Na terra que a viu nascer, a filha de Antero da Costa e Maria Correia dos Santos, operários da antiga “fábrica da Figueira”, ainda recorda os lugares onde começou a sua história. Não renega o passado de clandestinidade no PCP, partido a que os pais foram leais até à morte, mas o seu presente é outro. Aos 69 anos, entrou na Assembleia da República como deputada do Bloco de Esquerda. (Ler mais| Read more…)

Domicília Costa não esperava ser eleita deputada quando o Bloco de Esquerda a convidou para integrar as listas do partido às legislativas em 2015
© Bloco de Esquerda
Os olhos fatigados de Odete Costa, 85 anos, reflectem várias cirurgias e horas dedicadas à costura. Já não exerce a profissão, embora ainda dedilhe um alfinete solitário preso à camisola de lã que a aconchega.
Ao toque da campainha, ela assoma à janela de casa, na R. D. Maria Annes, em Alhandra, e a “vista cansada” ilumina subitamente um sorriso generoso: “Oh, Cilinha, o que fazes por aqui?”
Cilinha é diminutivo de Domicília Maria Correia da Costa, quase septuagenária, uma sobrinha natural de Alhandra e eleita deputada do Bloco de Esquerda no distrito do Porto, sua actual residência, depois de várias décadas consagradas ao Partido Comunista Português (PCP). A porta abre-se, e as duas mulheres abraçam-se, genuinamente comovidas.
Odete é viúva do serralheiro Alfredo, um dos irmãos de Antero da Costa, pai de Domicília. Quando a filha única lhe deu a notícia de que iria ter uma sobrinha no Parlamento não ficou surpreendida. “Por que haveria de ficar?” O espanto foi de Cilinha: “Olhe, eu fiquei.” A tia replicou: “Mas a tua vida foi sempre a política!”
Saberia Odete das actividades clandestinas dos pais de Domicília? “Desconfiávamos, sobretudo quando eles se mudaram para o Sobralinho, sem dizerem nada a ninguém”. Sentadas num sofá de uma sala aprimorada com retratos de família, quadros e flores, tia e sobrinha vão passando em revista momentos bons e mal-entendidos.
O dia em que Domicília, aos 5 anos, foi ao casamento de Odete com “um vestido muito bonito que durou até aos 11 anos”. E o dia em que Alfredo devolveu uma carta de Antero “magoado por ter sido o único que não recebia notícias do irmão”.
A mulher que os familiares tratam por Cilinha e que também era conhecida como Deolinda (“nome escolhido aos 9 anos, quando me disseram que não podia continuar a dizer que me chamava Domicília, e que usei, para vizinhos e colegas de trabalho durante o resto da clandestinidade, até ir para França, aos 20 anos”) e como Daniela (“pseudónimo para todos os camaradas, desde os 11 anos”) tentou justificar as limitações do pai.
Ele não podia usar os correios, para não ser interceptado pela PIDE, a polícia política da ditadura. Naquele tempo, a correspondência circulava de mão em mão, no PCP, até chegar ao destinatário. No final, a tia pediu à sobrinha que, nas suas novas funções, “deixe o país melhor, em paz”.
Por um país melhor tem sido a luta das “muitas vidas” de Domicília Costa desde que nasceu, a 25 de Janeiro de 1946, num “quarto alugado a um senhor que vivia sozinho”, na R. Vasco da Gama, junto ao quartel dos Bombeiros, em Alhandra. Era um prédio de rés-do-chão e primeiro andar, e neste vivia D. Odete.
“O meu pai fugiu de casa do meu avô, em Alfama [Lisboa], quando tinha uns 10 ou 12 anos, e veio viver com a mãe, natural de Subserra, mas já a morar em Alhandra”, contou Cilinha, no amplo salão de entrada da Sociedade Euterpe Alhandrense (SEA), a colectividade a que esteve ligado outro activista do PCP, Soeiro Pereira Gomes.
“Obviamente que li Esteiros”, sublinha Domicília, referindo a obra do escritor neo-realista dedicada aos “homens que nunca foram meninos”, crianças que eram exploradas no lodo dos telhais, onde se utilizava o barro para produção de telhas e tijolos.
“Sozinho, o meu pai fez várias tarefas para se sustentar”, disse a deputada, demonstrando orgulho. Aos 17 anos, ele foi trabalhar para a chamada fábrica da Figueira. Seguiram-se quatro anos de tropa, incluindo dois em Cabo Verde. Em 1942-1943, instalou-se em Alhandra. Em 1945, casou-se.”

