A 14 de Fevereiro [de 2015], o “gigante de África” realizou eleições democráticas – as primeiras ganhas pela oposição na história do país mais populoso e maior economia do continente. Quatro analistas, três deles nigerianos, um investigador da Amnistia Internacional e o autor de um livro sobre o BH explicam a génese, os métodos e objectivos de uma seita que fez da guerra a sua religião. (Ler mais | Read more…)
– Et elle est comment, l’Afrique? – lui demandaient les gens.
– Fatiguée.
(In Soie, de Alessandro Baricco, Gallimard, Paris, 1997, p.13)

Um membro do Boko Haram posa para a fotografia, num bairro operário em Kano, na Nigéria
© Samuel James | The New York Times
Kyari Mohammed vive na cidade de Yola, capital de Adamawa – um dos três estados controlados pelo Boko Haram (BH) no Nordeste da Nigéria. “A insegurança, a tensão e o medo são permanentes”, diz-me por telefone, porque a Internet raramente funciona.
“Nunca sabemos se a morte chegará de noite ou de manhã. Há uma forte presença de tropas e comités de defesa civil. O problema é que, por falta de vontade política do poder central, o quinto maior exército de África tem sido incapaz de enfrentar uma milícia local – não global – que se transformou numa feroz máquina de guerra.”
Professor de História e director do Centro para a Paz e Estudos de Segurança na Universidade de Tecnologia Modibbo Adama, em Yola, Kyari Mohammed é especialista em grupos islâmicos radicais, conflitos comunais e etno-religiosos, relações inter-grupos e violência no Norte da Nigéria.
É também um dos académicos que contribuiu para Boko Haram: Islamism, politics, security and the state in Nigeria. Trata-se do primeiro grande estudo sobre “um movimento sectário que se tornou rebelião jihadista”, editado pelo Instituto Francês de Investigação em África (IFRA).
Para entender a seita que não hesita em raptar e decapitar crianças ou em usá-las como bombistas suicidas, que apaga do mapa povoações inteiras, que não distingue entre muçulmanos e cristãos nos seus massacres e ameaça desestabilizar parte de um continente, ouvi mais duas personalidades nigerianas: Henry Gyang Mang, residente em Jos, cidade no Centro, onde o BH tem cometido ataques bombistas, e um dos historiadores que também contribuiu para o estudo do IFRA; e Idayat Hassan, directora do Centro para a Democracia e Desenvolvimento da África Ocidental, em Abuja, a capital.
Contactámos igualmente Daniel Eyre, investigador da Amnistia Internacional, e Alex Perry, autor do livro The Hunt for Boko Haram: Investigating the Terror Tearing Nigeria Apart. Com a ajuda destes analistas – todas as entrevistas foram dadas por telefone –, tentamos responder às seguintes questões:
Quando apareceu o Boko Haram?
Há três datas associadas ao aparecimento do Boko Haram: 1980, 1995 e 2002. A primeira liga-o a Mohammed Marwa, mais conhecido como Maitatsine (“aquele que amaldiçoa”), palavra do dialecto hausa que caracterizava os seus discursos políticos e religiosos. Maitatsine nasceu em Marwa, nos Camarões. Em 1945 mudou-se para o estado nigeriano de Kano.
Pregador controverso, recusava as tradições (Sunnah) islâmicas e considerava “paganismo” a leitura de qualquer livro que não fosse o Corão. Chegou a renegar Maomé e autoproclamou-se “annabi” (profeta).
Em 1972, comandava a milícia Yan Tatsine, composta sobretudo por jovens e migrantes desempregados. Constantemente a desafiar as forças militares, morreu em 1980, com outras 5000 pessoas, em confrontos armados.
A segunda data (1995), referida pelos serviços secretos nigerianos, enraíza o Boko Haram na Organização da Juventude Muçulmana (Ahlulsunna wal’jama’ah hijra ou simplesmente Shabaab), criada por “um tal de Abubakar Lawan”.
Lawan, que tinha base em Maiduguri, capital do estado de Borno, não advogava a violência. Quando foi estudar para Universidade de Medina, na Arábia Saudita, um outro pregador, Mohammed Yusuf, assumiu o seu lugar. Descreviam-no por vezes como um “guru lunático” que negava, designadamente, a rotação da Terra em redor do Sol.
Com a ascensão de Yusuf, em 2002, o Boko Haram declarou-se opositor do secularismo, do sistema bancário tradicional, da cobrança de juros, da jurisprudência e, acima de tudo, da “educação ocidental.” Para a advogada Idayat Hassan, ex-coordenadora do Movimento contra a Corrupção na Nigéria, este é “um grupo sem ideologia nem doutrina; não é uma organização religiosa, mas um projecto terrorista.”
Quem é o actual líder do Boko Haram?

