Ellen Johnson Sirleaf: Madame África

As mulheres da Libéria fizeram dela a primeira presidente eleita de um país africano. As maiores vítimas de duas guerras civis, usaram todos os meios – legais e ilícitos – para afastar os homens do poder. Terminados dois mandatos, quando a nação celebra 170 anos de vida, é ela, Nobel da Paz e ícone feminista, que se afasta.  (Ler mais | Read more…)

Ellen Johnson Sirleaf, em 20 de Janeiro de 2006, conversa com jornalistas na sua Mansão Executiva, em Monróvia, capital da Libéria
© Jerome Delay, | AP | bostonherald.com

Ellen, filha de Carney e Martha Johnson, tinha apenas uns dias de vida quando um dos muitos “sábios” que vagueiam pelas ruas de Monróvia, a capital da Libéria, pediu para ver a menina de pele clara e rubra a que chamavam “abóbora vermelha”.

Olhando para o berço, o velhote exclamou, em inglês liberiano: Ma, de pekin wa’na easy oh (Esta criança será líder).

E a profecia cumpriu-se, porque, embora África já tivesse tido nove mulheres chefes de Estado e de Governo, seria Elle, nascida a 29 de Outubro de 1938, a primeira presidente eleita por voto popular em África, em 2015.

Foi uma vitória de grande simbolismo num país onde “o lugar das mulheres é no mercado, na igreja, na cozinha, na cama.”

A vida admirável de Ellen Johnson Sirleaf é contada por ela nas suas memórias, This child will be great*, e pela compatriota Helene Cooper, na biografia Madame President**. O prenunciado destino de grandeza já entrou na “história gigante de uma nação liliputiana”, fundada por antigos escravos que vieram da América para colonizar um território da África Ocidental, hoje com uma extensão de 100 mil quilómetros quadrados e uma população de 4,5 milhões, dezasseis grupos tribais exprimindo-se em 16 línguas locais, além do inglês oficial.

Os primeiros habitantes terão sido os Jinna, ou pigmeus. Vieram depois os Gola, Kissi, Mandingo, Vai, Gbandi, Kpelle, Loma, Mende, Gio, Mano, Bassa, Dei, Grebo, Kru, Krahn e Gbee.

É importante referir este mosaico etno-linguístico porque, para ascender à Presidência, Ellen teve de provar pertença a estes Country People e não aos Congo People, os escravos livres que, em 1820, começaram a chegar em navios da American Colonization Society para serem a elite.

Os colonos – armados, ricos, cultos e cristãos – eram designados Congo People porque os indígenas associavam o comércio esclavagista (que alguns praticavam) ao rio Congo. Pouco havia de comum entre uns e outros. Depois de várias batalhas, os locais renderam-se e converteram-se.

A independência foi proclamada em 26 de Julho de 1847 – há 170 anos. Os Estados Unidos só reconheceriam esta soberania depois da sua própria guerra civil, em 1862.

Ellen Johnson Sirleaf, nos seus tempos de militância, antes de ganhar a Presidência

Ellen, ao contrário da biógrafa Helene, descendente de Elijah Johnson, que vinha no primeiro navio de colonos, não tem qualquer linhagem americana. Só na aparência era uma Congo girl. Jahmale, o avô paterno, era um respeitado chefe Gola.

Por saber falar vários idiomas e dialectos, serviu muitas vezes de negociador entre indígenas e colonos. Vivia com as suas oito mulheres na aldeia de Julejuah, no condado de Bomi.

Tal como muitos liberianos, Jahmale enviou um dos seus filhos — Karnley — para ficar sob a tutela de uma família Congo, os McGrity, em Monróvia, a capital. Esta tutoria aliviava a pobreza dos indígenas e oferecia mão-de-obra barata aos colonos.

O nome do pai de Ellen seria ocidentalizado para Carney e ganharia o apelido do 11º Presidente da Libéria (o primeiro a nascer no país), Hilary Wright Johnson. Ele tinha 15 ou 16 anos, e assim se iniciou a “congonização” da família, como escreve Helene Cooper no seu livro.

Juah Sarwee, a avó materna de Ellen, uma “mulher de mercado” da tribo Kru, natural de Greenville, condado de Sinoe, também aceitou entregar a sua única filha, Martha, a uma família Congo.

Pobre e analfabeta, Juah não teve outra alternativa depois de Heinz Kreuger, o branco com quem se casara em 1913, ter sido expulso, como todos os alemães residentes na Libéria, durante a I Guerra Mundial.

