Igrejas que sofrem

Os muçulmanos Rohingya são o mais oprimido dos grupos étnicos na Birmânia/Myanmar. Não as únicas vítimas. A lei reconhece as “raças” das minorias cristãs, mas não lhes tem garantido existência pacífica. (Ler mais | Read more...)

Missa na igreja católica da aldeia de Htaykho no estado de Kayah. Os cristãos birmaneses também são perseguidos num país onde o Budismo é cada vez mais uma “religião de Estado”
© christiantoday.com

O Cristianismo é a segunda maior religião (6,2%) na Birmânia/ Myanmar, um país de 51,5 milhões de habitantes, predominantemente budista. Os seus fiéis (protestantes, católicos, metodistas, anglicanos e outros) pertencem sobretudo às minorias Chin, Kachin e Kayin/Karen, grupos étnicos incluídos numa lista de “135 raças nacionais”, em 2014, e que têm assegurada a cidadania, segundo uma lei aprovada em 1982.

É um estatuto de privilégio, se comparado com o dos muçulmanos Rohingya no estado de Rakhine, apátridas e privados de todos os direitos básicos, alvos de “limpeza étnica”, em risco de genocídio.

A dos cristãos, não tem sido, porém, uma existência livre de discriminação, perseguições e outros abusos.

Porque, não obstante mais de 500 anos de presença católica (desde 1510, quando chegaram missionários e mercenários portugueses), o Cristianismo, é ainda visto por muitos – de responsáveis militares a monges ultranacionalistas – como “uma religião importada pelo poder colonial”. Uma fé de “estrangeiros”, como os Rohingya, que traçam as suas origens aos séculos XV e XVI.

Os Chin

© weloveitwild.com

Na maioria (70-80%) cristãos evangélicos baptistas, graças à influência de missionários americanos, os cerca de 1,5 milhões de Chin vivem num estado homónimo, no noroeste. Administrado por chefes locais, o território Chin manteve-se durante séculos livre de ingerência estrangeira, mas a ocupação britânica (1824-1948) desestabilizou a região.

Aliados dos ingleses contra os japoneses na II Guerra Mundial, os Chin combateram, em 1942, o exército nacionalista de Aung San, gerando ressentimentos que perduram, apesar de, em 1943, terem sido uma das minorias que o pai de Aung San Suu Kyi convenceria a assinar o Acordo de Panglong, que lhes garantia o direito de cisão dez anos depois de integrarem a secular União da Birmânia.

Aung foi assassinado em 1947, em vésperas da independência, as promessas inscritas na Constituição não foram cumpridas e os Chin revoltaram-se. Criaram um movimento político, Frente Nacional Chin (FNC), e dotaram-no de um braço armado, Exército Nacional Chin (ENC), que se tornaria, em 1988, num dos núcleos da luta contra a ditadura militar (1962-2011).

Os cristãos Chin têm sido vítimas de perseguição religiosa (conversões forçadas, igrejas vandalizadas ou restrições à construção de locais de culto e cemitérios) extorsão, expropriação de terras e trabalho escravo, detenções arbitrárias, tortura, violência sexual e execuções extrajudiciais. Mais de 60 mil estão refugiados na Índia e outros 20 mil na Malásia.

Os Kachin

© AFP

Entre 75 e 97% dos habitantes do estado de Kachin são cristãos que se converteram durante a ocupação britânica da Birmânia (1824-1948), o que contribuiu para a sua marginalização. Além da fé, os Kachin são conhecidos por extraordinárias capacidades militares.

Durante a II Guerra Mundial, juntaram-se aos Aliados contra os japoneses, ganhando o epíteto de “assassinos amigos”.

Em 1961, descontentes com as políticas discriminatórias do Governo central e a imposição do Budismo como religião de Estado, criaram o Exército de Independência Kachin (KIA), que se transformaria numa das maiores forças étnicas de resistência armada.

Após meio século de conflito, financiado pelo comércio mundial de jade, que controlavam, os Kachin assinaram um cessar-fogo com a antiga junta militar, em 1994.

A trégua foi rompida pelo regime em 2011, ao exigir que o KIA se tornasse numa Guarda Fronteiriça e cedesse o controlo estratégico de áreas com barragens hidroeléctricas e oleodutos de gás e petróleo.

