não luz verde de [Ali] Khamenei”, o Supremo Líder em Teerão, salienta Parsi. “Trump acha-se superior e emite ultimatos – os iranianos nunca aceitariam isso como princípio de conversa.”
Horas depois de ter condenado o “regime assassino” em Teerão, no seu discurso de 19 de Setembro de 2017 na Assembleia Geral das Nações Unidas, Trump terá convidado Rouhani para jantar em Nova Iorque. O presidente francês, Emmanuel Macron, tentou convencê-lo a aceitar; Khamenei não autorizou. Para alguns foi uma oportunidade perdida, mas a revista The American Conservative anota que Trump não pretendia cessar hostilidades e sim reforçar a ameaça de que “a janela dourada de oportunidade aberta por Obama chegara ao fim”.
“Trump está, acima de tudo, empenhado em desfazer tudo o que se relaciona com a presidência de Obama”, sublinha Rouzbeh Parsi. “E rodeou-se de pessoas como Mike Pompeo [ex-chefe da CIA e actual secretário de Estado] e John Bolton [conselheiro nacional de segurança] que, por razões várias (Israel, supremacia americana, antipatia geral para com a República Islâmica), têm como única finalidade mudar o regime em Teerão.”
Ao renunciar ao chamado Joint Comprehensive Plan of Action (JCPoA), de que sempre desdenhou, (re)impondo duras sanções, Trump quer firmar um acordo alternativo – não especificado –, que inclua “o programa de mísseis balísticos de Teerão, o seu apoio a grupos extremistas e outras actividades malignas no Médio Oriente – Síria, Líbano e Iémen”. Mas por que não aceitou a sugestão de Macron de negociar um acordo complementar ao já existente, sem violar o que estava em vigor desde 2015?
E como vão os iranianos, que têm respeitado os seus compromissos, validados por rigorosos inspectores de armas da ONU, voltar à mesa das negociações com um presidente que tem revogado vários compromissos internacionais – do Tratado Transpacífico ao Acordo de Paris – para agradar à sua base eleitoral?
O Irão só se manterá no acordo, acredita Rouzbeh Parsi, se os dividendos que dele obtém (relações e comércio com a Europa) se mantiverem substanciais, e não apenas promessas num pedaço de papel”.
Para já, “Teerão está em modo de esperar, para ver se a União Europeia irá salvaguardar o JCPoA e aplicar contra-medidas que neutralizem sanções secundárias dos EUA – o principal instrumento legal com que a América penaliza as empresas de outros países que fazem negócios com o Irão.”
Depois de tentar, em vão, apaziguar Trump, a UE parece agora disposta a aprovar legislação para amparar as empresas europeias que venham a ser penalizadas pelo sistema financeiro americano, como aconteceu em 1996, quando os EUA impuseram um embargo a Cuba. Neste caso, os europeus recorreram à Organização Mundial do Comércio e acabaram por forçar Washington a um acordo político.
Na quinta-feira, 3 de Maio, na cerimónia de atribuição do Prémio Carlos Magno a Macron, a chanceler Angela Merkel reafirmou que “a Europa já não pode contar com os EUA para a proteger e deve tomar o seu destino em mãos – esse é o desafio do futuro.”
Desde a assinatura do JCPoA, os europeus beneficiaram em várias áreas de negócios com o Irão, da venda de aviões comerciais até ao maior contrato de petróleo e gás assinado com o gigante francês Total.
A companhia estatal IranAir tinha encomendado 200 aviões de passageiros (100 à Airbus SE, 80 à Boeing e 20 ao consórcio franco-italiano ATR), mas dependentes de licenças americanas, uma vez que 10% das peças sobressalentes e mão-de-obra provém de empresas nos EUA, todos estas transacções estão sujeitas a sanções. A decisão de Trump significa prejuízos de 40 mil milhões de dólares para a Boeing e a Airbus.