Abubakar Shekau, líder do Boko Haram
© africanarguments.org
Em Julho de 2009, o comandante-chefe (amir ul-aam) do Boko Haram, Mohammed Yusuf, foi preso pelas forças de segurança durante uma rusga a casa de familiares. Entregue à Polícia Nacional, procurou evadir-se da cela onde o colocaram. O Exército voltou a capturá-lo. Seria executado, publicamente, em frente à esquadra de onde tentou fugir.
A “liderança espiritual” foi então assumida por um dos seus adjuntos, Abubakar Muhammad Shekau, que a BBC definiu como “uma mistura de teólogo e gangster”. Venerado pelos seguidores como “imã” (o que lidera a oração), Shekau escandalizou o mundo quando o BH raptou mais de 200 meninas, em Abril de 2014, prometendo-as vender como escravas sexuais. Fez isso e mais: tem vindo a usá-las também como bombistas suicidas.
Não se sabe exactamente a idade de Shekau. Este apelido é o nome da sua aldeia, no estado de Yobe, Nordeste Talvez esteja mais próximo dos 40 do que dos 30 anos. Uma das poucas certezas é a de que os Estados Unidos ofereceram uma recompensa superior a sete milhões de dólares por quem denunciar o seu paradeiro.
Segundo o académico nigeriano Freedom Onuhoa, um dos que colaborou no estudo do IFRA, Shekau “mantém uma estrutura de comando e controlo que lhe permite operar autonomamente. As unidades e células estão interligadas, mas estas só respondem às ordens de um comandante”. O mais alto órgão de decisão do BH é o Conselho Consultivo (Shura).
Shekau é o dirigente máximo que coordena e autoriza os atentados mais bárbaros, mas poucos têm acesso a ele, dado o seu carácter reclusivo e desconfiado. Quando Yusuf foi morto, Shekau ter-se-á casado com uma das quatro mulheres do seu mentor e adoptado os seus 12 filhos.
O que significa “Boko Haram”?

Rachel Daniel, 35 anos, mostra uma foto da filha Rose, 17, raptada pelo Boko Haram a 14 de Abril de 2014. Nesta imagem, datada de 21 de Maio do mesmo ano, a mãe está ao lado do filho, Bukar, de 7 anos, na sua casa em Maiduguri, nordeste da Nigéria. Rose foi uma das mais de 200 crianças sequestradas pelo BH numa escola secundária em Chibok, no estado de Bornos
© Joe Penney | Reuters
O nome com que se apresenta “oficialmente” é longo: Jama’atu Ahlis-Sunnah Lidda’awati Wal Jihad, ou Povo Comprometido com a Propagação dos Ensinamentos do Profeta [Maomé] e da Jihad. “Boko Haram foi um termo cunhado por alguns media nigerianos, sobretudo no Sul, maioritariamente cristão, com o propósito de retratar um bando de muçulmanos primitivos”, explica Alex Perry, que é também editor revista Newsweek para o Médio Oriente.
“Muitos têm, erradamente, traduzido ‘Boko Haram’ como ‘A educação ocidental é um pecado’, mas ‘pecado’ é um conceito cristão inexistente no Islão. Em árabe, haram é igual a ‘proibido’, o contrário de halal, que quer dizer ‘permitido’.”
Também não é correcto igualar “Boko” a “livro”, com origem na palavra inglesa “book”, esclarece o linguista Paul Newman, autor de uma obra de referência: o Dicionário Hausa-Inglês. “’Boko’ quer dizer ‘algo (uma ideia ou objecto) que envolve falsidade ou fraude’. O nome refere-se ‘a leitura ou caligrafia que não esteja ligada ao Islão. O termo é, de um modo geral, precedido de ‘Karatun’ (escrita/estudo). Portanto, ‘Karatun Boko’ será o equivalente a ‘Educação de tipo ocidental’.”
Porquê condenar a educação ocidental e usar o seu progresso?

