O mestre do Instituto Reação poderia ganhar a vida dando aulas de judo para uma elite. Preferiu investir nos mais desfavorecidos. Como Rafaela Silva, da Cidade de Deus, que ganhou uma medalha de ouro nos Jogos do Rio. E como Popole Misenga e Yolande Mabika, dois congoleses da primeira equipa olímpica de refugiados. (Ler mais | Read more…)
Os treinos de judo de Geraldo Bernardes começaram quando tinha 15 anos, às escondidas do pai. Era, como ele diz, “um adolescente brigão”, e lutar, naquela época, “era visto como coisa de marginal”.
Só em 1972 a família teve conhecimento desta sua paixão ao verem-no num programa de televisão. Geraldo Bernardes já era casado e “campeão carioca”.
Em 1979, foi convidado para ser um dos técnicos da selecção brasileira. Ofereceria ao país seis medalhas olímpicas, em Seul, Barcelona, Atlanta e Sydney.
A mais recente glória na sua carreira é Rafaela Silva, a judoca da Cidade de Deus que ele acompanha desde os 8 anos e que conquistou a medalha de ouro nos Jogos do Rio depois de ter sido campeã do mundo.
Nesta entrevista, por telefone, o técnico de 73 anos enaltece a “vitória da superação” da jovem que foi vítima dos piores abusos racistas quando foi desclassificada em Londres, em 2012. E exulta com uma nova missão: lapidar dois outros “diamantes brutos”, os congoleses Popole Misenga e Yolande Mabika, atletas da primeira equipa olímpica de refugiados.
Quando criticam Geraldo Bernardes por ter trocado a “elite” pelos “pobrinhos”, ele responde: “Sempre acreditei nos atletas que vêm das comunidades. O desporto de alto rendimento é sacrifício. E eles estão acostumados a dar tudo de si.” Tóquio 2020 já está no horizonte de todos os que, no tatâmi (tapete), seguem as instruções do sensei.
Parabéns pela vitória de Rafaela Silva.
Têm sido dias muito cansativos, mas estou muito contente. Para mim, esta é uma vitória da superação de Rafaela. Em 2012, em Londres, ela perdeu a medalha, foi desclassificada. Em 2013, aqui no Rio de Janeiro, foi campeã do mundo. E agora, novamente no Rio, conseguiu ganhar a medalha de ouro. Poucas pessoas conseguiram esse feito.
Ainda é treinador dela?
Sim, ela continua sendo minha aluna desde os 8 anos de idade. Não fui o único a treiná-la para estes jogos. Há uma equipa pluridisciplinar, que inclui preparador físico, nutricionista, psicóloga… mais ou menos 15 pessoas. Porque uma atleta de nível olímpico, que treina 6 horas por dia, toda a semana, precisa mais do que um técnico.
Como foi que ela começou a treinar consigo?
Começou em 2000, quando abandonei a selecção brasileira e fundei o projecto social Judô Comunitário Geraldo Bernardes Body Planet. Flavio Canto [medalhista de bronze em Atenas-2004], que também era meu aluno, tinha seu projecto na Rocinha [a maior favela do Brasil], e Eduardo Macedo Soares, que também era meu aluno, tinha outro projecto, na Pequena Cruzada, na Gávea.
Em 2033, nos juntámos. Estávamos trabalhando na mesma direcção e fundámos o Instituto Reação, ONG que hoje tem cinco pólos e mais de 1200 alunos, crianças a partir dos 4 anos, adolescentes e jovens.

