A República Islâmica cumpre o acordo nuclear e as sanções começam a ser levantadas – excepto as que visam os seus mísseis. Foi simbólica a data para pôr fim a uma “guerra fria”: 16 de Janeiro. No mesmo dia, em 1979, o último Xá partia para o exílio. Omid Memarian, um ex-prisioneiro, diz que, depois de Obama, Teerão continuará alinhado com Washington, para ser potência regional. (Ler mais | Read more…)
O portão de ferro que dá acesso à pomposa Madrasah-ye Madar-e Shah, ou Escola da Mãe do Rei, em Isfahan, está semiaberto.
Quem entra no seminário construído no Irão safávida de Sultan Hossein (séc. XVII-XVIII) ainda pisa as faixas vermelhas e brancas da bandeira norte-americana pintada no chão. Mas o que lê é como um prenúncio de uma nova era: With U.S.A (“Com os EUA”). O Down (“Abaixo”) quase passa despercebido a quem sai do edifício.
Este centro teológico é um dos raros espaços onde ainda se encontram slogans contra o grande e pequeno “satã” – América e Israel – cunhados por Khomeini, o fundador da República Islâmica. Há poucos meses, ainda era proibida, aqui, a entrada a mulheres. A necessidade de receitas (o actual governo tem vindo a reduzir o financiamento a estas instituições), afrouxou a severidade religiosa.
Sinais de “abertura” não são aparentes nem exclusivos da cidade que os iranianos chamam Nesf-e jahan ou “Metade do Mundo”.
Em Teerão, a Estátua da Liberdade ainda tem o rosto da morte nos murais da antiga embaixada dos EUA. No entanto, quase desapareceram as palavras de ordem dos estudantes revolucionários que, em 1979-1980, ocuparam o “Ninho dos Espiões”, mantendo 52 diplomatas reféns durante 444 dias.
Nas ruas, seja em Shiraz, cidade dos poetas Hafez e Sa’adi, ou em Yazd, santuário de zoroastras e judeus, os visitantes, “Convidados de Deus”, são acolhidos com alegria sincera: Welcome to my country! (Bem-vindo ao meu país!”

© Hartford Courant
Asfixiada por uma grave crise económica, resultado de um longo embargo internacional e de uma gestão corrupta e danosa, a sociedade iraniana desafia o abertamente regime. E o regime, para sobreviver, teve de ceder.
“Ao tentar normalizar laços com a comunidade internacional e, em particular, com os EUA, o Governo iraniano está apenas a ser porta-voz das exigências populares”, diz-me, numa entrevista, Omid Memarian, jornalista iraniano-americano, activista social e antigo prisioneiro.
“Os iranianos têm demonstrado, repetidamente, que estão cansados do seu isolamento, de uma política mesquinha e da crescente repressão por parte da linha dura.”
Venceu, portanto, a diplomacia e foi histórico o que se viveu a 16 de Janeiro último – o mesmo dia em que, em 1979, o Xá Mohammad Reza Pahlavi partia para o exílio. Chegara ao fim 2500 anos de monarquia.
A Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) confirmou que o Irão está a cumprir um acordo nuclear assinado, em Julho de 2015, com os cinco membros efectivos do Conselho de Segurança da ONU e com a Alemanha (P5+1). Seguiu-se o anúncio do fim e/ou suspensão de sanções internacionais.
Num processo paralelo (negociado em segredo durante 14 meses), Teerão e Washington anunciaram uma troca de prisioneiros. Antes haviam sido libertados – com uma rapidez espantosa – marinheiros norte-americanos capturados por pasdaran (guardas da revolução), após entrarem em águas iranianas. O mérito foi atribuído aos responsáveis pelos Negócios Estrangeiros dos dois países, John Kerry e Javad Zarif, que nos últimos meses estabeleceram laços de amizade.

