Os jogos têm sido indicadores do que está para vir, diz James M. Dorsey, autor do livro The Turbulent World of Middle East Soccer. Foi nos estádios que germinou a “primavera árabe” de 2011. E poderá ser este o desporto da próxima revolução. (Ler mais | Read more…)

Crianças sírias e palestinianas sobem a uma baliza, antes de um jogo organizado pela Oxfam, no campo de refugiados de Al-Baqaa, próximo de Amã, na Jordânia, em 17 Junho de 2014
© Muhammad Hamed | Reuters
Para muitos, no Médio Oriente e Norte de África, o futebol “é mais do que um jogo – é uma questão de vida e de morte”, escreve o académico e jornalista James M. Dorsey em The Turbulent World of Middle East Soccer, já considerado uma obra de referência.
Os estádios transformaram-se em campos de batalha por direitos políticos e sociais, étnicos e religiosos, de identidade e de género. E estas lutas “espelham a essência do futebol: trata-se de controlar o mais possível o território do oponente”, observa Dorsey, senior fellow na S. Rajaratnam School of Internacional Studies na Universidade Tecnológica de Nanyang, em Singapura.
A maioria dos clubes na região foi criada com motivações ideológicas, mesmo que, hoje, pouco os distinga, excepto uma rivalidade quase tribal, refere Dorsey numa entrevista, por telefone.
Dois exemplos: os egípcios Al Ahly (ligado aos revolucionários que derrubaram a monarquia) e Zamalek (associado a movimentos pró-coloniais), equipas que foram treinadas pelos portugueses Manuel José e Jesualdo Ferreira.
O futebol passou a se um catalisador de protestos, “despertando e não anestesiando a consciência social”. Na Jordânia, tem sido nos estádios que se ouvem as críticas mais veementes à família real. Na Arábia Saudita, muitos príncipes são insultados e até agredidos durante os jogos.
Em Tabriz, capital da província iraniana de Azerbaijão onde há defensores da união com a antiga república soviética com o mesmo nome, o principal clube é o maior símbolo da identidade azeri.
Em 2010-2011, na linha da frente para a “primavera árabe” que derrubou quatro ditadores estavam os adeptos mais militantes, cujo fervor continua a ser imitado por outros nas ruas de Istambul, contra o autoritarismo do Presidente turco.

A selecção feminina de futebol do Afeganistão é considerada um símbolo de progresso e tolerância num país que ainda é um dos mais perigosos e repressivos para as mulheres
© Omar Sobhani | Reuters
Diz, no seu livro, que não era um adepto de futebol quando viu o seu primeiro jogo, em 1986, e continua a não ser. Mas há vários anos que escreve sobre este tema…
Como desporto, o futebol não me interessa. Interessa-me a política do futebol e usá-la como um prisma, uma forma de olhar para as questões fundamentais na região.
Por que é que o futebol é aqui um “mundo turbulento”?
O futebol na América Latina, Europa ou Ásia não é um fenómeno consistente e permanente, em termos políticos e de desenvolvimento social, ao contrário do que acontece no Médio Oriente e Norte de África.
O futebol ocupa aqui, há mais de um século, um lugar central. Basta olhar para a história recente. Adeptos de futebol estiveram na génese da revolta popular de 2011 [“primavera árabe”, iniciada na Tunísia].
No Egipto, têm sido a pedra angular da resistência ao regime do actual Presidente, Abdel Fattah el-Sisi. A componente política está presente em todos os principais clubes de futebol no Médio Oriente.
Na Argélia, por exemplo, a selecção nacional nasceu quando dez atletas fugiram de França, em 1958, e começaram a participar em jogos durante a guerra pela independência, em nome da Frente de Libertação Nacional.
Jogaram contra mais de 50 países e ganharam a maioria das partidas. Em 1954, a FLN usou o Campeonato Mundial na Suíça para anunciar o início da luta armada. O hino da equipa tornou-se o hino do país.
No Egipto, a luta pela independência em 1919 foi uma revolução de adeptos de futebol. Uma das principais equipas, Al Ahly, atraiu os nacionalistas antimonárquicos e anticoloniais, enquanto o Zamalek começou por ser o clube das forças pró-britânicas, que assim pretendiam introduzir conceitos como disciplina, obediência e ordem.
Ainda hoje, a rivalidade existe. Os clubes de futebol são, literalmente, tribais. Antigamente representavam grupos sociais diferentes. Agora, são quase iguais.

Fãs usando trajes tradicionais assistem a um jogo entre as equipas do Gharafa e do Kharaitiyat para a Liga das Estrelas do Qatar, no estádio da primeira em Doha, a capital
© Sean Gallup | Getty Images
O jogo “mais violento da história desportiva egípcia” envolveu o Al Ahly, em 2012, em Port Said, quando a equipa era treinada pelo português Manuel José. Foram mortas 74 pessoas. Como explica o que se passou?
Tenho a certeza de que não foi um incidente espontâneo. Mas não quero dizer com isto que se tratou de um plano deliberado de um qualquer general egípcio. A tensão estava ao rubro depois da queda de Hosni Mubarak [o anterior ditador].
Os Ultras do Al Ahly consideravam-se os líderes da revolução. Quando o árbitro apitou o final da partida, Al Masry ganhava por 3-1. Os seus adeptos invadiram o relvado, armados com facas, garrafas, bastões e pedras. Os ultras do Al Ahly não estavam preparados.
Acho que foi uma tentativa de lhes ensinar uma lição, mas acabou por se perder o controlo. Há provas suficientes de que foi uma acção planeada, com motivações políticas, mas nunca foi concluída uma investigação.
Quem são estes ultras?
Nos últimos cinco anos do poder de Hosni Mubarak no Egipto, os ultras foram o único grupo que ofereceu resistência física ao regime durante o campeonato. Quase todas as semanas se confrontavam com as forças de segurança. Nunca cediam. E nunca um outro grupo na sociedade civil egípcia demonstrou esta capacidade.
Na Síria, os shabiha, são adeptos ultras e milicianos que alinharam com o regime de Assad. Os ultras são também os mais fervorosos entre os nacionalistas palestinianos e curdos.

