Historiador franco-libanês, Gilbert Achcar é o autor de Les Árabes et la Shoah: La guerre israélo-arabe des récits (“Os Árabes e o Holocausto: A guerra israelo-árabe das narrativas”), aclamada como uma obra de referência. Não há aqui complacência com os negacionistas do genocídio de seis milhões de judeus. Uma grande parte do livro é dedicada a Haj Amin al-Husseini, Grande Mufti de Jerusalém, e aos seus encontros com os nazis, durante a II Guerra Mundial. Na sequência da acusação de Netanyahu de que o extermínio foi ideia do defunto líder espiritual palestiniano e não de Hitler, telefonámos para Beirute, onde Achcar se encontra em ano sabático da cadeira de Relações Internacionais que lecciona na School of Oriental and African Studies (SOAS, Escola de Estudos Africanos e Orientais), em Londres. (Ler mais | read more…)

Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel
© hautetime.com
Como avaliou a declaração do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, de que a culpa pela Solução Final não foi de Hitler mas de Haj Amin Al-Husseini?
Netanyahu chocou o mundo inteiro, ao tentar exonerar Hitler. A única razão que encontro para este discurso ultrajante é a de que Netanyahu odeia os palestinianos mais do que odeia Hitler. Isto é chocante.
Sempre vimos revisionistas do lado pró-nazi e anti-semita; do lado sionista este revisionismo, agora expresso por Netanyahu, é surpreendente. Do ponto de vista histórico, o que Netanyahu disse é um disparate total.
Até o Governo alemão refutou imediatamente o que ele disse [assumindo o Holocausto como responsabilidade exclusiva nacional]. Na extrema-direita do movimento sionista há um ódio tão profundo aos palestinianos que não é difícil encontrar esta afinidade com Hitler, tentando absolvê-los dos seus crimes sórdidos.
Talvez, por quererem ver-se livres dos palestinianos – não digo que seja recorrendo ao genocídio, mas através de expulsões ou transferência em massa. Isto é muito perigoso e trágico. Netanyahu é um político oportunista, capaz de se exprimir de forma muito demagoga, de acordo com a sua audiência, para conseguir o que quer.
Não foi a primeira vez que a figura de Amin al-Husseini foi invocada para associar os palestinianos ao nazismo. Qual era, afinal, a relação entre o Mufti e Hitler?
Amin al-Husseini era um nacionalista de direita, sem escrúpulos e profundamente anti-semita. Ao contrário de Hitler, porém, a natureza do seu anti-semitismo estava na crescente colonização sionista da Palestina.
Isto não é uma justificação, mas é preciso distinguir o seu anti-semitismo do anti-semitismo na Alemanha, onde os judeus eram uma minoria oprimida.
Quando cortou relações com os britânicos e se mudou para Berlim [em 1940], Husseini aliou-se aos nazis e participou na propaganda deles, mas não desempenhou qualquer papel directo na Solução Final.
Husseini só teve conhecimento da Solução Final no Verão de 1943 – ele diz isso nas suas memórias, onde deixa claro que não lamenta o que aconteceu, “porque os judeus mereciam isso”, uma atitude que comprova a sua dimensão profundamente anti-semita.
No entanto, dizer que o genocídio foi levado a cabo por sugestão de Husseini é totalmente ridículo. A discussão entre historiadores respeitados é sobre se genocídio foi sempre um dos desígnios de Hitler ou resultou da sua derrota na Rússia.
Jamais um historiador debateu se Husseini influenciou a Solução Final, porque Hitler desprezava-o. Até a sua linguagem corporal quando se encontrava com o líder palestiniano denotava desprezo. A tentativa de Netanyahu rever a História é um sinal de doença mental grave.

Mohammed Amin al-Husseini, Mufti de Jerusaém, 1937
© Getty Images
O historiador israelita Tom Segev, num artigo no Guardian, recorda que Husseini pediu a Hitler que assinasse uma espécie de Declaração Balfour de apoio aos direitos palestinianos, semelhante ao documento britânico que defendeu um “lar nacional para o judeus”, mas que Hitler recusou. Lembra também que os árabes não foram os únicos a pedir assistência aos nazis. “No final de 1940 e de novo no final de 1941, antes de o Holocausto atingir o auge nos campos de extermínio, uma pequena organização terrorista sionista – Combatentes pela Liberdade de Israel, também conhecida por Bando Stern – contactou representantes nazis em Beirute esperando apoio alemão contra os britânicos. Um dos sternistas, então numa prisão britânica, era Yitzhak Shamir, futuro primeiro-ministro de Israel”…
Sim, uma parte da extrema-direita sionista tentou colaborar com os nazis. Mais: havia na Alemanha um movimento judeu que colaborou com os nazis.
Foi o único grupo não nazi autorizado a permanecer na Alemanha, e ajudou as autoridades nazis na transferência de judeus alemães para a Palestina. Essa colaboração manteve-se até 1941 – e isto está registado por todos os historiadores do Holocausto.
Pessoalmente, não gosto de entrar neste jogo. A extrema-direita colaborou mais com Mussolini, talvez, porque era menos problemático. A colaboração de judeus com os nazis acabou, naturalmente, quando a Solução Final começou a ser aplicada.
O que nos deve interessar, agora, é a recolha dos factos históricos e as lições que devemos aprender com eles. Netanyahu não segue esse caminho.