Os Kachin recusaram e o exército lançou uma violenta ofensiva, causando cerca de cem mil deslocados internos (alguns ainda se abrigam em igrejas) e dez mil refugiados, na China e na Tailândia.

Em Kachin, que permanece um estado militarizado e onde o cultivo de ópio e uma epidemia de HIV abalam as estruturas da sociedade, continuam os abusos de direitos humanos, incluindo violência sexual, trabalho forçado e expropriação de terras.

Os Karen

© atlasofhumanity.com

O cerca de sete milhões de Karen (ou Kayin, nome do seu estado) clamam o estatuto de nação, e não apenas de minoria, que se estabeleceu na Birmânia por volta de 3000 a.C., talvez proveniente da Mongólia.

Uns 70% dos Karen têm origem em dois grandes grupos de animistas convertidos: os Sgaw, na maioria cristãos; e os Pow, predominantemente budistas. Os missionários protestantes americanos que começaram a chegar em 1813 definiriam uma identidade cristã entre os Karen e ajudaram-nos a criar, em 1881, a sua primeira organização política: a Associação Nacional Karen (KNA).

Nas três Guerras Anglo-Birmanesas e na II Guerra Mundial, os Karen aliaram-se aos britânicos esperando que a paz se traduzisse em independência, mas o fim da colonização não foi, para eles, a libertação esperada.

Tendo boicotado o Acordo de Panglong, os Karen criaram, em 1947, a União Nacional Karen (KNU) e, dois anos depois, o seu braço armado, KNLA, iniciou uma das “mais longas guerras civis do mundo”, reivindicando o estado soberano de Kawthoolei.

Tal como outros grupos étnicos, os Karen continuam a ser vítimas de abusos. São usados, por exemplo, como escudos humanos em operações de desminagem ou expulsos das suas aldeias, muitas das quais têm sido queimadas.

Em 2011, findo o regime militar, uma KNU dilacerada por lutas internas e dividida em sete facções assinou o cessar-fogo com o novo Governo.

Em Março, o exército quebrou a trégua e as hostilidades recomeçaram. Pelo menos dois milhões de Karen são deslocados internos em Kayin e outros dois milhões são refugiados em países vizinhos, sobretudo na Tailândia.

Fontes:

Asia Times, burmacampaing.org.uk, Burma Link, International Crisis Group, Human Rights Watch, Oxford Burma Alliance, U.S. Commission on International Religious Freedom, World Directory of Minorities and Indigenous People – Myanmar/Burma

O mosaico birmanês

  • A República da União de Myanmar (assim designada desde 2010) situa-se no Sul da Ásia, limitada a norte e nordeste pela China, a leste pelo Laos, a sudeste pela Tailândia, a sul pelo Mar de Andamão e pelo Canal do Coco, a oeste pelo Golfo de Bengala e a noroeste pelo Bangladesh e pela Índia.
  • O país tornou-se independente do Império Britânico em 4 de Janeiro de 1948 como “União da Birmânia”. Foi governado por uma junta militar desde o golpe de 1962 até à sua dissolução em 2011. O poder civil regressou após as eleições de 2015.
  • Numa área de 678.500 km2, a antiga Birmânia é constituída por sete estados, dominados por minorias étnicas (Chin, Kachin, Kayah, Kayin, Mon, Rakhine/Aracão e Shan) e sete regiões administrativas, onde se concentra a maioria Bamar (Ayeyarwady, Bago, Magway, Mandalay, Sagaing, Tanintharyi e Yangon)
  • Não há estatísticas fiáveis sobre a composição demográfica. O último censo, em 2014, calculou em 51,5 milhões o número total de habitantes, mas mais de um milhão de muçulmanos Rohingya foram excluídos, classificados como “outros”, assim como muitos milhões de birmaneses que vivem foram do país.
  • Oficialmente, são reconhecidas 135 “raças nacionais” integradas em oito grandes grupos étnicos: Bamar/Birmaneses (68%, com nove “raças”), Chin (53), Kachin (12), Kayin/Karen (11), Kayah/ Karenni (nove), Mon (uma), Rakhine/Aracaneses (sete) e Shan (com 33).

