Raja Shehadeh: Não há inimigos eternos

A 5 de Junho completaram-se 50 anos da “guerra dos seis dias”. Como é que a amizade entre um judeu e um árabe sobrevive a meio século de ocupação militar? É isso que o maior escritor palestiniano da actualidade explica em Where the Line is Drawn, livro centrado em quatro décadas de encontros e desencontros com o israelita Henry Abramovitch. Este conflito “precisa de justiça e perdão”, diz-me numa entrevista, por e-mail. (Ler mais | Read more...)

Raja Shehadeh, um dos maiores escritores palestinianos, é também advogado e fundador da organização de direitos humanos Al-Haq
© Sarah Lee | The Guardian

Em Israel e na Palestina, “a memória é política”, escreve Raja Shehadeh. “O que lembrar? Quem lembrar? Ambas as partes devem colocar a si próprias estas questões. As respostas determinarão o futuro comum nesta terra e se alguma vez haverá paz.”

Shehadeh, dos mais importantes escritores palestinianos, um gigante como o poeta nacional Mahmoud Darwish, advogado e fundador (em 1979) da organização de direitos humanos Al-Haq, é um optimista.

No seu mais recente e aclamado livro, Where the Line is Drawn: Crossing Boundaries in Occupied Palestine, ele deixa claro que a coexistência é possível. E a melhor prova disso é a amizade, penosa e permanente, que o liga a Henry Abramovitch, judeu canadiano que escolheu viver em Israel.

O Estado que, em 1948, despojou o seu pai da aldeia onde nasceu (Jaffa) e, desde a guerra de 1967, força a sua família a viver sob ocupação militar, em Ramallah, na Cisjordânia.

Henry, o judeu espiritual, e Raja, o cristão secular, não são políticos. Nos longos passeios pela terra dos seus antepassados, as conversas giravam sobretudo à volta de identidade nacional.

A amizade começou a ser posta à prova com a primeira Intifada, em 1987, quando o primeiro-ministro Yitzhak Rabin mandou “quebrar os ossos” dos que lançavam pedras aos ocupantes.

Where the Line is Drawn é um livro de memórias, como algumas das obras anteriores de Shehadeh (Strangers in the House, Occupation Diaries ou Palestinian Walks, vencedor do Prémio Orwell 2008). A amizade com Henry nasceu em 1977, durante a histórica visita de Anwar Sadat a Jerusalém.

“Vivíamos um sonho”, diz Raja. O presidente egípcio prometera que o primeiro tratado de paz israelo-árabe, assinado em 1979, conduziria à retirada dos territórios ocupados. Não foi isso que aconteceu: “A ocupação transformou-se num regime colonial”. As terras e recursos naturais dos palestinianos foram sendo confiscados para serem dados a israelitas, cada vez mais zelotas.

Henry juntou-se a grupos pacifistas, assinou petições e recusou fazer parte do exército, mas insistia em não discutir política. Isso começou a irritar Raja, que cortou os laços quando foi revistado e humilhado publicamente num checkpoint por um soldado, com quem tinha jantado dias antes em casa de Henry.

Chegou a haver um quase hiato de dez anos neste relacionamento intermitente. Como segurar uma amizade depois do massacre de civis palestinianos em Sabra e Shatila (Beirute) em 1982? Como restabelecer os laços após os atentados suicidas visando civis na segunda Intifada em 2000?

O linfoma de Henry reaproximou os amigos desavindos. “Ver a minha amizade com Henry apenas segundo o prisma da nação a que ele pertence quase me fez perdê-lo para sempre.”

“(…) Henry nunca aprovou a ocupação israelita nem o comportamento brutal de Israel para com os palestinianos. Tentou ver o melhor em todos.”

“(…) Henry e eu continuaremos a discordar. Continuarei a ficar desapontado com ele e ele comigo, e talvez haja ressentimento.

“(…) Se eu gosto do meu amigo tenho de aceitar a sua decisão e a sua escolha. Se ele não tivesse vindo para cá, eu nunca teria um amigo como Henry, que enriqueceu a minha vida. Apesar do que nos separa, tenho orgulho em ter um amigo chamado Henry.”

© Banksy | Marco Di Lauro | Getty Images

Espero que Henry esteja melhor de saúde. Já leu o seu livro? Já teve oportunidade de falar com ele?

Obrigada por perguntar, Henry está melhor, Encontrámo-nos recentemente depois de ele ter lido o livro, Disse-me que o leu duas vezes e chorou. Quando lhe perguntei o que sentiu, disse-me: ‘O livro fez-me sentir que a minha vida tem valor.’ O livro deu-nos a oportunidade de falar sobre o passado e abordar questões que sempre tínhamos evitado.