Alunas de uma escola privada, de ensino primário e secundário, em Maiduguri, nordeste da Nigéria. O edifício exibe as marcas de um ataque do Boko Haram, o grupo que orgulhosamente proíbe a “educação ocidental”
© AFP | New York Observer
Para o professor Kyari Mohammed, “a rejeição da educação e civilização ocidentais são dois pilares inseparáveis que definem o Boko Haram”, e o distinguem de outros grupos congéneres, como a Irmandade Muçulmana egípcia, por exemplo. O fundador deste movimento, Hassan al-Banna (1906-1949), e o ideólogo, Sayyid Qutb (1906-1966), “frequentaram instituições seculares modernas e não madrassas [escolas] islâmicas”.
O prémio Pulitzer Lawrence Wright revela, em As Torres do Desassossego, que o fervoroso nacionalista e anticomunista Qutb nem sequer se considerava muito religioso quando foi estudar para os EUA depois de o Rei Farouk ter ordenado a sua prisão em 1948.
Havia muito de “ocidental” na sua maneira de ser e agir: “O vestuário, o gosto pela música clássica e filmes de Hollywood. Lera obras traduzidas de Darwin e Einstein, Byron e Shelley, e imergira profundamente na literatura francesa, sobretudo Victor Hugo.”
Em todo o caso, Qutb já se preocupava com “o avanço da civilização ocidental”, que via como entidade cultural única. “As distinções entre capitalismo e marxismo, cristianismo e judaísmo, fascismo e democracia eram insignificantes, comparadas com a grande divisão na mente do “Irmão Muçulmano”: o Islão no Oriente, de um lado; o Ocidente cristão, do outro”, sublinhou Wright.
De início, Qutb sentia-se atraído pela América, país que considerava “assente em valores”, e não nas “noções europeias de superioridade, classes e raças privilegiadas”, uma nação de imigrantes “permeável a relações com o resto do mundo”, incluindo os árabes. Isso mudou quando o Presidente Henry Truman decidiu apoiar a “causa sionista” e um “lar nacional” para os judeus na Palestina.

Nesta fotografia, datada de 15 de Setembro de 2016, mulheres e crianças fazem fila para entrar num dos centros de nutrição da Unicef, num improvisado campo que acolhe mais de 16.000 deslocados internos, nos arredores de Maiduguri, estado de Borno, nordeste da Nigéria, uma região fustigada pelo Boko Haram
© Stefan Heunis | AFP
Kyari Mohammed atribui, parcialmente, “a aversão” que o Boko Haram nutre pela educação ocidental à retrógrada doutrina wahhabita que moldou o pensamento do seu criador, Mohammed Yusuf, quando este regressou da Arábia Saudita. Para Yusuf, “a educação ocidental – na qual incluía a medicina, a tecnologia, a geografia, a geologia, a sociologia, a física e, obviamente, a língua inglesa” – é uma herança dos colonialistas europeus.”
Não será hipócrita esta interpretação, sendo que o Boko Haram usa o as tecnologias mais avançadas da civilização ocidental? “Ah sim”, responde Alex Perry, com uma gargalhada. “Estes tipos odeiam como hereges todos os que não adoptem o salafismo [extremo fundamentalismo], e rejeitam tudo o que tenha a ver com progresso, desenvolvimento económico ou científico. Não há razão ou lógica de pensamento e acção.”
“Querem recuar a um tempo em que os bens materiais não tinham qualquer valor e só Deus importava. Na sua arrogância e insignificância, não conseguem camuflar as contradições. Não lhes interessa filosofia e sofisticação, mas movem-se em carros de alta cilindrada (Mohammed Yusuf conduzia um Mercedes, tinha computadores e telemóveis), usam satélites para comunicar e colocam vídeos dos seus crimes no YouTube. Matar tornou-se, para eles, não um meio para atingir um fim, mas o objectivo final. Matar é a sua religião.”
É também esta a opinião de Henry Gyang Mang, investigador com dois mestrados, um em Estudos Africanos, pela Universidade de Oxford, e outro em Arte na História, pela Academia de Defesa Nigeriana, em Kaduna, capital do estado com o mesmo nome, no Nordeste.
“Quando perguntaram a Yusuf por que usava aparelhos de tecnologia moderna, ele respondia que eram produtos fabricados por Deus, porque Deus fornecia a matéria-prima”, afirmou o académico que habita e lecciona em Jos. “O Boko Haram não renega o conhecimento para o qual o Islão contribuiu, mas execra a educação ocidental porque não permite a criação de um Estado teocrático.”
O colonialismo britânico explica a hostilidade ao Ocidente?