“Cilinha” com os pais, em Alhandra: uma família que viveu muitos anos na clandestinidade
© Domicília Costa
É importante realçar o simbolismo da fábrica referida por Domicília. Foi fundada, em 1892, por Domingos de Assis, como Fiação de Tecidos de Lã. Mais tarde, seria designada Empresa Nacional de Penteação de Lãs. Ficou conhecida como “da Figueira” por se localizar numa quinta com o mesmo nome. Vital para o abastecimento da indústria têxtil, ali se registaram as primeiras greves, em 1898, pela melhoria das condições de vida.
Em 1932 e em 8-9 de Maio de 1944, seguiram-se mais paralisações, envolvendo operários de outras empresas do concelho, como a Cimento Tejo (Alhandra), Covina (Santa Iria de Azóia), Soda Póvoa (Póvoa de Santa Iria)…, mas também trabalhadores rurais em São João dos Montes, Sobralinho, Á-dos-Loucos e Cotovios.
A “marcha da fome” fora convocada pelo PCP. como protesto contra as políticas de Salazar, agravadas pela II Guerra Mundial, que racionavam géneros alimentícios, incluindo pão, os quais seriam desviados para a Alemanha de Hitler e a Espanha de Franco. A Praça 8 de Maio de 1944, junto à estação ferroviária de Alhandra, é um tributo àquelas lutas laborais.
Sem certeza, Domicília diz ter “a ideia” de que o pai (que adoptou na clandestinidade o nome de António) se tornou militante do PCP aos 27 anos, após as greves de 1944. A filha abandonaria o partido uma primeira vez, em 1970 e, definitivamente, em 1991, mas posteriormente ainda ajudou a mãe a cobrar quotas e a vender o jornal Avante, de porta em porta.

A deputada do Bloco de Esquerda na creche da antiga “Fábrica da Figueira”, em Alhandra, onde os pais trabalharam
© Domicília Costa
Maria Correia dos Santos, a mãe de Domicília, era natural das Cardosas, em Arruda-dos-Vinhos. “Aos 12-13 anos, começou a trabalhar como criada em Lisboa. Serviu em várias casas até ir, também, para a ‘fábrica da Figueira’, onde esteve pouco tempo.
Só vivemos uns meses no primeiro quarto alugado, que dava para umas traseiras de onde só se via um muro muito alto. Era um sítio sombrio, sem luz. A seguir, arrendou-se, ‘uma parte de casa’ no bairro do Manuel César, onde ficámos também só alguns meses.”
Após uma longa conversa, a deputada vai em busca dos lugares da infância. O passo é célere e firme. A elegância está na simplicidade de um conjunto de calças castanhas, camisa e colete bege, casaco em tons de rosa, mala azul numa mão, de onde irá retirar fotos com marcas do tempo, e noutra o livro As Mulheres de Alhandra na Resistência, de Antónia Balsinha.
Ao passar pelo decrépito mas outrora faustoso cine-teatro Salvador Marques, inaugurado em 1905 com a peça Comissário de Polícia, o rosto a que o cabelo grisalho não retrai jovialidade alegra-se: “Vi ali muitos filmes”.
Na Praça de 7 de Março, que homenageia o médico Sousa Martins, lembra-se da primeira Farmácia Central, onde hoje funciona uma churrascaria. Procura, mas não reconhece os espaços partilhados com Antero e Maria junto ao rio Tejo, onde se deixa fotografar.
Numa paragem-relâmpago matinal na sede do PCP, Rua Dr. Miguel Bombarda, um homem vem à porta dar as boas-vindas. Nunca ouviu falar de Antero, nem de Domicília, embora louve a eleição de Domicília.
Pede-lhe que venha mais tarde, quando estiverem presentes “camaradas mais velhos”. Não houve tempo, mas, provavelmente não encontraria ninguém. As vidas na clandestinidade não principiaram aqui.
“Mudámos para o Sobralinho quando eu tinha quatro anos. A minha mãe ficou desempregada. Vivemos em duas casas num mesmo bairro, onde começaram as reuniões secretas do PCP. Os meus pais nunca assistiam. A essas casas chamava-se ‘pontos de apoio’”.

Com um amigo, no Sobralinho, para onde os pais de “Ciliinha” se mudaram, sem informar ninguém (familiares, amigos, vizinhos) ,depois de deixarem Alhandra
© Domicília Costa
Quando deixaram Alhandra, onde viveram três anos, surgiram os primeiros conselhos: “Os funcionários do partido que nos visitavam deveriam ser sempre identificados como nossos ‘primos’, se vizinhos e outros estranhos se mostrassem curiosos. Aprendi desde muito cedo a não fazer perguntas. Era como uma ‘pascácia’ – vai para aqui, vai para acolá.”