Francisco: O construtor de pontes

Foi uma viagem histórica que alguns compararam à travessia de um campo minado. Em Myanmar e no Bangladesh, o Papa teve de ir ao encontro da esperança dos católicos, da expectativa dos budistas e das aspirações dos muçulmanos. 

O Papa em Yangon, na Birmânia
© CBCM | Getty Images

O Papa Francisco seguiu à risca o conselho de Charles Bo na sua visita oficial a Myanmar – a primeira de um chefe da Igreja Católica a este país de maioria budista.

Evitou pronunciar a palavra “Rohingya” nos quatro dias da viagem (27 a 30 de Novembro de 2017), fosse nas audiências com a chefe do Governo, Aun Sang Suu Kyi, e outros responsáveis políticos e militares, diplomáticos e religiosos, como nas duas missas que celebrou ou na visita que fez a um lar das Missionárias da Caridade de Madre Teresa.

Alguns ficaram desapontados, porque Francisco sempre defendeu a perseguida minoria muçulmana do estado de Rakhine, e porque Bo, o primeiro cardeal birmanês, tem sido um “porta-voz” dos Rohingya e crítico dos “mercadores da morte”, envolvidos numa “campanha de limpeza étnica”.

Mas nem o Bispo de Roma nem o arcebispo de Yangon poderiam hostilizar os anfitriões numa altura em que procuram robustecer a minoria católica de Myanmar (600 mil pessoas ou 1% dos 51,5 milhões de habitantes) e consolidar o processo democrático depois de meio século de ditadura militar.

Tradicionalmente, os católicos birmaneses (90% dos quais pertencentes às etnias Karen, Kachin, Chin, Shan e Kaw) não se envolviam em questões políticas.

Talvez por serem frequentemente considerados “cidadãos de segunda classe”, explica Jean Auffray, correspondente do site francês la-croix.com. Muitos não tinham sequer cartão de cidadão, “o que os impedia de beneficiar de direitos associados à nacionalidade”.

Uma freira do estado de Kachin, na Birmânia, mostra a fotografia do Papa Francisco no écrã do seu telemóvel, durante a viagem de comboio de dois dias que a levou de Mytikyna a Yangon para ver o chefe da Igreja Católica
© Ann Wang | Reuters

Depois de anos a perder terreno para as comunidades evangélicas em ascensão, há agora sinais de mudança. Mais jovens católicos aspiram ao sacerdócio e mostram-se interessados na acção social. Segundo Auffray, nas últimas eleições em 2015, “99% dos estudantes do Grande Seminário de São José [em Rangun] votaram no Partido Nacional para a Democracia [de Suu Kyi], embora, em teoria, os religiosos não tenham esse direito”.

Na visita a Myanmar, o Papa encorajou padres e seminaristas a contribuírem para o fim dos conflitos que perduram sete décadas após a independência.

Em Naypyidaw, a nova capital, deixou uma mensagem ressonante: “O futuro de Myanmar deve ser a paz, uma paz baseada no respeito pela dignidade e direitos de cada membro da sociedade, respeito por todos os grupos étnicos e pela sua identidade, respeito pelo estado de direito, e respeito pela ordem democrática que permite a cada indivíduo e a cada grupo – nenhum deles excluído – oferecer o seu contributo legítimo para o bem comum. (…) O árduo processo de reconciliação só pode avançar com justiça e respeito pelos direitos humanos.”

O encontro com os Rohingya, organizado pelo cardeal Bo e com carácter inter-religioso, aconteceu durante a visita papal ao Bangladesh, de 27 de Novembro a 2 de Dezembro, uma nação predominantemente muçulmana onde os católicos representam apenas 0,2% da população (350 mil).

Na sede da arquidiocese em Daca, 18 refugiados de três famílias – homens, mulheres e crianças – foram recebidos por um emocionado Francisco, que prometeu não esquecer o sofrimento deles. “A presença de Deus hoje também se chama Rohingya”, disse o Papa. “Em nome de todos os que vos perseguiram, vos magoaram, peço perdão.”

© Reuters

Este artigo foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Janeiro de 2018 | This article was originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, January 2018 edition

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