Londres, 1955: a Rainha Isabel II de Inglaterra conversa com estudantes nigerianas durante uma visita a um centro de estudos do British Council que alojava “350 alunos e alunas coloniais”
© AP
Kyari Mohammed admite que a radicalização islâmica na Nigéria remonta ao período colonial, quando o Califado de Sokoto, “um dos maiores impérios muçulmanos do Sahel” durante o século XIX, se opôs à ocupação britânica, iniciada em 1902.
O país mais populoso de África (quase 175 milhões de habitantes), constituído por 36 estados e 250 grupos étnicos (os Hausa e os Fulani são predominantes, 29%), a mais pujante economia e o maior produtor de petróleo do continente, só em 1960 se tornou independente do Reino Unido.
Ainda que, a partir de 1906, vários emires (chefes religiosos) tivessem “colaborado” – de forma voluntária, compulsiva ou dissimulada – na “domesticação do Islão” e na “administração colonial indirecta” impostas pelos ingleses, a maioria dos cidadãos no Norte sempre demonstrou “desdém pela educação ocidental”.
Este desprezo “não era novidade”, salientou Mohammed. “O que surpreendeu foi o recurso à violência”, acentuado a partir de 1978-79, com o aparecimento, em Jos, da Izala (Jama’t Izalat al Bid’a Wa Iqamat as Sunna) ou Sociedade para a Extinção da Inovação e Restabelecimento da Tradição, rival das confrarias sufis locais. Posteriormente, Izala e Boko Haram tornaram-se arqui-inimigos.
Uma das divergências foi a instauração da lei islâmica (Shariah) em 11 estados, a partir de 2000. Zamfara foi o primeiro a implantar este código legislativo, mas apenas como complemento e não substituto da Constituição secular em vigor – o que enfureceu o Boko Haram.
No início de 2009, Mohammed Yusuf afrontou publicamente os Ulema (teólogos) da Izala, acusando-os de “pactuarem com o governador, autocrático e cleptocrático, do estado de Borno”. A Izala reagiu, acusando Yusuf de ser um “kharijita” (os primeiros dissidentes do Islão que mataram o califa Ali, antes do cisma sunitas-xiitas após a morte de Maomé).
Com esta acusação, a Izala “legitimou o assassínio” do líder do Boko Haram, apelando a que o Estado “exterminasse” o grupo. Dinâmicas externas, como a invasão do Afeganistão e a “guerra global contra o terror”, declarada pela América na sequência dos atentados de 11 de Setembro, agravaram também o radicalismo da seita.
Em todo caso, acrescentou Kyari Mohammed, os conflitos violentos foram instigados num período anterior, a partir dos anos 1980, devido a factores internos: “Programas estruturais que depauperaram o Norte, má gestão de recursos limitados e galopante corrupção das elites. Com a frustração cresceu o zelo religioso, um ciclo vicioso comum em tempos de crise e incerteza.”