“Não foi uma infância normal”, admitiu Cilinha. “Tinha pouca convivência com outras crianças, sobretudo as que brincavam na rua. Andava-se muito a pé, e também de bicicleta – o transporte do meu pai.”
“A minha mãe nem sempre me deixava sair. Eu ficava à soleira da porta ou à janela. Tínhamos um cão meigo, mas barulhento. Ladrava quando via estranhos. Os moradores do bairro deram-lhe o nome ‘Autoridade’, porque ele fiscalizava tudo”.
A família de Cilinha mudou-se, de novo, quando ela tinha 6 anos, desta vez para Alverca. Viveram aqui em duas casas, que ainda existem na R. Joaquim Sabino Faria. “Recebíamos, na altura, três funcionários do partido e, a partir de então, já não podia sequer falar deles aos vizinhos.
Por ordem do partido, António despediu-se da “fábrica da Figueira”, quando Domicília tinha 7 anos. Alugou outra casa em Lisboa. “Ainda frequentei uma escola em Alverca, mas só conclui a 1ª classe, e no Lumiar. Fiz a 2ª classe na Buraca, onde ficámos pouco tempo. Mudámos de novo. Para o Porto, em Maio de 1954.”
“O primeiro problema surgiu quando o Ministério da Educação, seguindo novas regras, recusou emitir um boletim de transferência se a minha mãe não desse a nova morada. Ora, isso era impossível porque o partido não permitia que identificássemos a residência.”
“Quando deixávamos uma casa, tudo ficava para trás. Desaparecíamos completamente. Não podíamos visitar ninguém, nem ser visitados. Era isto a clandestinidade.”
Foi assim, um mês antes de passar para a 3ª classe, aos oito anos, que Domicília teve de abandonar a escola. Ainda ficou ao cuidado de duas “amas”, para não levantar suspeitas, mas só voltaria às aulas em 1975, quando completou a 4ª classe, já após o nascimento do primeiro filho.
No mesmo ano, matriculou-se no antigo ciclo (fez o 1º e o 2º num só ano), em regime nocturno, pós-laboral. Durante a gravidez do segundo filho, concluiu o 7º ano. Tinha 31 anos. “Como não arranjava trabalho, desisti e passei a cuidar da casa, dos filhos, a fazer natação, a ir ao cinema e ao teatro, a passear.”

Numa das “casas de apoio” do Partido Comunista Português alugadas para a família receber os militantes na clandestinidade
© Domicília Costa
Porto, Leça da Palmeira, Matosinhos, Viseu, Montijo, Baixa da Banheira, Paio Pires, Vila Nova da Caparica, Cova da Piedade, Almada, Trafaria, Ermesinde… foram muitos os “pontos de apoio” da família de Cilinha ao serviço do PCP.
Muitas das casas eram térreas, para facilitar a fuga em caso de perigo; a certa altura, optaram por prédios de três apartamentos em cada piso para dificultar a identificação de inquilinos e visitantes.
A partir de 1955, Antero e Maria ficaram encarregados de pôr a funcionar e proteger uma tipografia do partido, onde seriam impressos, durante quatro anos, os jornais O Corticeiro e O Camponês.
Aos 11 anos, Domicília começou a trabalhar ali, a ajudar a família. “E, aos 13 anos, os camaradas decidiram que eu deveria receber um salário por inteiro e pagar a quota estabelecida pelo partido.”
“Em 1959 foi preso um dos funcionários que ia a nossa casa; fomos avisados de que estavam a ser presas pessoas denunciadas por ele. Recebemos ordem para fechar a tipografia, e o meu pai foi fazendo trabalhos avulsos de carpintaria, sempre indicados pelo PCP”.
Aos 12 anos, Domicília e os pais acreditavam que o país poderia mudar. Em 1958, “Humberto Delgado candidatou-se a Presidente e o tempo era de esperança”, recordou.
“Começara a aventura no espaço, com o Sputnik. As pessoas falavam de russos e americanos. Eu sonhava em acabar a 4ª classe e ser modista ou professora. Infelizmente, as eleições foram uma fraude, e acabámos com Américo Tomás a suceder a Craveiro Lopes. Foi um balde de água gelada.”
No início de 1961, o ano em que Henrique Galvão, capitão opositor de Salazar, comandou o assalto ao paquete Santa Maria, Antero/António mudou-se de novo com a família para o Porto, junto ao Mercado do Bom Sucesso. Durante três meses deram abrigo ao secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, à companheira e à filha de ambos, de poucos meses.