Neste último encontro tivemos uma conversa mais política do que jamais imaginámos que seria possível no passado. Penso que o livro está a ter o resultado por que eu ansiava: aproximar-nos e fazer com que eu e ele compreendamos melhor.

Naomi [judia israelita que editou obras anteriores] também leu este livro. Falámos sobre ele quando nos encontrámos durante a minha visita a Londres em Março: ‘Penso que o seu livro é verdadeiramente extraordinário e tenho essa certeza porque não o consigo esquecer.

O equilíbrio, ao longo dos anos que descreve, entre amor e ternura, e humor, com fúria e dignidade, olhos bem abertos mas sem nunca desistir da esperança. E escrito de forma tão bela e bem estruturada – uma verdadeira proeza.’

Nas primeiras páginas, diz: “Comecei a ficar obcecado com uma única questão: por que partimos [em 1948] Pergunto-me como teria sido se tivéssemos ficado.” Nas últimas páginas, diz: “Interroguei-me sobre se teria sido possível ao povo israelita criar aqui a sua presença e história sem negar a nossa. Todas as provas indicam que não.” Em 2017 assinalam-se um século da Declaração Balfour, 70 anos da partilha da Palestina do Mandato Britânico e 50 anos da guerra de 1967. Como é que avalia estas efemérides? Devem os palestinianos continuar a exigir um pedido de desculpa?

Deixe-me comentar primeiro as duas citações referidas acima. A primeira é [uma afirmação] do homem mais jovem e menos experiente do que o homem mais velho viria a compreender.

Quando o mais velho se pergunta, no final, ‘se teria sido possível ao povo israelita criar uma presença e uma história para si próprio sem negar a nossa’, a sua resposta é ‘todas as provas indicam que não.’

Esta resposta resulta do conhecimento de que o mito e a propaganda sobre a criação de Israel se baseiam nas negação do povo palestiniano. O sistema israelita sentiu necessidade de não apenas criar uma nação israelita mas de suprimir a nação palestiniana.

E [eliminar] o mais possível a sua presença nesta terra, dando nomes judaicos à paisagem, às colinas e montanhas, às nascentes, aos wadis [canais que se enchem de água no tempo das chuvas], lagos e rios.

As três efemérides que os palestinianos assinalam como marcos de catástrofes que destruíram o nosso futuro nesta terra têm um significado diferente para os israelitas. Para eles, a Declaração Balfour não foi um acto de generosidade por parte da Grã-Bretanha mas o reconhecimento de um direito dos judeus a uma terra que eles consideram ser e ter sido sempre deles.

A partilha [da Palestina] é considerada pela direita israelita uma catástrofe que os obrigou a perder o “Grande Israel” para a Jordânia. E a ocupação, que não é assim designada, é vista e celebrada como a libertação da sua terra.

Um pedido de desculpas por parte de Israel seria reconhecer que a interpretação que o país faz destas efemérides contraria factos históricos e apenas parte dos mitos que Israel propaga numa tentativa de mostrar Israel não como a criação de factos históricos mas como uma entidade não-histórica com raízes e justificação bíblicas.

Sem este reconhecimento, não há possibilidade de paz. No entanto, embora o pedido de desculpas fosse um começo, também é necessário que Israel reconheça os direitos de retorno e de autodeterminação dos palestinianos.

© The Independent

Apesar da Nakba, da dor e da perda impostas à sua família, o senhor confessa a sua admiração por tantas características da sociedade israelita pós-1948: democracia e liberdade de expressão, independência dos tribunais, crítica destemida seus dirigentes políticos, uma vida cultural vibrante, a experiência socialista dos kibbutzim, o modo como consolidou, através da língua hebraica uma identidade nacional. Alguma vez terá sido possível, aos palestinianos, seguirem este caminho?

Se quer saber se os palestinianos poderiam ter seguido a via dos israelitas e fazer parte de Israel, devemos referir que há palestinianos que permaneceram em Israel depois da Nakba e que hoje constituem cerca de ¼ da população do Estado.

Embora tenham cidadania israelita, são discriminados por não serem judeus. Aprenderam a mesma língua mas mantiveram a sua identidade palestiniana.

Os palestinianos que vivem nos territórios ocupados têm pouco contacto com Israel, que não faz esforços para lhe ensinar a língua [hebraica] nem os aproximar da população israelita. À excepção dos que trabalham como operários em Israel, há muito pouco contacto entre as duas nações.

Se quer saber da capacidade de os palestinianos moldarem uma identidade nacional como a dos israelitas, então tenho a dizer o seguinte: os dois casos não podem ser comparados.

Israel é o exemplo de uma nova nação, criada com imigrantes que vieram de muitas partes do mundo que tiveram de aprender uma língua comum e foram integrados sobretudo através da sua pertença ao exército.

