“O ‘estado islâmico’ será derrotado como foram os nazis”

O Daesh “é um movimento genocida” que mistura o jihadismo salafista com o nacionalismo fascista do antigo Partido Baas, diz Andrew Hosken, autor de Império do Medo. Permanece uma força temível que exporta a guerra para a Europa. Mas não é invencível. (Ler mais | Read more…)

© Getty Images | The Independent

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Como é que um gangue jihadista criado por um “bêbado e arruaceiro” jordano chamado Abu Musab al-Zarqawi se transformou no “inimigo número um da Humanidade”, suplantando a Al-Qaeda, de Osama bin Laden?

“É uma surpresa que todos se tenham surpreendido”, diz Andrew Hosken, autor de Império do Medo: No interior do estado islâmico (Ed. Planeta), escrito “para compreender a história deste movimento, a sua selvajaria e os homens cruéis que o criaram.”

O autoproclamado “estado islâmico” ou Daesh começou como Tawid wa’l Jihad (Monoteísmo e Jihad), “a máquina assassina” criada por Zarqawi num campo de treino, em Herat, no Afeganistão, em 1999.

Nasceu com a bênção de Bin Laden, que lhe deu o equivalente a 7000 euros para início de actividade, mas rapidamente se tornou numa organização rival e mais feroz.

Porque não é apenas um bando terrorista. É um exército convencional com soldados profissionais; um gigantesco aparelho de segurança e espionagem; uma ampla rede de propaganda; uma máfia implacável que trafica petróleo, antiguidades, armas e seres humanos.

“Não fiquei espantado quando, em 2014, o ‘estado islâmico’ se apoderou de Mosul e, com esta conquista, mudou o mapa do Médio Oriente”, diz-me Hosken, numa entrevista, em Lisboa, onde veio apresentar o seu livro.

“Em 2013, quando eu estava no Iraque, era visível que o grupo controlava uma grande parte do país, sobretudo a província de Anbar, e que aterrorizava Bagdad.

Em 2013, sabíamos quantos ataques o Daesh cometera, porque o grupo publicava um ‘relatório anual’ no qual detalhava todos os atentados com carros armadilhados e todos os assassínios premeditados.”

Um menino iraquiano numa escola na província de Dohuk, no Iraque, depois de obrigado a fugir de Mossul, cidade conquistada pelo Daesh em Junho de 2014 © Reuters

Um menino iraquiano abrigado numa escola na província de Dohuk, no Iraque, depois de obrigado a fugir de Mosul, cidade conquistada pelo Daesh, em Junho de 2014
© Reuters

“Em 2002 [quando saiu do campo em Herat, bombardeado pela NATO e pelos EUA, e fugiu através do Irão], Zarqawi já dominava um ‘califado’ brutal no Norte do Iraque, onde combatia os curdos”, adiantou Hosken.

“As tropas americanas nunca foram o alvo, mas sim a maioria xiita, desprezada como kafir, herege ou apóstata, que ascendeu ao poder após a queda de Saddam Hussein. Sunita, salafista e wahabita, Zarqawi sempre quis um califado.”

“Seguiu à letra um ‘Manual de Selvajaria’, que circula online e preconiza a criação de um vazio político através do terror. Travou uma guerra civil sanguinária durante três anos. Até a al-Qaeda, preocupada com a ‘imagem da jihad’, se escandalizou com as execuções bárbaras de reféns, os massacre de xiitas e das minorias.”

“Em 2006, depois de matarem Zarqawi, os americanos não valorizaram o sucessor, Abu Omar al-Baghdadi – não confundir com Abu Bakr al-Baghdadi – e algo de dramático aconteceu”, salientou Hosken, jornalista da BBC Radio 4.

“Abu Omar deu a si próprio o título de califa e proclamou o Estado Islâmico do Iraque. Os EUA ignoraram-no, convencidos de que se tratava de um actor. Historicamente, porém, foi um acontecimento crucial, porque chegou ao fim o casamento de conveniência com a Aal-Qaeda.”

“A morte de Abu Omar, em 2010, criou a ilusão de vitória sobre o Daesh, e as tropas dos EUA retiraram-se pouco depois”, recordou Hosken.

“Em Maio, o grupo deu a conhecer o seu novo líder, Abu Bakr al-Baghdadi. Com ele, o estado islâmico assumiu-se abertamente como organização genocida: num só ataque, massacrou 800 yazidis.”