Martha era um símbolo de beleza. “Quase passaria por branca”, observou Helene. Por isso, quando se soube que a primeira família de acolhimento a fazia dormir na mesa da cozinha ou com os animais, “a sociedade mobilizou-se contra este tratamento que só seria aceitável se fosse uma criança de pele negra.”

Foi adoptada por um outro casal, Cecilia e Charles Dunbar, cujas origens remontavam aos primeiros colonos.

Martha, tal como Carney, teve acesso às melhores escolas. Ele, um dos primeiros nativos na Câmara dos Representantes, divorciou-se para se casar com ela. O advogado e a professora tiveram quatro filhos (duas raparigas e dois rapazes) e a todos deram, também, uma primorosa educação. Pertenciam à classe média alta.

Carney e Martha Johnson, os pais de Ellen Johnson Sirleaf

A jovem Ellen à saída da prisão onde foi encarcerada em 1985 por ordem de Samuel Doe; um movimento de mulheres fez dela uma cause célèbre e forçou o ditador a libertá-la

Os reveses da fortuna começaram quando, em 1956, Carney sofreu um enfarte que o deixou parcialmente paralisado e barrou a ambição de ser presidente do Parlamento. Os Congo People viraram-lhe as costas.

Martha virou-se para a principal forma de sustento das mulheres liberianas: o mercado. Vendia o pão que cozia e outros produtos.

Ellen estava quase a terminar o liceu. Em casa faltava dinheiro para pagar as propinas. Já não lhe seria possível estudar no estrangeiro. Tomou uma decisão precipitada. Casou-se com James “Doc” Sirleaf, bonito e recém-formado no Tuskegee Institute, no Alabama. Ela tinha 17 anos e ele 24.

Aos 22, Ellen cuidava de quatro filhos menores de 5. O marido, ciumento e mulherengo, alcoólico e violento, era funcionário no Ministério da Agricultura. Ela trabalhava como assistente de contabilista numa oficina. Não seria grande, como o sábio profetizou, se continuasse por este caminho.

Em 1962, conseguiu uma bolsa para se licenciar em gestão no Madison Business College, no Wisconsin. Deixou dois filhos com a mãe dele e outros dois com a mãe dela. Foi uma “escolha dolorosa e traumática”.

Em 1964, de regresso a Monróvia, Ellen foi admitida como directora da Divisão de Serviço da Dívida no Departamento do Tesouro. Para uma jovem liberiana, naquela época, era um cargo elevadíssimo.

A situação económica do país era catastrófica. Em 1969, apesar de fazer parte de um governo de partido único, ousou censurar a cleptocracia do Presidente, William Tubman. Mas teve de sair do país.

Foi admitida em Harvard para um mestrado em administração pública. Em 1971, quando William E. Tolbert Jr. sucedeu ao defunto Tubman, Ellen tinha à sua espera a pasta de vice-ministra das Finanças responsável pela banca e impostos. No ano seguinte, voltou a fazer um discurso criticando o poder. E, mais uma vez, teve de partir.

Em 1973, Ellen mudou-se para Washington, contratada pelo Banco Mundial. Os empréstimos ao Brasil, por exemplo, passavam pelo seu crivo.

Aprendeu até algumas palavras em Português. Em 1975, pediu para ser colocada na Libéria como representante do banco no Ministério das Finanças.

Em 1979, quando a Libéria preparava uma (luxuosa) cimeira da Organização de Unidade Africana, o Presidente Tolbert fez algo “impensável, incompreensível, quase apocalíptico — mexeu com o arroz do povo”, escreve Helene Cooper.

Aumentar em 50% o preço de um produto “que é o básico da alimentação liberiana, não o pão ou o leite”, gerou um levantamento social. Os Country People revoltaram-se, finalmente, contra os Congo People.

Tolbert mandou primeiro prender os principais agitadores, depois demitiu o ministro das Finanças, oferecendo o cargo a Ellen, embora ela fosse uma das suas maiores críticas. Não estancou os protestos.

A 12 de Abril de 1980, um sargento de 28 anos, Samuel Kanyon Dole, da tribo Krahn, tomou de assalto a Mansão Executiva. Matou o presidente e desmembrou o seu corpo.

Na liderança estava, agora, um “Conselho de Redenção Popular”. Todos os membros do governo, excepto Ellen, foram chamados ao quartel-general do exército (BTC).

