Um decreto real reconhece um direito há muito negado às mulheres. Mas as pioneiras que esperavam clamar vitória após duas décadas de luta estão a ser forçadas ao silêncio. Ninguém pode tirar protagonismo a MBS, o príncipe herdeiro. (Ler mais | Read more…)

Rauza Khan, amiga de Loujain al-Hathloul, uma activista presa e torturada por ordem do príncipe herdeiro MBS, exibe uma camisola com a inscrição “Libertem Loujain” durante uma sessão de fotografias para parodiar a imagem da capa da revista Vogue Arabia, em Junho de 2018, que exibia uma princesa ao volante do seu automóvel
© Doaa Jamal | NPR
A cientista biomédica Hala Al-Dosari tinha todas as razões para festejar quando o rei da Arábia Saudita “deu licença” às mulheres para conduzirem. Há 27 anos que ela e outras activistas reivindicam este direito, algumas arriscando a vida, mas o que exprimiu foi um “sentimento ambivalente”.
“Fico feliz por as mulheres poderem agora movimentar-se sem se preocupar com logística e custos desnecessários, e que possam beneficiar de autonomia, ainda que relativa, na forma como gerem as necessidades do dia a dia fora de casa”, diz-me, numa entrevista por e-mail.
“Mas não estou feliz com o modo como tem sido tratada a questão dos direitos das mulheres. É terrível que activistas estejam a receber telefonemas da Casa Real para não se envolverem em política.”
“Foram os esforços de sensibilização dessas activistas que colocaram na agenda as reivindicações das mulheres, e que despertaram a consciência pública para a urgência de reformas. O Estado e os seus representantes estão a anular o protagonismo e o contributo delas para que só eles possam decidir em nome das mulheres e da sociedade.”
A denúncia de Hala Al-Dosari, investigadora no Radcliff Institute for Advanced Studies da Universidade de Harvard, foi implicitamente reconhecida pela académica Hatoon Al-Fassi, que também aceitara dar-nos uma entrevista mas, no dia seguinte, como combinado, não respondeu às perguntas.
Na sua página de Facebook justificou e reprovou: “Infelizmente, estamos proibidas de exprimir a nossa alegria. (…) Silenciar-nos não interessa a ninguém”. Al-Dosari vive nos EUA; Al-Fassi, na Arábia Saudita [onde, à semelhança de outras activistas, seria presa, no verão de 2018, por ordem do príncipe herdeiro, Mohammed Bin Salman (MBS), avesso a críticas, e só seria libertada em Maio de 2019.]

Só em 2019 é que a Arábia Saudita começou a desmantelar a infame lei do “guardião masculino”. As mulheres, tratadas como “segunda classe”, já não precisam de licença do pai, marido, irmão ou filho para requerer passaporte e viajar, registar casamento, divórcio ou nascimento de um filho. E as mães já podem ter também a custódia dos filhos
© The Guardian
Censura e repressão têm sido a resposta das autoridades desde que, em 1990, as sauditas se ousaram revoltar-se, exigindo os mesmos direitos das mulheres do exército americano que, para proteger o Kuwait do Iraque de Saddam, circulavam livremente nos seus jipes pelas ruas de Riade, a capital.
As 48 mulheres do primeiro grupo a desafiar uma convenção social, que só então se tornaria fatwa (édito religioso), perderam os seus empregos e foram proibidas de deixar o país. Seguiram-se outras campanhas em 2003, 2011 e 2013.
Os protestos ganharam visibilidade nas redes sociais. Pioneiras como Manal al-Sharif, um dos principais símbolos deste movimento de desobediência civil, foram ameaçadas, insultadas, presas e/ou empurradas para um “exílio voluntário”. A mais recente detenção, em 4 de Junho, foi a de Loujain Al-Hathloul, que já tinha passado pela cadeia em 2014.
O decreto real, anunciado no final de Setembro, só entrará em vigor a partir de Junho de 2018. Talvez nessa altura já esteja no trono Mohammad bin Salman (MbS), o príncipe herdeiro que lançou o ambicioso programa Visão 2030, para modernizar o “pior dos piores” Estados repressivos do mundo segundo a Freedom House.
[Em 15 de Dezembro, as autoridades anunciaram que as mulheres seriam também autorizadas a conduzir camiões e motociclos. Não haverá matrículas especiais para os veículos que elas conduzam, mas as mulheres envolvidas em acidentes de viação ou que desrespeitem as regras de trânsito terão de comparecer em “centros especiais criados e geridos por outras mulheres”.]
O principal argumento para afastar as mulheres do volante era o de que esta liberdade, a que se opunham príncipes e pregadores poderosos, contrariava a rígida doutrina islâmica (wahhabita) que está na base da criação da Casa de Saud.