Jogo entre o Zamalek e o Al-Ahly – duas equipas históricas do Egipto que foram treinadas por portugueses – em 15 de Outubro de 1916
© Marwan Naamani | AFP
No seu livro, diz que os estádios têm sido “centros de detenção e, por vezes, campos da morte”. Esta era a realidade, sobretudo na Líbia de Khadafi e no Iraque de Saddam Hussein [onde foram encontradas valas comuns em vários estádios]. Há outros países onde isto ainda acontece?
Sem dúvida! As batalhas continuam a vários níveis. E uma dessas batalhas é a do Islão político. Ainda recentemente, um jogador iraniano foi suspenso por usar calças amarelas que a Federação de Futebol não gostava.
Na Arábia Saudita, um jogador suportou a humilhação de ver o cabelo rapado antes do início de um jogo, porque “o corte não era islâmico”. Osama Bin Laden gostava de jogar futebol quando era jovem, mas também tentou usar o futebol para atrair jihadistas.
No Campeonato Mundial de 1998, autorizou um plano para um ataque [em Marselha] durante um jogo entre a Inglaterra e a Tunísia. Sobre os atentados de 11 de Setembro, comentou: ‘Sonhei que jogávamos contra os americanos. Quando a nossa equipa entrou em campo, éramos todos pilotos.’
O futebol é o principal rival da religião?
Não é bem um rival. Diria que só a religião desperta a mesma paixão profunda que o futebol. A rivalidade só se explica nesse sentido. Embora haja divergências profundas entre grupos radicais sobre se a Sharia [lei islâmica] permite ou não o futebol, muitos líderes religiosos têm usado este desporto para fins políticos.
A Irmandade Muçulmana no Egipto tentou formar a sua própria equipa em 2011. Os líderes do Hezbollah, no Líbano, e do Hamas, na Palestina, foram jogadores ou são adeptos, e reconhecem que o futebol tem enormes qualidades de união e recrutamento.
No entanto, grupos como Daesh, al-Shabab ou Boko Haram executam pessoas que assistam aos jogos, porque consideram que o futebol distrai os fiéis das obrigações religiosas.

Uma família iraniana apoia a selecção nacional no jogo contra o Qatar durante a fase de apuramento para o Campeonato do Mundo de 2018
Ibraheem al-Omari | Newsweek
Há uma outra batalha, a de género, que tem sido travada, com as mulheres exigindo serem mais activas…
Sim, as mulheres têm usado o futebol como veículo para conquistarem mais direitos desportivos no Médio Oriente e Norte de África, e têm conseguido. É verdade que ainda temos países, como a Arábia Saudita e o Irão, que proíbem o acesso das mulheres aos estádios de futebol.
No entanto, devo salientar que o Irão criou um importante sector desportivo feminino, ao contrário da Arábia Saudita, cujo primeiro plano quinquenal de futebol, recentemente aprovado, é só para homens.
Qual o objectivo principal do Qatar para realizar o Campeonato Mundial de 2020?
Bem, o Qatar é um pequeno país. Nunca será independente no campo de batalha, por isso, tenta encontrar a segurança no futebol…
Como é o que futebol oferece segurança?
Depois da invasão iraquiana do Kuwait, em 1990, o Qatar percebeu que não podia depender da protecção dos sauditas. Apesar de gastar milhões de dólares em armas e em treino para as suas forças armadas, não tinha o hard power necessário para se defender. O futebol é, provavelmente a forma mais poderosa de cultura popular e tornou-se um valioso soft power.
Tem havido muitas críticas, no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores estrangeiros, mas há diferenças entre o Qatar e outros países do Golfo. Noutros Estados, os opositores são presos e até executados; o Qatar prefere expulsá-los ou impedir a sua entrada no país. A Human Rights Watch apresenta os seus duros relatórios em Doha [a capital].
Várias instituições, como a Qatar Foundation, têm tentado impor mudanças, o problema é que estas mudanças não estão inscritas na lei. O grande problema está na demografia.
Os qataris são apenas 20% da população. Dar mais direitos aos estrangeiros abre uma caixa de Pandora, e eles têm medo de perder o controlo do país. É um drama existencial.
O futebol poderá inspirar outra “primavera árabe”?
O Médio Oriente e o Médio estão em transição. As revoltas populares de 2011 revelaram-se um processo volátil e sangrento. Qualquer mudança incluirá muitos riscos. As causas das revoltas continuam a existir. De uma maneira ou de outra, creio que os adeptos de futebol continuarão a ser parte deste processo.

James M. Dorsey é senior fellow na S. Rajaratnam School of Internacional Studies na Universidade Tecnológica de Nanyang, em Singapura
© Paco Puentes | El País
Este artigo foi publicado originalmente na revista SÁBADO, em 28 de Julho de 2016 | This article was originally published in the Portuguese news magazine SÁBADO, on July 28, 2016