Doe ordenou-lhe que ela o fosse visitar à Mansão Executiva. Nas ruas de Monróvia, cantava-se: “Quem nasceu ministro? Congo People. Quem nasceu soldado? Country People.”

Samuel K. Doe (ao centro), o sargento que assumiu o poder, em 1980 depois de assassinar o Presidente William Tolbert; ele poupou a vida Ellen Johnson Sirleaf porque precisava das suas competências para gerir as finanças do país
© Sando Moore | AP

Execução, por ordem de Samuel Doe, do ministro Charles Cecil Dennis, tio de Helene Cooper, a biógrafa da Presidente Sirleaf, e de outros membros do Governo deposto em 1980
© rarehistoricalphotos.com

Doe queria que Ellen o ensinasse a gerir o orçamento de Estado. Ou melhor, queria saber onde estava o dinheiro para (ele) gastar.

Porque ela cooperou, foi poupada a um pelotão de fuzilamento, no dia 22 de Abril, quando mandou executar 13 ministros, incluindo o dos Negócios Estrangeiros, Charles Cecil Dennis, tio de Helene Cooper. Ellen assistiu a tudo pela televisão.

Familiares e amigos fugiram do país. Ellen ficou e aceitou a proposta de Doe de ser presidente do Banco Liberiano para o Desenvolvimento e Investimento. Muitos dos colegas no Governo de Tolbert consideravam-na “uma oportunista”.

Ela acreditava que Doe devolveria o poder aos civis. Enganou-se e, em Agosto de 1985, foi parar a uma cela imunda no BTC. Foi um ponto de viragem. “Doe dez de Ellen uma cause cèlèbre internacional e, sem querer, desencadeou um movimento de mulheres na Libéria”, salientou Helene Cooper.

“As mulheres estavam dispostas a tolerar que crimes de violência sexual fossem diariamente cometidos contra elas, mas colocar Ellen na prisão e julgá-la num tribunal militar era uma perseguição inaceitável.

E, assim, mulheres que nunca se haviam envolvido em política organizaram-se. Ameaçaram Doe com protestos diários se não lhes desse ouvidos.”

Doe libertou Ellen, mas exigiu que fosse expulsa do Partido de Acção Liberiana, que ela ajudou a fundar para se candidatar às legislativas de 1985.

Doe clamou ter conquistado 51 dos 64 lugares na Câmara dos Representantes. No Senado, ele só não ganhou um dos cinco assentos: o de Ellen.

Doe tentou tudo para que Ellen ocupasse o lugar. Ela recusou, porque não queria legitimar uma eleição fraudulenta. Doe ordenou que ela fosse novamente presa. Mandou também destruir as tribos Gio e Mano, no condado de Nimba, depois de uma fracassada tentativa de golpe.

Após a sua libertação, Ellen voltou a Washington. Enquanto trabalhava como directora e vice-presidente do Equator Bank, juntava exilados e dissidentes na nova Associação para a Democracia Constitucional na Libéria (ADCL). Em 1989, o grupo foi informado que estava em marcha uma ofensiva militar contra Doe comandada por Charles Taylor.

Ellen deixou-se impressionar quando se encontrou com ele a primeira vez. “Era um homem charmoso e persuasivo, com bastante carisma”, anotou, nas suas memórias.

Nascido em Monróvia, filho de um americano-liberiano e de uma mulher da tribo Gola, Taylor afastou-se de Doe, em 1983, quando este o acusou de desviar um milhão de dólares. Capturado pelo FBI em Massachusetts, fugiu da prisão e instalou-se no Burkina Faso.

Charles Taylor, o carniceiro em quem Sirleaf confiou para derrubar Doe, aterrorizou a Libéria. Drogava crianças para matarem os pais e mutilava-as (amputando-lhes mãos e pés) se lhe desobedecessem 
© The Star

A 24 de Dezembro de 1989, com fundos angariados por Ellen Johnson Sirleaf, um grupo de 170 insurrectos liderado por Taylor entrou na Libéria, a partir da Costa do Marfim. Começava uma nova guerra civil, que durou 14 anos e causou cerca de 200 mil mortos.

A 9 de Setembro de 1990, Doe foi capturado e executado, da maneira mais vil e em vídeo, por soldados embriagados de Prince (nome, não título) Johnson, aliado de Taylor. A morte de Doe não parou, mas intensificou o morticínio.