O Holocausto: o pior crime contra a Humanidade

A Nakba: Israel não reconhece que o êxodo palestiniano em 1948 foi o seu “pecado original”
No seu livro reconhece que vários líderes árabes, não apenas Husseini, colaboraram abertamente com os nazis, e que outros permanecem negacionistas do Holocausto, mas opõe-se à generalização deste anti-semitismo, que também distingue, por outro lado, do “sentimento anti-judeu profundamente enraizado na Europa”. Pode explicar?
Se um alemão é anti-semita, isso é racismo contra uma minoria que durante séculos foi oprimida na Europa. Se um palestiniano exprime opiniões anti-semitas é por se sentir oprimido num Estado que exige ser reconhecido como judaico, ignorando os não judeus que são cidadãos israelitas.
Perante a exigência de uma definição étnica, os palestinianos são tentados a posições anti-semitas – e devem ser criticados por isso –, mas é uma situação semelhante à dos negros sul-africanos que se manifestavam contra os brancos durante o regime de apartheid. Não é racismo preto-branco. É uma forma de o oprimido se rebelar contra a opressão.
A verdade é que há ainda muitos negacionistas do Holocausto no mundo árabe, não apenas palestinianos…
Sim, é verdade. Negam, sobretudo, que sejam responsáveis pelo Holocausto, que foi cometido por europeus. Vale a pena frisar que havia muito mais soldados árabes nas fileiras do Aliados do que no campo dos nazis.
É quase insignificante o número de combatentes árabes do lado nazi durante a II Guerra Mundial, comparado com o número extraordinário de soldados do Norte de África e do Médio Oriente que se juntaram às tropas britânicas e às francesas.
Havia 9000 palestinianos no Exército britânico! É certo que ainda há muitos árabes a negar o Holocausto, mas é uma maneira – completamente estúpida e eu chamo-lhes ‘loucos anti-sionistas’ – de exprimirem a sua fúria contra Israel.
No entanto, é preciso realçar que essa negação não pode ser comparada à negação do Holocausto por parte de um europeu, cujos países foram protagonistas do genocídio.
É estúpido, reafirmo, que haja palestinianos a negar o Holocausto, mas convém salientar, também, que o Estado Israel continua a negar a Nakba, a catástrofe palestiniana [o êxodo] de 1948 que foi cometida por Israel. Isto é ainda mais grave. Tal como é muito grave que as autoridades turcas continuem a negar o genocídio arménio [em 1915-1917, durante o período otomano].
Depois de 1948, a palavra “Holocausto” tem sido usada e abusada, pelos palestinianos, que reclamam reconhecimento da Nakba e se afirmam como “vítimas das vítimas”, e por muitos israelitas. O antigo primeiro-ministro Menachem Begin comparava Yasser Arafat, o líder da OLP, a Hitler, e até o filósofo Yeshayahu Leibowitz cunhou a expressão “judeu-nazi”. Até que ponto a ideologia sionista é responsável por esta desvalorização de um dos piores crimes da Humanidade?
A ideologia sionista foi promovida, de uma forma generalizada, por Elie Wiesel [um sobrevivente do Holocausto e Prémio Nobel da Paz]. É um termo muito mau. O significado bíblico é o da queima de oferendas a Deus. Isso é muito perigoso. É como uma representação dos judeus sacrificados em nome de Deus.
De vez em quando, aparece um rabi doido que descreve o Holocausto como um castigo divino, porque não os judeus não obedecem às suas leis. Naturalmente, isto gera críticas. Para ser honesto, acho que a declaração de Netanyahu a propósito de Husseini e Hitler encaixa na mesma categoria: loucura ideológica.
Em todo o caso, não é esta declaração de Netanyahu o grande problema, mas sim a atitude do Estado de Israel, já não apenas face aos palestinianos sob ocupação mas, também e cada vez mais, em relação aos palestinianos de cidadania israelita, sujeitos a mais e mais racismo – documentado por organizações israelitas de direitos humanos.
É preciso que o mundo entenda que Israel não representa as vítimas do Holocausto. O que Netanyahu disse exonerando Hitler deveria ser um toque de alarme, sobretudo na Europa, que deveria reagir, antes que seja tarde de mais.

Gilbert Achcar, autor de Les Árabes et la Shoah: La guerre israélo-arabe des récits (“Os Árabes e o Holocausto: A guerra israelo-árabe das narrativas”)
© enlacejudio.com
Este artigo foi publicado originalmente no jornal EXPRESSO em 24 de Outubro de 2015 | This article was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on October 24, 2015