Popole Misenga e Yolande Mabika são sobreviventes de um dos conflitos africanos mais mortíferos. A guerra roubou-lhes quase tudo. A Cáritas ajudou-os na procura da dignidade. O judo fez deles “símbolos de esperança”. (Ler mais | Read more…)

Popole Misenga e Yolande, atletas da República Democrática do Congo que encontraram um lugar para os seus sonhos no Brasil
© ACNUR
A “Guerra Mundial de África”, conflito em que se envolveram 9 países e causou quase 6 milhões de mortos, entre 1998 e 2003, na República Democrática do Congo, ainda atormenta Yolande Mabika e Popole Misenga. Mas, agora, mais do que nunca, é no tapete de judo que estes atletas da primeira equipa olímpica de refugiados travam os combates das suas vidas.
Foi no tatâmi que, nos últimos três anos, aprenderam a perder. E esta lição foi importante porque, até entrarem no Instituto Reação, no Rio de Janeiro, depois de conseguirem asilo no Brasil, em 2013, Yolande e Popole não estavam “programados” para derrotas.
“O espírito deles era vencer, vencer”, conta o mestre Geraldo Bernardes, escolhido pelo Comité Olímpico Internacional para ajudar Yolande e Popole a lutarem pelo sonho disputar os Jogos que decorreram de 5 a 21 de Agosto.
“Nos treinos com meus outros atletas, havia mais porrada do que fair play. O clima se tornou hostil até eu perceber e explicar o que se passava. Quando perdiam, lá no Congo, eram maltratados. Os colocavam numa jaula e eles passavam muita fome.”

Yolande Mabika no Instituto Reação, que lhe abriu as portas aos Olímpicos do Rio
© Miriam Jeske | Brasil2016.gov.br
A primeira grande prova de Yolande, 28 anos, e Popole, de 24, depois da festa da inauguração dos Jogos, quando toda a equipa de refugiados foi aplaudida de pé no Estádio do Maracanã, estava marcada para quarta-feira, 10 de Agosto. Ela tinha pela frente a israelita Linda Bolder e ele o indiano Avtar Singh.
Mais afortunado do que Yolande, que sofreu um ippon a um minuto e 3 segundos da luta, Popole afastou Singh para enfrentar o sul-coreano Donghan Gwak, campeão mundial. As palmas e palavras de encorajamento dos espectadores na Arena Carioca 2 alentaram o jovem congolês. Ele aguentou durante 4 minutos e um segundo, tempo insuficiente para chegar ao pódio.
No passado recente, Popole seria duramente castigado pelo revés. Mas não foi essa a atitude de Geraldo Bernardes, o treinador que ele trata por pai e o ajudou a reencontrar “os valores do judo: disciplina, coragem, respeito, determinação e superação”.
“Saio muito feliz”, disse Popole aos jornalistas, após uma prestação descrita como excelente pelo mentor. “Lutei até ao fim contra um campeão do mundo. Nunca pensei chegar até aqui, e isto ficará registado na história dos Jogos Olímpicos do Rio. Vou continuar a treinar para ser também um campeão.”
Yolande também reagiu sem tristeza: “Não vou esquecer até morrer. Me senti brasileira, porque o Brasil inteiro me apoiou.”