Cilinha não ficou fascinada com o homem que um dia entrou em sua casa disfarçado de cabelo e sobrancelhas louras. “Não era uma pessoa muito simpática”, diz ela sobre o líder comunista. “Talvez fosse assim, um pouco sisudo, porque tinha muitas responsabilidades. Muitas vidas dependiam dele.”
Maria, a mãe de Domicília, chegou a ser repreendida pelo partido por o ter deixado entrar, numa noite, quando ele apareceu sozinho e não com outro camarada. Ela reconheceu-o, e achava que o perigo seria maior se ele ficasse nas escadas.
Aos 17 anos, Domicília Costa, seguindo instruções do partido, procura um emprego. “Tínhamos uma verba mensal para comprar um de três diários – o Jornal de Notícias, o 1º de Janeiro ou O Século – e foi num destes que consultei os anúncios classificados.”
“Não poderia trabalhar numa fábrica ou em empresas comerciais porque os nossos documentos de identificação eram falsos. Eu teria gostado de trabalhar numa livraria, mas fui aconselhada a aceitar trabalho de costura, sem descontos para a então Caixa de Previdência.”

Trabalho de cozinha, em França, quando aqui se exilou, após romper com o PCP, em solidariedade com o camarada Silva Marques
© Domicília Costa
Aos 20 anos, o PCP pediu-lhe que fosse viver com um funcionário do partido sem que tivessem sido previamente apresentados.
“Era Inverno, talvez Janeiro de 1966, levei um jornal debaixo do braço para ser identificada, e esperei junto ao Largo de Contumil, no Porto. Ele disse-me algo que não recordo. Talvez me tenha perguntado as horas… A minha resposta deve ter sido disparatada – só podia ser! Em Abril fui sozinha, de Ermesinde à Baixa da Banheira.”
“O meu pai apenas me pôde ajudar a levar até ao comboio duas malas pesadíssimas (com roupas para o corpo e para a casa; pratos, talheres, panelas, tachos e outros objectos).
Despedimo-nos sem que ele soubesse para onde eu ia. A carruagem estava apinhada, com muitos soldados. Deveria ser sexta-feira. Fui em pé de Campanhã até Santa Apolónia. Segui de imediato para o Mosteiro dos Jerónimos.”
Ao vê-la com as malas, Silva Marques, o homem com quem o partido decidira que iria viver, “ficou horrorizado”. Como ela chegara duas horas atrasada, não deu para cumprir a regra de apanhar dois transportes. Ela ainda se lembra da mudança, com os pais, da Vila Nova da Caparica para a Cova da Piedade.
“Levámos a mobília, a gata e os coelhos. Como a camioneta não nos podia conduzir até ao destino pretendido, parámos num pinhal. Eu fiquei à espera com a minha mãe, até o meu pai chegar com outra camioneta.”
Silva Marques e Daniela – nome com que Domicília assinava, então, o jornal clandestino das mulheres do partido – foram de táxi até uma casa com duas divisões, cozinha e WC. “Ele dormia no quarto e eu, como sempre fiz desde criança, na sala de jantar.”
“Não recebíamos ninguém. Ele recolhia e dava informações noutros sítios. Contactava operários na CUF, e ambos fazíamos o boletim dos trabalhadores, batido a stencil.”
Silva Marques já havia estado preso. Fugira da cadeia do Porto. Quando suspeitaram que estavam a ser seguidos na Baixa da Banheira, mudaram-se para Paio Pires, depois para o Marquês de Pombal, seguindo-se as termas de São Pedro do Sul.
Viveram juntos durante quatro anos. A 3 de Agosto de 1968, regozijaram quando souberam que Salazar, de férias no forte de Santo António do Estoril, caíra da sua cadeira de lona, nunca mais recuperando.
Em 1970, quando o ditador morreu, a esperança renasceu. “Talvez Marcelo Caetano fosse melhor. No entanto, não tinha vontade de democratização. Algumas coisas até pioraram, como as torturas infligidas aos presos.”
A “união” com Silva Marques terminou quando ele decidiu afastar-se do partido. “Num congresso no estrangeiro onde foi votada uma moção, ele absteve-se, mas os jornais Avante e Militante noticiaram que o documento fora aprovado por unanimidade”, revelou Domicília.
“Ele protestou e pediu uma rectificação. O PCP foi prometendo ceder ao pedido mas, depois, recusou. Fiquei revoltada com a direcção. O meu camarada tinha razão. Solidária, decidi romper com o partido, mas quis comunicar aos meus pais sem interferências. Eles compreenderam, embora continuassem a ser funcionários leais.”