Em Janeiro de 2018, as mulheres sauditas foram autorizadas a entrar nos estádios de futebol. Na foto, uma fã celebra essa liberdade durante o jogo entre as equipas Al-Ahli e Al-Batin, em Jidá, a mais liberal das cidades do reino
© Reem Baeshen | Reuters
Hala Al-Dosari, estudiosa da dinâmica de género como determinante de saúde na Arábia Saudita, esclarece: “A família real nunca foi refém da religião. A religião é que tem sido refém do Estado. A família real controla o acesso, a filiação e a narrativa dos teólogos.”
Com MbS, o Estado teve de deixar de invocar a religião e passar citar a economia, “porque precisa de legitimidade para, acima de tudo, eliminar da cena política movimentos islâmicos concorrentes, como a Irmandade Muçulmana, distanciando-se dos fundamentalistas radicais.”
Não é possível alcançar a necessária “parceria global para atrair investimentos” sem mobilizar os jovens e as mulheres, salienta Al-Dosari. É por isso que MbS, o arquitecto da guerra do Iémen e do boicote ao Qatar, aliado de Trump e inimigo do Irão, está a abrir portas que sempre estiveram aferrolhadas.
Antes dele, as mulheres já tinham sido autorizadas a competir nos Jogos Olímpicos (2012) e a participar em eleições locais (2015). Mas ele foi mais longe: num país onde a segregação de sexos é obrigatória e o divertimento é haram (ilegal), organizou uma festa nacional sem precedentes no 87º aniversário da unificação do reino.

A princesa Reema bint Bandar Al Saud tornou-se, em Fevereiro de 2019, a primeira embaixadora saudita. Chefia a missão diplomática em Washington
© CNN
As mulheres entraram pela primeira vez num estádio de futebol e uma delas, de rosto descoberto, juntou-se em palco a dezenas de homens que cantavam e dançavam. Muitos súbditos mostraram-se horrorizados, mas os dissidentes, nas mesquitas e media, que podiam ameaçar o futuro rei já haviam sido neutralizados.
Para diversificar uma economia até agora dependente do petróleo – a Arábia Saudita é o maior produtor mundial –, MbS precisa de facilitar o acesso das mulheres (52% dos licenciados nas universidades) ao mercado de trabalho. Em 2016, o recrutamento de motoristas estrangeiros custou às famílias mais de 3700 milhões de dólares.
“Precisamos de mais mulheres na força activa e ajudará se elas puderem conduzir”, afirma Hala Al-Dosari. “A presença de mulheres no mercado de trabalho irá, seguramente, melhorar a sua situação em todos os sectores, encorajando reivindicações de mais autonomia no que diz respeito ao sistema do ‘guardião masculino’. As universidades já começaram a autorizar que as mulheres deixem as instalações sem necessidade de autorização do guardião, e espero que o mesmo aconteça noutros lugares.”
Até isso acontecer, as mulheres continuarão a precisar que o pai, o irmão, o marido ou até o filho menor lhes dê licença para acções tão simples como requerer um passaporte ou abrir uma conta bancária.

Em Abril de 2018, a Arábia Saudita realizou a sua primeira Fashion Week, em Riade – uma cerimónia só para mulheres em que participaram criadores como Jean Paul Gaultier
© Kristy Sparow | Arab Fashion Council
Estrangeiros, só os carros
A sorte das mulheres sauditas, autorizadas a conduzir, será o azar dos seus motoristas, cerca de 800 mil, a maioria do Sul da Ásia.
Com os preços do petróleo em baixa (de 100 para 30 dólares o barril) e os custos da guerra no Iémen em alta (6000 milhões de dólares por mês), a sobrevivência do reino depende do fim da dependência de trabalhadores estrangeiros. Estes começaram a chegar no final dos anos 1930, quando se iniciou a prospecção nas primeiras jazidas, e em 2013 (censo mais recente) ascendiam a uns 9 milhões.
Os motoristas ao serviço de 8 milhões de mulheres dos 15 aos 54 anos ganham cerca de 400 dólares por mês, salário complementado com alojamento, refeições, saúde e seguros gratuitos. Estes condutores, mas também os dos táxis e da Uber, maioritariamente procurados por uma clientela feminina, não serão os únicos penalizados pela Visão 2030 do príncipe herdeiro, Mohammad bin Salman, de “nacionalizar” e diversificar a economia.
Em Maio e Julho, milhares de indianos, paquistaneses e bangladeshis foram despedidos por dois dos maiores conglomerados no Golfo Pérsico, Saudi Oger e o grupo Bin Laden. Sem salário e a passarem fome nas ruas, precisaram de ajuda externa de emergência porque as autoridades nacionais não intervieram.
Na Arábia Saudita, segundo o sistema kafala, um trabalhador não pode mudar de emprego nem voltar à pátria sem permissão do patrão, que geralmente confisca os seus passaportes à chegada. Para a Organização Mundial do Trabalho, esta prática equivale a “uma forma contemporânea de escravatura”.
O infortúnio dos motoristas e de outros cujas famílias pobres dependem das suas remessas será, por outro lado, a fortuna dos fabricantes de automóveis estrangeiros num país que já é o maior importador de veículos da região. Com 9 milhões de potenciais condutoras, incluindo mulheres não residentes, espera-se um aumento de 50% das vendas, e de carros de luxo em particular, que já totalizam 600 mil unidades anuais.

Amirah al-Turkistani, designer gráfica saudita em Riade, a fazer o que até 2017 era impensável: uma mulher andar de bicicleta
© Reem Baeshen | financetime.org
Este artigo, agora actualizado, foi originalmente publicado no jornal EXPRESSO, edição de 7 de Outubro de 2017 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, October 7, 2017 edition