Popole Misenga foi um dos atletas refugiados com melhor classificação nos Jogos do Rio
© Miriam Jeske | Brasil2016.gov.br
Nascidos no antigo Zaire, deslocados como mais de dois milhões de compatriotas, Yolande e Popole integraram uma equipa de dez atletas de quatro países formada pelo COI para ser “símbolo de esperança” para os 65,3 milhões de pessoas que fogem de guerras e perseguições.
Representados pela bandeira e hino do COI, tal como os nadadores sírios Rami Anise e Yusra Mardini, o maratonista etíope Yonas Kinde e os corredores sul-sudaneses Anjelina Nada Lohalith, James Nyang Chiengjiek, Paulo Amotun Lokoro, Rose Nathike Lokonyen, Yech Pur Biel, os judocas congoleses desfilaram no Estádio Maracanã com o sorriso de quem esperava mais do que medalhas.
“Seria bom os jogos ajudarem a reencontrar minha família”, disse-me Yolande, antes da competição. “Me sinto tão sozinha.” Popole estava doente no dia em que falámos, por telefone, com a colega e o treinador. Também ele prometeu “fazer bonito” pelos parentes e amigos de quem tem saudades.
“Nasci em Kinshasa [a capital da RDC] mas depois me mudei para Bukavu”, conta Yolande. Foi nesta localidade, a mais flagelada pelo conflito, que perdeu o contacto com o pai, a mãe e os quatro irmãos. Era 1998. Ela tinha 10 anos. “Cheguei da escola, troquei de roupa e nunca mais os vi. Caíram bombas. Só vi mortos e feridos nas ruas.”
Resgatada pelas tropas congolesas, Yolande regressou num avião militar a Kinshasa. Aqui, num centro de acolhimento de deslocados, a maioria crianças desacompanhadas, começou as aulas de judo, que “foram defesa e sobrevivência”.
Popole, que escapou de Kisangani, aos 6 anos, depois de presenciar o assassínio da mãe, também vivia em Bukavu, onde rebeldes faziam dos meninos soldados e das meninas escravas sexuais. Perdeu-se na floresta durante 8 dias e perdeu os 3 irmãos, até o levarem, de barco, para Kinshasa, onde conheceu Yolande. Tinha então 9 anos, e o judo também o salvou.
Tornou-se campeão nacional. Em 2010, ganhou uma medalha de bronze no Campeonato Africano de Sub-20. Em 2013, ele e Yolande foram convocados para o Campeonato Mundial no Rio.
“O horror parecia não ter fim”, disse ela, o português titubeante apesar de aulas duas vezes por semana. “Os técnicos da nossa delegação confiscaram passaportes e nos fecharam em um hotel. Sem dinheiro e sem comida. Não apareceram durante dois dias. Passámos fome. Eu desisti. Já tinha sofrido muito.”
“Dormi na rua e bati em todas as portas, procurando ajuda. Uma angolana me ofereceu sua casa numa favela, na Cidade Alta, onde há muitos africanos. Achei bem ir buscar Popole.”
No primeiro dia da competição, ele ainda vestiu um quimono emprestado e foi à luta. Sucumbiu à fraqueza, foi desqualificado e castigado. Os dois amigos decidiram ficar na Cidade Maravilhosa.
“Foi duro”, recordou Yolande. “O morro era muito violento, com polícias enfrentando traficantes. A guerra voltava sempre nos pesadelos. Felizmente, graças a um dinheirinho que o Comité Olímpico nos deu, já estou morando em um lugar melhor. Aluguei casa no Bom Sucesso, outra comunidade. Me sinto respeitada. Já não tenho mais vergonha de ser refugiada.”

Popole Misenga (dir.) venceu o indiano Avtar Singh (na foto) mas seria, logo a seguir, derrotado pelo sul-coreano Donghan Gwak, campeão mundial
© Getty Images
A maior ajuda foi dada pela Cáritas, que assiste e protege os que pedem asilo, em colaboração com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Foi a instituição ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que encaminhou Yolande e Popole para o Instituto Reação. Para chegarem aqui, demoram duas a três horas, apanhando vários autocarros. Treinam de segunda a sábado, uma média de cinco horas por dia.
Ao contrário de Yolande, Popole ainda habita o mesmo bairro, Brás de Pina. Casou-se com uma brasileira e ambos têm um filho. Sente-se integrado (“Agradeço a Deus, ao acordar, por sobreviver mais um dia.”) e não tenciona voltar ao Congo, país que dá ao Brasil o maior número de refugiados: 8500, dos quais 900.
Assusta a violência no estado do Rio de Janeiro onde vivem 900 daqueles refugiados. O Instituto de Segurança Pública registou um total de “17 mortos por dia”, um total de 2508, entre Janeiro e Maio de 2016. Apesar do aumento no número de homicídios, Yolande e Popole sentem-se mais seguros aqui do que na terra-natal.
Na RDC, terceiro país mais pobre do mundo apesar de ter os principais recursos naturais (ouro, estanho, tungsténio, coltan), a esperança de vida é de 48 anos para os homens e 51 para as mulheres.
Um acordo de paz foi firmado em 2002, mas a estabilidade permanece ilusória. Para perpetuar o poder herdado do pai em 2001, o Presidente, Joseph Kabila, tem recorrido a detenções arbitrárias de figuras da oposição. No leste, dezenas de grupos armados, alguns deles do Ruanda, que cobiça as riquezas do vizinho, continuam activos e acusados de crimes de guerra.
“Até os nossos militares só sabem fazer uma coisa: matar”, lamentou Popole Misenga, em declarações ao diário britânico The Guardian. “Vi demasiada guerra, demasiadas mortes. Quero manter-me puro para o meu desporto.”

Popole Misenga, Yolande Mabika e o treinador Geraldo Bernardes, no Instituto Reação
© Thierry Gozzer | O Gobo

A equipa olímpica de refugiados na inauguração dos Jogos do Rio, em 5 de Agosto de 2016, no Estádio do Maracanã
© AP
Este artigo foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR, edição de Setembro de 2016 | This article was originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, September 2016 edition