Silva Marques, que tinha “cadastro”, procurou exílio em França. Ela seguiu-lhe o exemplo, em Abril de 1970. Tinha 27 anos quando partiu “a salto”, sem passaporte, pela fronteira de Vilar Formoso. “Tive sorte porque arranjei logo trabalho numa organização não governamental que lidava com refugiados políticos, a maioria espanhóis.”
Foi em França que Domicília conheceu o marido, Joaquim Soares Santos Júnior, e nasceu o primeiro filho. Em 1974, o ano do 25 de Abril, o casal regressou à pátria. Inscreveram-se como membros do entretanto legalizado PCP. Em Janeiro de 1975, o marido foi readmitido na Função Pública; em Fevereiro, foram para a residência dos pais de Domicília em Oliveira do Douro.
Em 1991, após a queda do Muro de Berlim e do colapso da União Soviética – e, curiosamente, ano do encerramento da “fábrica da Figueira” –, Domicília e Joaquim apoiaram os que, no PCP, clamavam pela realização de um congresso extraordinário.
Exigiam debater os acontecimentos que mudavam o mundo. “Nem tudo o que nos disseram era verdade. Havia muitas mentiras. A URSS também tinha censura e presos políticos. A vida não era um mar de rosas. Senti-me enganada. A desilusão foi grande, mas no essencial sinto que valeu a pena tudo o que fiz.”
O pai de Domicília morreu em 1999. A mãe em 2000. Estão ambos sepultados em Arruda-dos-Vinhos.

Álvaro Cunhal (dir.), o líder histórico do PCP, foi um dos “hóspedes” dos pais de Domicília, mas hoje as ideias políticas de “Cilinha” estão em sintonia com as de Marisa Matias, candidata do Bloco de Esquerda às presidenciais, e de Catarina Martins (esq.), porta-voz do partido
A ligação ao Bloco de Esquerda começou por influência do filho mais novo e dos seus amigos. Convivia com eles e era chamada a participar em reuniões, com uma informalidade que a cativou, e que “nunca existiu” no PCP. “O BE é um partido aberto”, elogiou.
“Temeu-se o pior com a saída de Francisco Louçã, que era muito carismático. Felizmente, a Catarina Martins emergiu com uma grande vivacidade e simpatia. É talvez mais pequenina do que eu, mas revela grande experiência e consegue passar bem a mensagem por ser eloquente.”
Como é que Domicília foi parar às listas de candidatos às últimas legislativas? “Olhe, estava numa acção contra a privatização do metro do Porto e amigos do meu filho perguntaram-me se eu aceitaria ser candidata. Eu já tinha concorrido à Junta de Freguesia de Oliveira do Douro, em 2005.”
“Não estava a ligar-lhes nenhuma, e respondi: ‘Se acharem que faço falta, ponham-me para lá’. E fui para casa. Colocaram-me em 4º lugar. No dia das eleições, não fui, como era hábito, para as mesas de voto. Não fora preciso.”
“A tarde estava agradável, depois de ter chovido a potes de manhã, e decidi ir para o Bloco. À medida que iam sendo anunciados os resultados, as pessoas celebravam. Quando chegou a minha vez, muitos disseram que já esperavam, mas eu não. Fiquei muito surpreendida.”
A rotina que passava por nadar e caminhar, por motivos de saúde, foi alterada. Ainda a viver em casa de amigos, em Lisboa, só de sexta a segunda, Domicília Costa pode ir ao Porto. Também ainda está a aprender os regulamentos da Assembleia da República. “Não tenho pressa de intervir, quero aprender primeiro com os outros.”
No final da entrevista, com o mesmo brilhozinho nos olhos com que falou de Catarina Martins, enalteceu também Marisa Matias, a candidata do Bloco à Presidência: “Ainda não a conhecem bem, porque ela tem estado no Parlamento Europeu, mas quando se aperceberem da sua sabedoria e energia, as pessoas ficarão maravilhadas.”
[Em Julho de 2017, o Bloco de Esquerda informou que Maria Manuel Rola, de 33 anos, iria substituir, na Assembleia da República, Domicília Costa, 71 anos, que, “por cansaço” renunciou ao mandato de deputada.]

O livro As Mulheres de Alhandra na Resistência: Anos 40-Século XX, de Antónia Balsinha, onde é contada uma parte da história da sua família
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Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente na revista “Vida Ribatejana”, edição de Dezembro de 2015 | This article, now updated, was originally published in the Portuguese news magazine “Vida Ribatejana”, December 2015 edition