Exilada nos EUA, Ellen percebeu que tinha apoiado não um libertador mas outro carniceiro. Um homem que drogava crianças para matarem os seus próprios pais e os mutilava (amputava-lhes mãos e pés) se desobedecessem às suas ordens; um homem cujos discípulos, vestidos como noivas e com perucas, violavam, decapitavam, desmembravam e comiam os órgãos das suas vítimas; um homem que alastrou a guerra à vizinha Serra Leoa para enriquecer com “diamantes de sangue”.

Desafiar este homem seria tarefa árdua. Muita gente na Libéria gostava dele, apesar da destruição que ele semeava. Ellen e Helena, nas suas biografias, contam como, nas eleições de 1997, rapazes enchiam as ruas, dançando e entoando o slogan de Taylor: He kill my ma, he kill my pa, I will vote for him (“Ele matou o meu pai, ele matou a minha mãe, vou votar nele”).

Com 75% dos votos, Taylor venceu estas eleições, legislativas e presidenciais, realizadas após um acordo de paz negociado por outros países africanos.

Ellen obteve cerca de 10%. A ONU legitimou os resultados. Taylor convidou Ellen para dirigir o ministério da Segurança Social. Ela recusou, e fez tudo para lhe vedar o acesso às instituições financeiras mundiais onde trabalhara.

“Desesperado por dinheiro e sem ajuda, Taylor organizou um império criminoso a partir de Monróvia”, refere Helene Cooper. Apoderou-se dos 24 milhões de lucros anuais da Agência Marítima que regista os navios estrangeiros de pavilhão liberiano. Foi pilhando cada vez mais os recursos nacionais e dos vizinhos.

Tomada de posse de Ellen Johnson Sirleaf em Monróvia, a 6 de  Janeiro de 2006: a primeira Presidente eleita de África
© Charles Dharapak | AP

Em 2002, a ONU criou um Tribunal Especial, não para a Libéria mas para a Serra Leoa. Taylor, já alvo de sanções internacionais, foi indiciado por 17 crimes de guerra. Em 2003, depois de uma conferência de paz no Gana com várias facções rebeldes, Taylor refugiou-se na Nigéria.

Ellen candidatou-se a chefiar um governo de transição mas, apesar de ter subornado com 10 mil dólares o líder de uma das facções rebeldes (que devolveria o dinheiro), o escolhido foi Guy Bryant, empresário de 54 anos. Este não poderia concorrer às presidenciais de 2005.

Ellen pediu a Bryant para dirigir a Comissão de Monopólios e Contratos, o que lhe permitiria supervisionar negócios obscuros entre sectores estatais e privados.

Ele entregou-lhe a Comissão da Reforma do Governo, “entidade nebulosa” para promover boas práticas governativas num país que há mais de uma década não funcionava. Uma outra mulher, Vabah Gayflor, foi colocada à frente do Ministério da Igualdade de Género.

Bryant não imaginava o que estava para vir. A economista Vabah, forçada pela guerra a trocar a universidade pelo mercado, iria criar em rede inédita de mulheres que fariam história.

Os outros candidatos eram pesos-pesados: Winston Tubman, ministro da Justiça de Samuel Doe; Varney Sherman, um advogado formado em Harvard; e George Weah, um futebolista sem qualificações académicas que ganhara fama no AC Milan, “Bola de Ouro”, aclamado pela FIFA jogador do ano em 1995 e pelos jornalistas desportivos “Melhor Jogador Africano do Século”.

Os jovens idolatravam Weah, de 38 anos. “Ele representava uma coisa rara”, salientou Helene Cooper. “Não foi por ser assassino que este liberiano se tornou célebre. Nada o ligava aos maníacos que haviam governado nos últimos 20 anos.”

Um dos maiores desafios de Ellen Johnsone Sirleaf foi a epidemia de ébola. O primeiro caso chegou em Março de 2014 e quase destruiu a sua presidência, quando ordenou que 120 mil pessoas fossem colocadas em quarentena

A sexagenária Ellen, pelo contrário, tinha sido ministra das Finanças de William Tolbert, colaborou com Samuel Doe, apoiara Charles Taylor. Por que não se distanciou ela dos homens que arruinaram a Libéria? Por que nunca expressou remorsos?