O Califado de Sokoto era, quando começou a ocupação britânica, “um dos maiores impérios muçulmanos do Sahel”
© Wikimedia Commons
O demagogo Yusuf começou por apresentar o Boko Haram como “movimento social ao serviço dos órfãos, viúvas e mais vulneráveis”. Apregoando “a irmandade de todos os muçulmanos”, também recrutava facilmente jovens desempregados que acorriam aos centros urbanos para poderem sobreviver.
Henry Mang, o historiador em Jos, adianta: “Há uma enorme fractura entre o Sul e o Norte, sofrendo esta região as maiores disparidades. A Nigéria não tem encorajado a educação dos jovens. Sem oportunidades de trabalho, sem indústria e comércio locais, são presas fáceis”.
O jornalista Alex Perry corrobora: “Qual o jovem que não se sente tentado a alistar-se no Boko Haram quando estes sociopatas lhes oferecem comida, armas e ‘prestígio’? E quem se arrisca a não ser ‘voluntário’ se o castigo será sempre impiedoso?”
“Convém sublinhar, porém, que não são apenas razões económicas que ajudaram a expandir o Boko Haram”, alertou Mang. “Há, nos seus membros, uma inegável atracção pelo restabelecimento, a qualquer preço, de um Estado islâmico – nostalgia pelos emirados do passado.”
As forças de segurança contribuíram para o terrorismo?

Agentes da Polícia nigeriana, usando máscaras e capuzes par não serem identificados, patrulham a cidade de Maiduguri, onde nasceu o Boko Haram, estado de Borno, nordeste do país, agora sob seu controlo
© AFP | Foreign Policy
De seita “mais interessada em derrubar o governo do que em eliminar a corrupção que afecta vários sectores da sociedade”, segundo Henry Mang, o Boko Haram tornou-se organização terrorista “em grande parte devido à ineficácia – e até cumplicidade – das forças de segurança.”
“O número de tropas tem vindo a diminuir”, refere, “muitos soldados deslocados para Norte não conseguem comunicar com as populações porque há uma barreira linguística – nem todos se exprimem em hausa. Quando há denúncias de ataques com centenas de vítimas, a tendência é para desvalorizar esse número, para não ‘baixar ainda mais o moral dos militares’ que estão muito mal equipados.”

I8 de Dezembro de 2014; a nigeriana Halima Ibrahim e os filhos vivem refugiados no campo de Gagamiri, no Níger, depois de o marido ter sido assassinado em Damassak
© Delafortrie Anouk | AP
Kyari Mohammed, por seu turno, enuncia três razões da fragilidade crescente do Exército: 1) Começou por lançar operações militares para provocar abertamente o confronto com os militantes do Boko Haram quando iam ou regressavam das suas prédicas (dawah) nocturnas; 2) em 2009, ao matar 17 membros do BH numa cerimónia fúnebre no cemitério de Gwange – isso precipitou a violência em Maiduguri. Ao verem negada a possibilidade de enterrarem os seus motos e de visitarem os feridos no hospital (na sequência de um acidente de viação), o BH decidiu que chegara a hora de declarar guerra ao Estado; 3)Uma ofensiva generalizada contra o grupo, incluindo a execução extrajudicial do líder Yusuf e a destruição total do seu “quartel-general”, consumido totalmente pelo fogo, forçou o BH a entrar na clandestinidade. Alguns membros fugiram para receber melhor treino paramilitar; outros esconderam-se em montanhas e florestas inacessíveis, na fronteira com os Camarões.
A perseguição por parte das forças de segurança não enfraqueceu o BH. Ao contrário do Exército, que tem uma fraca rede de informadores, o Boko Haram sabe tudo sobre todos. As suas primeiras vítimas foram os guardiões das aldeias que colaboravam com as autoridades, agentes prisionais que torturavam os detidos da seita e até destacados políticos do Partido Popular de toda a Nigéria, que é o mais influente no estado de Borno.
O “sucesso” dos ataques do BH na revolta contra os seus opressores fez com que alguns militantes que estavam “na sombra” voltassem ao activo, engrossando as fileiras da seita. Importante também realçar, segundo Kyari Mohammed, é que, enquanto o Boko Haram “só se vinga sobre aqueles que os antagonizam”, as forças de segurança não fazem esta distinção.
Por exemplo, se uma esquadra é atacada, e por não terem informação sobre os agressores, os militares da chamada Joint Task Force-Operation Restore Order (JTF) castigam implacavelmente todos os civis.
Em Abril de 2013, três meses após a instauração do estado e emergência em quatro estados, revela Mohammed, pelo menos 185 civis desarmados foram assassinados e mais de 2000 casas incendiadas pelos militares, depois de um veículo de patrulha da Polícia ter sido alvo de uma emboscada na cidade de Baga, em Borno.
“O Boko Haram provoca deliberadamente as tropas porque sabe que a retaliação recairá sobre os habitantes locais”, lamentou o académico nigeriano. Os próprios líderes tribais têm feito repetidos apelos à retirada da JTF, acusando esta força de “matar rapazes inocentes e de violar meninas e mulheres casadas.”
Onde vai o BH buscar armas e fundos?