© Michel Kichka
Ao ver em liberdade o seu colega Jason Rezaian, chefe da delegação do jornal The Washington Post em Teerão, e mais quatro iranianos-americanos detidos por “espionagem” e outras acusações, Omid Memarian lembrou-se do seu próprio cativeiro.
“A prisão muda a vida das pessoas para sempre”, lamentou. “Eu fui raptado em 2003. Estive preso durante dois meses, um deles na prisão de Evin [em Teerão, tal como Rezaian]. Os captores tinham objectivos políticos e prendiam pessoas só para lhes servirem de trunfos. Durante o meu interrogatório sofri muitos abusos físicos e mentais.”
Acusado de “difundir uma má imagem do país” quando colaborava com jornais e blogues pró-reforma, de nada lhe valeu que o Presidente fosse o “moderado” Mohammad Khatami. Memarian foi mantido em isolamento e espancado.
Ameaçaram-no de morte se denunciasse os maus-tratos a que foi sujeito. Numa confissão transmitida pela televisão estatal, foi obrigado a dizer que aceitou subornos de estrangeiros e a pedir desculpas ao Supremo Líder, Ayatollah Ali Khamenei.
Os pais de Memarian tentavam visitá-lo todos os dias. Num desses dias, quando ele era escoltado para uma audiência em tribunal, a mãe pediu aos guardas que o deixassem abraçar o filho. Ele aproveitou o gesto para revelar o que se passava e pediu-lhe que contactasse organizações de direitos humanos.
“Importa salientar que a prisão de jornalistas e activistas no Irão é política”, frisou repórter que, em 2005, foi galardoado com o Human Rights Defender Award, o mais importante prémio desta ONG. “Os que foram agora libertados nada fizeram de errado.
“Foram detidos para servirem de peões aos Guardas da Revolução que, desde o início, estavam de olho numa troca de presos. Com base em experiências passadas, sabiam que, mais cedo ou mais tarde, os EUA iriam sentar-se à mesa das negociações, e isso aconteceu. É muito desumano!”
“Fico feliz por eles terem sido libertados, mas acho que jamais deveria ter havido uma troca. Pressões internacionais, por parte dos media e da sociedade civil, são a melhor maneira de embaraçar o Governo e o sistema judiciário, e não alinhar com um processo que só reforça os serviços de espionagem.”
Ao contrário de Khatami, renegado por Khamenei que o considerava uma ameaça, o actual Presidente iraniano, Hassan Rouhani, conta com a bênção do sucessor de Khomeini. O fim das sanções, proclamou, “é o início de uma nova era”. Nos EUA, o homólogo, Barack Obama, saudou “uma oportunidade rara de seguir um novo caminho – um futuro diferente e melhor”.

Iranianos festejam a assinatura do acordo nuclear em 2015
© Ebrahim Noroozi | AP
Ao enumerar as vantagens do fim das sanções, que restringiam comércio e investimento, exportações de petróleo e gás, Rouhani prometeu que o seu país não usará “para fins hostis” os mais de 50 mil milhões de dólares de fundos que estavam retidos em instituições estrangeiras e agora foram recuperados.
Da parte dos EUA, o embargo não foi, todavia, levantado integralmente. Companhias norte-americanas não poderão, por exemplo, investir na prospecção de petróleo iraniano – um negocio lucrativo que está a ser aproveitado por empresas europeias.
A América impôs, também, novas sanções ao programa de mísseis balísticos do Irão, por violar resoluções da ONU. Em Outubro, os iranianos testaram um desses mísseis, mas negaram capacidade para transportar ogivas nucleares.
“O Irão está cercado por países poderosos armados até aos dentes por potências mundiais”, explicou Memarian. “No Irão, e no mundo árabe, há muita gente convencida de que o programa nuclear iraniano não visava Israel mas a Arábia Saudita.”
“O objectivo seria um equilíbrio de poderes. Com todas as armas vendidas aos sauditas e paquistaneses, e também à Turquia, o Irão quer mostrar a sua força. Os mísseis são também um sinal do ‘duros’ a Rouhani de que pretendem continuar os seus programas [militares]. Não se conformam com um acordo nuclear que consideram ter oferecido muito em troca de pouco.”
O jornalista da Inter Press Service (IPS) e do Daily Beast, colunista do New York Times, Los Angeles Times ou Wall Street Journal está convencido de que, mesmo após o fim do mandato de Obama, “o Irão manterá aberta a via da diplomacia seja um republicano ou um democrata a ocupar a Casa Branca”.
“Tendo em conta as rivalidade com os sauditas e outros países árabes no Golfo Pérsico, além do envolvimento do Irão nos conflitos do Iraque e da Síria, uma melhoria dos laços com os EUA será muito útil para os interesses iranianos”, concluiu Omid Memarian.
“Manter o antagonismo representaria mais perdas para o seu estatuto a nível regional e mundial. Os líderes em Teerão sabem que pouco podem fazer se excluírem os EUA ou se os EUA os excluírem a eles. Por isso, o Irão vai evitar mais conflitos com os sauditas e tentará tudo para neutralizar tensões. A não ser que algo de inesperado aconteça.”
Este artigo foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO em 22 de Janeiro de 2016 | This article was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on January 22, 2016