“Só Ellen pode explicar as suas razões”, diz, numa entrevista por e-mail, a biógrafa Helene Cooper. “Eu compreendo a sua decisão de, a princípio, apoiar Charles Taylor – muitos liberianos que detestavam Doe fizeram o mesmo. Ela e estas pessoas concluíram, depois, que ele era tão mau quanto Doe, e deixaram de o apadrinhar.”

“Custou-me mais compreender a decisão de apoiar Samuel Doe – foi muito duro para mim”, acrescenta Cooper, que na autobiografia The House at Sugar Beach*** detalha os horrores que a família sofreu. A mãe por exemplo, foi violada por vários soldados de Doe para poupar as filhas a este sofrimento.

“Ellen diz que tomou uma decisão pragmática, porque achava que ele [Doe] precisava da sua ajuda. Esse apoio não durou muito tempo, e ela rapidamente o abandonou. Mas por que aceitou colaborar? Foi muito difícil eu aceitar isso.”

Doe e Taylor matavam todos os adversários e inimigos, reais e imaginários. Por que não mataram Ellen? “Não a tentaram assassinar porque era uma mulher”, responde Helen, jornalista do New York Times que, em 2015, recebeu o Prémio Pulitzer por reportagens sobre a epidemia de Ébola na Libéria.

Em 2011, quatro dias antes de reeleita para um segundo mandato, Ellen recebeu a boa nova de que iria dividir os 1,5 milhões de dólares do Prémio Nobel da Paz com outra militante pela paz na Libéria, Leymah Gbowee (ao centro), e uma activista iemenita, Tawakkol Karman (à esq.)
© Christian Science Monitor

Helene escreveu a biografia de Ellen, depois de esta ter publicado as suas memórias (que cita abundantemente), porque “quis dar o devido crédito às mulheres” que a elegeram em 2005.

“Ellen Johnson Sirleaf jamais ganharia a Presidência da Libéria sem as mulheres. As mulheres da Libéria representam todas as mulheres de África que carregam um continente às suas costas. E, sim, essas mulheres continuam a ser o seu núcleo duro.”

Foram legais e ilícitos os métodos que essas mulheres usaram para elegerem a sua candidata. Começaram por mobilizar voluntárias que substituíram as comerciantes no mercado, garantindo que se registariam entre 24 de Abril e 24 de Maio, para poderem votar a 11 de Outubro.

Bateram a todas as portas, por mais remotas e inóspitas que fossem as localidades. A energia física que Ma Ellen demonstrou nessas viagens valeu-lhe o cognome de “Dama de Ferro”.

Na primeira volta, Weah obteve 28% dos votos e Ellen 20%. As mulheres não baixaram os braços. Nas ruas, elas cantavam: Ellen, She’s your man (“Ellen é o vosso homem”).

Muitos jovens mentalizaram-se de que a eleição estava acabada. Por isso, quando grupos de mulheres entravam pelos bares prometendo-lhes dinheiro em troca dos seus cartões de eleitores, eles “vendiam” o voto por uma cerveja.

Aos mais espertos, as próprias mães “simplesmente roubavam-lhes a identificação”, relata Helene Cooper. No dia da votação – com 75% de afluência às urnas – mulheres fingiram-se de grávidas e mães com bebés de colo “emprestavam-nos” a outras sem filhos para assegurar que todas teriam prioridade nas longas filas.

Ellen conquistou 60% dos votos. A 23 de Novembro, a Comissão Eleitoral oficializou a vitória, e desmentiu Weah, que alegava fraude e contestou os resultados até 21 de Dezembro. “A Old Lady tornou-se Madame President”, 23ª chefe de Estado da Libéria.

Nem todas as liberianas apoiam a elevação de Ellen Johnson Sirleaf a ícone feminista, observou o Financial Times. Apesar de ter promovido uma lei que castiga severamente as violações, não se terá empenhado decisivamente contra a mutilação genital feminina. “Os media internacionais e apoiantes continuam a apresentá-la como defensora dos direitos das mulheres em África, mas ela não merece este título,” escreveu a activista Korto Reeves Williams, citada pelo diário britânico”
© Alez Majoli | Magnum | Newsweek

O primeiro desafio do primeiro mandato, iniciado em 2006, foi a demissão do filho Rob, forçada após acusações de nepotismo, por o ter nomeado presidente da companhia petrolífera. O segundo foi o pedido de extradição de Charles Taylor, condição do mundo para conseguir — e conseguiu — o perdão de 100% da dívida externa da Libéria de 4700 milhões de dólares.