Um soldado chadiano de guarda a um lote de armas confiscadas ao Boko Haram, em Abril de 2015, em Malam Fatori, no nordeste da Nigéria, depois de o grupo islamista ter sido daqui escorraçado am a ajuda de tropas dos vizinhos Chade e Níger
© Philippe Desmazes | AFP | Getty Images
O Boko Haram não tem escassez de fundos e armamento, garante Daniel Eyre, principal investigador da Amnistia Internacional para a Nigéria.
“Eles roubam famílias, quando atacam as aldeias; eles assaltam bancos; eles recorrem a todo o tipo de extorsão, seja políticos ou comerciantes; eles infiltram-se em esquadras e quartéis e apoderam-se de armas e munições. São autossustentáveis.”
“Na selecção dos alvos”, adiantou, “escolhem as comunidades que definiram como ‘não crentes’, e é aqui que têm levado a cabo raptos, em particular de crianças, que depois vendem e/ou sujeitam a violações. As mais recentes imagens de satélite que a Amnistia revelou expõem, de forma nítida, o nível de destruição que o BH pode causar.”

Esta imagem de satélite mostra as vizinha localidades de Bagae Doron Baga (conhecidas como Doro Gowon) , a 7 de Janeiro de 2015. A cor amarela indica os edifícios destruídos depois de um ataque do Boko Haram
© Amnistia Internacional

Um bairro inteiro desapareceu do mapa, em Baga, entre 2 e 7 2de Janeiro, como mostram estas imagens de satélite que chocaram o mundo
© Amnistia Internacional
“Não é fácil recolher informações credíveis e independentes – basta referir que o Boko Haram tem destruído torres de telecomunicações para não ser detectado”, reconhece Daniel Eyre. “Confiamos, porém, nos testemunhos dos sobreviventes, ainda que alguns, demasiado traumatizados, optem pelo silêncio ou recalcamento das memórias.”
Eyre foi um dos responsáveis da Amnistia que alertou o mundo para um segundo massacre em Baga – cerca de 2000 mortos (um número que depois foi revisto para “várias centenas”, devido à impossibilidade de contar todos os corpos).
Foram seis dias de matança – sem precedentes – que a comunidade internacional ignorou, mais preocupada com o ataque de outros jihadistas ao semanário satírico Charlie Hebdo, em Paris, do qual resultaram mais de uma dezena de mortos. O BH atacou um quartel e as tropas bateram imediatamente em retirada. Logo de seguida, os terroristas cercaram as aldeias e “mataram tudo o que estava à vista”. Ninguém escapou: nem bebés nem idosos.
Na sua missão, Daniel Eyre confessa que uma das imagens que mais o perturba “é saber que, durante a noite, quando famílias inteiras se preparam para dormir, os fanáticos do Boko Haram sairão dos seus esconderijos atrás de árvores para dizimarem populações civis. São actos deliberados – mas não diferencio as acções dos insurrectos e dos militares: todos são culpados de crimes contra a humanidade. É preciso fazer mais para obter justiça.”
Henry Mang, por seu turno, lembra-se que, há cerca de três meses, uma aldeia vizinha de Jos, onde vive, foi atacada durante a noite. “Saquearam tudo o que havia de alimentos, mataram o gado e depois deitaram fogo às casas e colheitas. Não há dia nenhum em que não tenhamos notícias de civis mortos. Depois de queimarem tudo e içarem as suas bandeiras negras, os terroristas desaparecem.”
“Escondem-se nas matas, onde é quase impossível encontrá-los, devido à densa vegetação que os abriga. Outros atravessam fronteiras porosas, para se refugiarem no Chade ou nos Camarões. Infelizmente, as maiores vítimas são os milhões de refugiados e deslocados internos que continuam a chegar a campos de acolhimento provisórios.”
Como é que cristãos e muçulmanos encaram o BH?