Geraldo Bernardes ajudou a fundar o Instituto Reação, projecto de inserção social através do judo
© Jornal Tipo Carioca
Como é que Rafaela Silva chamou a sua atenção?
Ela vinha da Cidade de Deus, uma comunidade carente, muito pobre. Os seus pais a levaram à academia onde eu treinava, porque ela não obedecia ninguém. Eles queriam que ela se afastasse de um ambiente de violência, droga, tiroteio entre traficante e polícia.
A agressividade dela era muito boa para o judo. Ela pulava muro, soltava pipa [papagaio de papel], jogava à bola nas ruas. Tinha aquele jeito de “a bola é minha e ninguém chuta”. Sua coordenação é muito boa. Sua atitude é de grande valor.
Se todas as qualidades fossem canalizadas para o judo, eu sabia que tinha na mão um diamante bruto, precisando ser lapidado. Era ela e Raquel, sua irmã, na altura com 11 anos.
Um dia, eu disse que as colocaria na selecção brasileira. Elas nunca tinham ouvido falar de selecção. Com o tempo, foram entendendo. Foram crescendo. Começaram por entrar na selecção de base, depois na de sub-15, sub-18, sub-21 e, finalmente, na selecção principal.
Rafaela foi campeã pan-americana. Foi campeã mundial júnior sub-21. Foi campeã mundial sénior e, agora, aos 24 anos, foi campeã olímpica.
O momento mais difícil, para Rafaela, foi a sua primeira olimpíada, Londres-2012, quando foi impedida de subir ao pódio…
Sim, depois da desclassificação devido a um golpe que a arbitragem considerou ilegal, ela chorou, admitiu o erro e lamentou ter sido eliminada. Foi muito xingada nas redes sociais. A chamaram de “macaca”. Escreveram que era “uma vergonha para a família”.
Rafaela quis desistir. Entrou em depressão. Mas houve uma menina psicóloga, Nell Salgado, que fez a cabeça dela, mais os parentes, amigos e eu. Todos nos unimos para que não abandonasse o judo.
Um tempo depois, em 2013, ela foi campeã mundial, aqui no Rio. Recuperou a confiança. E agora ganhou de novo. A luta final foi muito difícil, mas ela provou que estava preparada.

Popole Misenga, atleta olímpico congolês, e o treinador que nele deposita muitas esperanças
© Orlando Barria | EFE
Em 2013, quando Rafaela foi campeã do mundo, Popole e Yolande, os atletas congoleses da primeira equipa olímpica de refugiados que o senhor também treina, pediram asilo no Brasil e pensaram desistir das suas carreiras. Como foi ver Popole ganhar o primeiro combate?
Foi muito bom! Porque ele tinha poucos meses e não muitos anos de treino. Depois desse combate com o indiano [Avtar Singh], Popole deveria lutar com o sul-coreano que é o actual campeão mundial [Donghan Gwak]. Perdeu faltando 59 segundos, numa luta empatada.
Para a primeira vez que entrou no tatâmi, porque há muito tempo que não sabia o que era uma competição, ele foi excelente. Ainda que derrotado pelo coreano, Popole foi ovacionado por todo o mundo. E não porque as pessoas estavam com pena dele, por ser refugiado, mas pela qualidade que demonstrou.
Popole já ganhou sua medalha, a medalha social, que é a da transformação pessoal. Eu também ganhei uma medalha, por ter ajudado uma pessoa que tanto precisava de ajuda. Yolande não teve tanta sorte. Perdeu sua primeira luta. Mas o que interessa não é ganhar medalhas. Eles não são mais prisioneiros. Não são escravos, como eram antigamente.
O espírito que nos foi passado por Pierre de Coubertin é o de que a Olimpíada serve para promover a paz e a união. O mais importante não é o triunfo, mas o combate. Não é vencer, mas lutar bem. Popole e Yolande ganharam essa consciência. Vivem um momento diferente, em que o mais importante é querer o melhor para nós e para os outros.

Geraldo Bernardes supervisiona um treino da atleta olímpica congolesa Yolande Mabika, de preparação para os Jogos do Rio
© International Olympic Committee Newsroom
Este artigo foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Setembro de 2016 | This article was originally published in the Portuguese news magazine “ALÉM-MAR, September 2016 edition
I’m proud to be raised by him.
As Beatles said back on the 60’s :
” All we Need is love”.
Unfortunatelly few of us are ready for this!