Taylor cumpre, desde 2012, uma sentença de 50 anos de prisão, o equivalente a uma pena perpétua dado que tem 69 de idade.

Em 2011, quatro dias antes das eleições de 7 de Outubro que lhe dariam um segundo mandato, Ellen recebeu boa nova de que iria dividir os 1,5 milhões de dólares do Prémio Nobel da Paz com outra militante pela paz na Libéria, Leymah Gbowee, e uma activista iemenita, Tawakkol Karman.

A má notícia chegou em Março de 2014 com o primeiro caso de Ébola, que quase destruiu a sua presidência, quando ordenou que 120 mil pessoas fossem colocadas em quarentena.

A 9 de Setembro, pediu ajuda a Barack Obama, lembrando “a responsabilidade da América para com a Libéria”. O antecessor de Donald Trump respondeu ao pedido de auxílio. A Organização Mundial de Saúde declarou o fim da epidemia a 9 de Maio de 2015.

A 10 de Outubro, a Libéria vai novamente às urnas. E George Weah é de novo candidato. Para vice-presidente convidou Jewel Howard-Taylor, ex-mulher de Charles Taylor e senadora que tentou introduzir uma lei punindo com a morte a homossexualidade – Ellen Johnson Sirleaf deixou claro que não assinaria essa legislação e o projecto fracassou.

Outro candidato é Prince Johnson, o rebelde que matou Samuel Doe. Ellen não procura um terceiro mandato. Também nesta decisão se distingue de outros líderes do seu continente que procuram poder vitalício.

Em 2018, Ellen Johnson Sirleaf conseguiu uma transição de poder pacífica na Libéria, pela primeira vez em mais de sete de sete décadas 
© Ahmed Jallanzo | EPA | EFE

Qual o seu legado? “Ela revolucionou a política de género na Libéria e em toda a África”, diz-me Helene Cooper.

“Hoje, vamos às escolas primárias na Libéria e as meninas dizem que querem ser Presidente da República. Isto é importantíssimo. Os homens, é certo, continuam a ser a força dominante, mas agora, pelo menos, as mulheres sabem o que querem, sabem que podem retirar o poder aos homens. E é interessante ver o que elas fazem para exercer o seu poder próprio político.”

Helene, que desde a infância sonhava ser “jornalista da liga principal” (antes do NYT, trabalhou no Wall Street Journal e no Washington Post), acompanhou Ellen para escrever Madame President. Define-a como “muito reservada, não muito calorosa, mas com um grande sentido de humor, quase subversivo.”

“Determinada, ela transformou-se de mulher vítima de abusos num ícone feminista e Nobel da paz. É também um camaleão político, capaz de sobreviver no mundo da política, crispado e confuso, dominado por homens, na África Ocidental.”

“Há um lado bom e um lado mau no seu legado. Merece ser criticada por ter falhado no combate à corrupção na Libéria mas, com ela, a Libéria percorreu um longo caminho [para ser mais próspera e pacífica].

Continua a ser um país de Congo People e Country People? Desapareceu o risco de novas guerras? Helene Cooper não respondeu.

[George Weah cumpriu o sonho de chegar ao poder em Janeiro de 2018, depois de vencer o vice-presidente cessante, Joseph Boakai, cujo Partido da Unidade expulsaria Ellen Johnson Sirleaf, acusando-a de ter apoiado o rival.

A maioria dos que votaram na antiga estrela de futebol foram jovens com menos de 25 anos, que constituem 60% da população do país e esperam ver cumprida uma das suas principais promessas: criar empregos.

O novo chefe de Estado tomou posse no estádio Samuel Kanyon Doe, em Monróvia, a capital, e para “número dois” escolheu Jewel Taylor, ex-mulher de Charles Taylor.]