Ao longo dos anos, houve também esforços sistemáticos para criar uma cultura israelita e construir instituições do Estado, etc…

Os palestinianos sempre tiveram o sentido da sua identidade como árabes que falam a mesma língua, partilham uma história e um destino comuns. Após o fracasso de um Estado árabe unificado, desenvolveram mais a identidade palestiniana.

A sua ligação à Palestina tornou-se mais forte com o passar do tempo. Nunca foram independentes e, por isso, nunca tiveram oportunidade de formar um governo e instituições nacionais.

A ascensão da Organização de Libertação da Palestina [OLP], em meados dos anos 1960, e sobretudo depois da ocupação ajudou a definir a nova imagem dos palestinianos como pessoas que resistem e combatem pelos seus direitos. Embora a libertação ainda não tenha sido alcançada, a resistência continua e assume formas diferentes.

Mudou agora de um confronto principalmente armado com Israel para uma luta diplomática e não violenta. Isto é visível na greve de fome de mais de 1300 prisioneiros palestinianos [iniciada a 17 de Abril e suspensa a 27 de Maio], apoiados pela maioria da sociedade civil, por ser uma acção não violenta.

© Ammar Awad | Reuters

Das três efemérides em 2017, meio século de ocupação é a que tem efeitos duradouros e mais devastadores. Como justifica e encontra forças para acreditar que, “um dia”, haverá justiça e perdão?

Já escrevi tanto no passado, noutros livros e em artigos, sobre a opressão e as violações dos direitos humanos por parte de Israel que não quis que este fosse outro livro de reclamações e lamentações.

Quando estava a finalizá-lo, li declarações do primeiro-ministro de Israel [Benjamin Netanyahu] descrevendo os palestinianos como bestas selvagens [e no livro está essa citação], e pensei responder à letra e trocar insultos com o nosso inimigo. Decidi que não o faria.

Eu queria mostrar, através amizade com os israelitas de quem falo, que não é verdade estarem dois povos condenados a ser inimigos eternos.

Partilhamos muito em comum e podemos ser os melhores amigos. Temos muito a oferecer a cada um de nós se acabar o controlo colonial israelita da Palestina e as injustiças históricas forem reconhecidas.

Por outras palavras, não há bases psicológicas para a situação terrível que hoje caracteriza a relação entre ambas as partes, mas sim factores objectivos e concretos que devem ser expostos para que seja possível um novo relacionamento.

Ainda que as travessias muito difíceis, os muros e a distância de razão psicológica e outras, entre as ambas a partes, sejam dominantes, este livro é também sobre a união e sobre o que acontece quando os muros são derrubados.

O livro rejeita a assunção de que as duas partes nasceram inimigas ao revelar a amizade que persiste apesar de tudo o que acontece para a afrontar e sufocar.

Numa altura de elevada tensão nas relações mútuas, eu escrevo sobre uma relação completamente diferente. Sobre amizades que perduram. Eu queria e desejava que o meu livro pudesse ser de esperança e que suscitasse debate, porque é isso que os livros devem fazer.

© Olivier Fitoussi | Ha’aretz

O livro é um tributo a uma amizade dura e inquebrável, mas também contém uma mensagem política importante: “Não sairemos daqui!” A quem, em particular, dirige esta mensagem?

[A mensagem é para] os que lerem e ouvirem falar deste livro. Os livros, creio eu, são um meio eficaz de mudar as coisas.

Quem lê notícias sabe que os tempos são sombrios e de inimizade contínua. Eu espero que este livro convença os leitores de que os judeus israelitas e os árabes palestinianos não são inimigos eternos.

A inimizade deve-se à injustiça política. Não há outra razão inerente. Não duvido que esse tempo de mudança chegará.

Não estou envolvido em política mas ao escrever sobre uma amizade de muitos anos espero que os leitores percebam que esta experiência nunca foi tão má como agora, como ela foi mudando e como, apesar de tudo, a amizade sobreviveu.

Vê o futuro dos israelitas e palestinianos num só Estado ou em dois?

Neste livro eu não proponho uma solução política. Não é esse tipo de livro. A questão importante não é um ou dois Estados mas qual o sistema em que viveremos, como responder às necessidades de ambas as partes no que concerne à terra, à segurança e aos direitos – nacionais e outros.

Há soluções para tudo isto, se houver vontade. Até agora, porém, Israel não se sente motivado a procurar soluções e continuará a não procurar enquanto beneficiar da situação existente.

O movimento para a paz só começará quando se os Estados Unidos e a Europa decidirem que é do seu melhor interesse delinear uma estratégia que torne mais oneroso para Israel rejeitar propostas de paz.

© lse.ac.uk

Este artigo, agora com um título diferente e editado para maior clareza, foi publicado no jornal EXPRESSO (edição online), em 7 de Junho de 2017 | This article, now under a different headline and edited for clarity, was published in the Portuguese newspaper EXPRESSO (online edition), June 7, 2017

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