“A UE não está unida”, lamenta Rouzbeh Parsi. “O [grupo] E3 [composto por Alemanha, França e Reino Unido] tentou tudo para que Trump mudasse de ideias. A Itália, a Espanha e a Suécia não acreditavam no sucesso destes esforços, mas a Polónia, a Hungria e a República Checa estão ideologicamente muito próximas de Trump. É, pois, uma incógnita saber até que ponto haverá uma posição comum europeia para instituir contra-medidas” às sanções americanas.
Se americanos (e europeus) viram as costas à segunda maior economia do Médio Oriente e Norte de África, com mais de 300 milhões de consumidores, um dos grandes beneficiários será a China. Desde 2016, mais do que duplicou o seu comércio com o Irão, para 28 mil milhões de dólares.
Também a Rússia será favorecida: duas companhias aéreas iranianas assinaram recentemente contratos para comprar 40 aparelhos Sukhoi Superjet-100s, num total de 2000 milhões de dólares.
Uma das consequências imediatas do que a jornalista iraniana-americana Christiane Amanpour descreveu como “o maior acto deliberado de auto-sabotagem em política geoestratégica na era moderna” foi deixar Teerão e Telavive à beira de uma guerra total.
Na sexta-feira, 4 de Maio, Israel atacou praticamente toda a infra-estrutura militar iraniana na Síria, na maior ofensiva desde 2011. Estes bombardeamentos seguiram-se ao lançamento de 20 rockets, por forças iranianas, contra posições israelitas nos Montes Golã ocupados.
Israel saudou a decisão de Trump, tal como a Arábia Saudita, países que consideram o Irão “uma ameaça existencial”. Telavive e Riade, diz Rouzbeh Parsi, “não aceitam que Teerão exerça qualquer influência regional, e esta exigência nunca será aceite em negociações – daí o risco de guerra. Duvido que haja um Plano B.”
“Estamos todos deprimidos”, diz Samira
Em Isfahan, a cidade iraniana que ainda acredita ser “a metade do mundo”, Samira (nome fictício, para garantir a sua segurança) geóloga, 28 anos, não ficou surpreendida com a decisão de Donald Trump de romper o acordo nuclear.
“Sabíamos que seria esse o desfecho desde que ele foi eleito”, diz-me, numa entrevista por telefone. “Sabíamos que a nossa vida iria piorar.”
A atmosfera era diferente quando o acordo foi assinado em 2015. “Começámos finalmente a ter esperança num futuro melhor. Fomos para as ruas celebrar. Muitos de nós estávamos felizes porque a nossa relação com o Ocidente iria melhorar”, depois de mais de três décadas de isolamento.
Samira notou que “mais países europeus estavam a investir no Irão e que o turismo começou a desenvolver-se.” Sobre o efeito que as sanções anunciadas por Trump poderá ter numa economia que vinha crescendo gradualmente, ela diz que “ainda é cedo para avaliar”, embora se note uma acentuada desvalorização do rial face ao dólar americano. “Estamos todos deprimidos”, este foi o “impacto imediato”.
Trump confia em que as sanções precipitarão o colapso de um regime que enfrenta protestos populares contra o desemprego e o empobrecimento, e pressões para uma maior abertura social, como o fim do uso do hijab imposto às mulheres.
Samira diz que não sabe se o governo teocrático vai reformar-se ou se a reforma ditará o seu óbito. “Não tenho capacidade para prever isso, mas temo que o fim do acordo nuclear venha a reforçar a linha dura” em detrimento dos pragmáticos.
“Não tenho grandes expectativas”, conclui. “Muitos de nós receamos uma nova guerra, como a que matou o irmão da minha mãe, mártir do conflito com o Iraque [em 1980-1988]. Eu só gostava que o Ocidente percebesse que está a arruinar as vidas do cidadão comum iraniano, não as dos políticos.”
Este artigo foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO, em 12 de Maio de 2018 | This article was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on May 12, 2018