*This Child will be great: Memoir of a Remarkable Life by Africa’s First Woman President (2010)

** Madame President: The Extraodinary Journey of Ellen Johnson Sirleaf (2017)

 *** The House at Sugar Beach: In Search of a lost African childhood (“A Casa da Praia do Açúcar: Em busca de uma infância perdida em África”, ed. Quidnovi, 2009)

O antigo futebolista e novo chefe de Estado da Líbéria, George Weah, na cerimónia de posse, a 22 de Janeiro de 2018, no estádio Samuel Doe, em Monróvia. À esquerda, está a vice-presidente, Jewel Taylor (senadora do Partido Patriótico Nacional e ex-mulher de Charles Taylor, que nega ter tido conhecimento dos massacres do marido enquanto durou o casamento, de 1997 a 2006); à direita, a sua mulher, Clar Weah, e a antecessora, Ellen Johnson Sirleaf
© Issouf Sanogo | AFP

Líderes na lusofonia

África já teve mais de uma dezena de mulheres chefes de Estado ou de Governo, mas nenhuma chegou à Presidência por voto popular, como a liberiana Ellen Johnson Sirleaf. A mais recente, ainda em funções (meramente protocolares), é a cientista especialista em biodevrsidade Ameenah Gurib-Fakim, 57 anos, eleita em 2015, pela Assembleia Nacional da República da Maurícia. Nos países africanos de língua oficial portuguesa, quatro mulheres destacaram-se. São elas:

© Angop

Adiato Djaló Nandigna, a primeira mulher a chefiar, interinamente, o governo da Guiné-Bissau, de 10 de Fevereiro até 12 de Abril de 2012, ano em que foi destituída num golpe de Estado. Detida pelas forças de segurança em 2013, regressaria como ministra da Defesa, em 2015.

© mmo.co.mz

Luísa Dias Diogo, primeira-ministra de Moçambique, entre 2004 e 2010. Antes trabalhou para o Banco Mundial e foi ministra das Finanças. Sobre ela disse o cantor irlandês Bono: “Tem a energia de uma leoa, como Ellen Johnson-Sirleaf, Ngozi Okonjo-Iweala [economista e a primeira mulher a chefiar o Ministério das Finanças na Nigéria] e Graça Machel [viúva de dois presidentes, Samora Machel e Nelson Mandela, única mulher primeira dama de dois Estados; reitora da Universidade da Cidade do Cabo desde 1999, presidente da School of Oriental and African Studies/SOAS na Universidade de Londres em 2012 e reitora da African Leadership University até agora.]

© goodcountry.org

Maria das Neves de Sousa, primeira chefe de Governo de São Tomé e Príncipe, entre 2002 e 2004. Tinha sido antes titular das pastas da Economia, das Finanças, e do Comércio, Turismo e Indústria. Trabalhou também para o Banco Mundial e a UNICEF.

© static.expressodasilhas.cv

Maria do Carmo Silveira, primeira-ministra de São Tomé e Príncipe, de 8 de Junho de 2005 a 21 de Abril de 2006. Desempenhou simultaneamente a pasta do Planeamento e Finanças. Cessou funções quando o seu partido, MLSTP-PSD, perdeu as eleições.  Economista licenciada na Universidade Nacional de Donetsk, na Ucrânia, foi governadora do Banco Central do seu país de 1999 a 2005 e de novo em 2011. É desde 2016 Secretária Executiva da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa).

© DW

Carmen Pereira (1937-2016) foi a primeira presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau e também a única mulher a ocupar, interinamente (substituindo Nino Vieira), a Presidência do país em 1984. Guerrilheira e dirigente do PAIGC, o partido que lutou pela independência, morreu aos 79 anos.

Ruanda: Um bom exemplo

Não há país no mundo com maior representação parlamentar de mulheres do que do Ruanda. Elas ocupam actualmente 64% da câmara baixa do Parlamento.

Como é que um Estado onde 800 mil pessoas, a maioria da etnia tutsi, foram mortas (por extremistas hutus) num brutal genocídio em 1994, se tornou num modelo de inclusão de género? Porque, depois de um genocídio, em que foram vítimas e também torcionárias, as mulheres representavam 60 a 70% dos cerca de 6 milhões de habitantes, mas eram uma ínfima parte da força laboral.

Em 2003, o Presidente, Paul Kagame, fez aprovar uma nova Constituição, decretando que um mínimo de 30% dos lugares no Parlamento seriam reservados às mulheres (seriam 48% depois das eleições desse ano). Promoveu também a educação de meninas (muitas nunca tinham ido à escola) e ordenou que mulheres fossem nomeadas para cargos de chefia no Governo e na Polícia.

Helene Cooper e a sua biografia de Ellen Johnson Sirleaf

Este artigo, aqui na íntegra,  revisto e actualizado, foi publicado originalmente na revista MÁXIMA, edição de Julho de 2017 | This article, here an updated, edited, and extended version, was originally published in the Portuguese magazine MÁXIMA, July 2017 edition

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