Bridgette Kasa, cristã nigeriana, passou a dormir no chão de uma igreja, num campo de deslocados internos. “Não é seguro voltar a casa”, atacada pelo Boko Haram, disse ela ao jornal canadiano Toronto Star
© Jesse McLean

Centenas de muçulmanos residentes em Kachia refugiaram-se em campos de deslocados, depois de casas, lojas e mesquitas terem sido incendiadas pelos terroristas do Boko Haram
© Jesse McLean | Toronto Star
Divididos em subgrupos, quer cristãos como muçulmanos não têm, também, qualquer estratégia para enfrentar a ameaça que o Boko Haram representa. “Este não é um grupo que ataca apenas cristãos”, ressalvou Alex Perry. “Se um muçulmano não se conformar com as regras do grupo também enfrentará a morte. Não são apenas igrejas mas também mesquitas que têm sido reduzidas a cinzas ou escombros.”
O establishment religioso muçulmano renega o “Islão” do BH como sendo “uma aberração”. Já os cristãos, em particular, os pentecostais, parecem mais interessados em garantir os seu privilégios na CAN (Associação de Cristãos da Nigéria) do que em procurar uma solução pacífica.
A CAN existe desde os anos 1980 mas as divergências têm vindo a agudizar-se desde 2010. Quem mais tem perdido fiéis são as Igrejas Anglicana e Católica ao contrário da Evangélica, mais abertas ao diálogo com o “Islão moderado”.
Qual a área territorial controlada pelo BH e como a administra?

Imagem de um vídeo colocado YouTube pelo Boko Haram mostra algumas das mais de 200 meninas raptadas de uma escola em Chibok, em Abril de 2014. Algumas foram vendidas como escravas sexuais e outras forçadas a casarem-se com membros do grupo
© Business Insider
Neste momento, diz-nos Kyari Mohammed, com três estados à sua mercê – Borno, Yobe e Adamawa –, o Boko Haram ocupa cerca de 52 mil quilómetros quadrados, área territorial comparável à da Bélgica, à da Costa Rica ou à da Eslováquia.
“Não se confunda o BH com o chamado ‘Estado Islâmico’ ou com a al-Qaeda”, aconselha a advogada Idayat Hassan. “Nas zonas controladas pelo ISIS há, aparentemente, uma administração que fornece alimentos e outros serviços básicos.”
“No Norte da Nigéria, ao Boko Haram só interessa impor a sua perversa jihad. Nos ataques a escolas, por exemplo, o BH degola rapazes e rapta meninas [como as mais de 276 sequestradas em Chibok em Abril de 2014. A campanha #BringBackOurGirls teve impacto nas redes sociais mas os terroristas ainda só libertaram 21, em Outubro de 2016.]
Houve tentativas de o BH se aproximar de outros grupos extremistas, mas nem estes quiseram uma aliança. O Boko Haram até pode aspirar a ser uma organização terrorista global mas não passa de uma facção local.”
Alex Perry, o jornalista, enfatiza: “Até a al-Qaeda se deve sentir embaraçada por ter discípulos como estes, gente a quem políticos e militares vendem armas; tipos que beneficiam da corrupção mas se consideram puros.”
Henry Mang não desvaloriza a “gravidade da situação”, dado que o Boko Haram controla não apenas três estados mas também vários municípios. “Mesmo com aplicação da lei islâmica, eles não conseguem governar eficazmente. Sabem apenas demonstrar que detém o poder e a força.”
Qual a política do Presidente Jonathan em relação ao BH?