“É uma mistura de islamismo e fascismo. Uma amálgama de dois grupos que parecem nada ter em comum mas servem objectivos mútuos. O Daesh é a combinação do que resta do antigo Partido Baas, de Saddam, nacionalista e secular, e do grupo de Zarqawi, que quer impor a Sharia ou lei islâmica.”

Membros do Baas desfilam com Kalashnikov e fotos do executao ditador Saddam Hussein, em 8 de Fevereiro, durante celebrações do 39º aniversário do golpe que levou o partido ao poder. A dissolução do Baas, ordenada pelos "administradores" americanos, após a invasão de 2003, levou a que muitos militantes e antigos oficiais iraquianos se juntassem ao Daesh, © Ramzi Haidar | AFP | Getty Images

Membros do Baas desfilam com Kalashnikov e fotos do executado ditador Saddam Hussein, em 8 de Fevereiro de 2002, durante celebrações do 39º aniversário do golpe que levou o partido ao poder. A dissolução do Baas, ordenada pelos “administradores” americanos, após a invasão de 2003, levou a que muitos militantes e antigos oficiais iraquianos se juntassem ao Daesh
© Ramzi Haidar | AFP | Getty Images

“O estado islâmico é, acima de tudo, uma organização iraquiana ligada ao Baas”, frisou o repórter britânico. “Repare-se nos homens que rodeiam Baghdadi. Foram todos foram membros do Exército e da Polícia de Saddam.”

“Quando conquistam uma cidade, os jihadistas podem entrar com os seus coletes de bombas, mas, depois dos suicidas, vêm os tipos do Baas para estabelecer a lei e ordem através do terror.”

A euforia ilusória dos EUA depois das mortes de Zarqawi e Abu Omar talvez explique a relutância de Andrew Hosken em acreditar nos “peritos em terrorismo e contraterrorismo” americanos que anunciam pesadas derrotas do Daesh, na sequência de ofensivas aéreas e terrestres.

Segundo estas fontes, citadas pelo Washington Post, o califado diminuiu 40% nos últimos 6 meses, o que significa menos população a quem extorquir dinheiro; a produção petrolífera, que rendia 500 milhões de dólares anuais, baixou para metade; a queda de receitas da mais rica organização terrorista está a encorajar cada vez mais deserções.

“Pergunto-me se estes peritos são os mesmos que não conseguiram ver os sinais da emergência do Daesh”, ironizou Hosken. “Sabemos apenas que o Daesh perdeu Palmira, com a ajuda dos russos. Perdeu também Kobane, Ramadi, Tikrit e Sinjar. É verdade que tem sofrido desaires significativos, mas perder batalhas não é o mesmo que perder uma guerra.”

“O Daesh não precisa de muito território para sobreviver. Continua a recrutar entre os desiludidos do ‘Inverno árabe’. É uma organização criminosa.”

“Tem muitos ladrões e assassinos. Continua a extrair petróleo e a contrabandeá-lo para a Turquia. Mesmo que seja derrotado militarmente na Síria e no Iraque, continua presente no Afeganistão, no deserto do Sinai (Egipto), na Líbia.”

Até que ponto os recentes ataques terroristas na Europa são a “reacção de uma besta ferida”? “A mensagem que o grupo quer passar é: lá porque estão a matar-nos na Síria e no Iraque não significa que não possamos matar-vos em Bruxelas ou em Paris”, respondeu Hosken.

“O ‘estado islâmico’ quer passar a ideia de que há um único campo de batalha. Os recentes atentados revelam uma capacidade extraordinária de nos atacar.”

“É possível derrotar o Daesh, porque é necessário, como foi necessário derrotar os nazis, que eram uma ameaça muito maior”, concluiu Hosken. “Acredito que o Daesh será derrotado, como foram os nazis. Mas vai levar tempo.”

[O “califado” do Daesh ruiu em 2019, graças a uma guerra não convencional sem precedentes, mas a sua ideologia jihadista-salafista global continua a ser uma ameaça.]

“A grande questão é saber se depois do Daesh, mantendo-se as condições que levaram ao seu aparecimento – fracturas confessionais, confronto permanente entre sauditas e iranianos, regimes repressivos, corrupção – não irá surgir outro grupo ainda pior que ocupará o seu lugar. Talvez um Daesh com armas biológicas.”

Andrew Hosken

Andrew Hosken

 

Este artigo foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO em 9 de Abril de 2016 | This article was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on April 9, 2016 

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