Goodluck Jonathan (dir.) e o seu sucessor, Muhammadu Buhari
© Newsweek
“Goodluck Jonathan é completamente inútil”, declara Alex Perry, sem qualquer hesitação. “Quando surgiram as notícias do massacre de 2000 pessoas em Baga, o Presidente demorou 19 dias a reagir – e foi para negar o que acontecera.”
A sua mulher, Patience, também desmentiu o sucedido. O casal presidencial [que saiu de cena, em 29 de Maio de 2015, quando Muhammadu Buhari tomou posse, depois de derrotar o adversário, assinalando a primeira vez na história da Nigéria que um líder da oposição venceu o partido no poder em eleições democráticas] apressou-se, no entanto, a enviar telegramas de condolências ao líder francês, François Hollande, após a tragédia na redacção do Charlie Hebdo, em Paris. “Esta gente vive alheada da realidade”, criticou Perry.
Goodluck Ebele Azikiwe Jonathan é um cristão do Sul, nascido há 57 anos, em Ogbia, estado de Bayelsa. Pertence ao grupo étnico Ijaw. A 14 de Fevereiro, candidata-se a um novo mandato como chefe de Estado. Foi governador do seu estado entre 2005 e 2007, e já havia sido vice-presidente de 2007 a 2010. Pertence ao Partido Democrático Popular (PDP), no poder.
O rival directo de Jonathan [e actual Presidente] é Muhammadu Buhari, muçulmano do Norte, nascido há 72 anos na cidade-estado de Katsina. General na reserva, de etnia Fulani, governou a Nigéria de 1983 a 1985, depois de um golpe militar. Perdeu as eleições de 2003, 2007 e 2011 (embora, neste último ano, obtivesse 96,9% dos votos no Norte). No dia 14 de Fevereiro, [foi] o candidato comum de uma aliança de partidos na oposição: o Congresso de Todos os Progressistas (APC, sigla em inglês).
Para Idayat Hassan, este escrutínio ajuda a “definir a unidade e identidade do país, seja qual for o vencedor que venha a formar um governo de união nacional.” A Nigéria, adiantou, “é, a partir de agora, graças ao APC, um país bipartidário, tanto mais que o apoio do APC não se limita ao Norte.” Se a advogada nigeriana parece simpatizar com Buhari, o jornalista Perry não lhe dá o benefício da dúvida: “É um homem respeitado e de acção – é certo. Mas é um déspota e não é um democrata.”
[Em 14 de Abril de 2015, num artigo de opinião publicado pelo jornal “New York Times“, Buhari garantiu que tem uma estratégia para “destruir os terroristas do Boko Haram”, contando para isso com a ajuda dos Estados Unidos e dos vizinhos Chade e Níger.]
Nenhum analista ignora que o controlo que o Boko Haram exerce em três estados do Norte dificultará a votação. Aliás, muitos consideram a intensificação dos ataques do BH uma campanha de intimidação para que os nigerianos não votem “num sistema de infiéis”.
A Nigéria corre o risco de desintegração?
“Não haverá desintegração! A coexistência é um valor que os cidadãos muito prezam e querem preservar”, assegura Idayat Hassan. “Este não é um país que se possa dividir em categorias – urbano/tribal; moderno/antiquado; cristão/muçulmano…”, comentou Alex Perry. “Acredito que os nigerianos conseguirão conciliar as suas diversas identidades e salvar a nação – mesmo que Goodluck e Buhari representem o passado, não o futuro.”
Kyari Mohammed concluiu: “A Nigéria sobreviverá, mas o Boko Haram ainda andará por aqui durante algum tempo. Até haver vontade política para o derrotar.”
O homem deles em São Tomé

Saidu Pindar, primeiro embaixador da Nigéria em São Tomé e Príncipe, terá sido um dos patrocinadores do Boko Haram
© Nigeria News
O primeiro embaixador da Nigéria em São Tomé e Príncipe morreu em 2011, num misterioso acidente de viação. Os obituários elogiaram Alhaji Saidu Shettima Pindar como um “homem visionário e humilde”. O que poucos sabiam é que o diplomata com três décadas de carreira era um dos principais financiadores do Boko Haram.
A revelação foi feita por Sanda Umar Konduga (ou Usman Al-Zawahiri), membro do grupo terrorista, após a sua captura pelo exército, informou o website Safer Africa. O embaixador extraordinário e plenipotenciário, que havia sido designado em 2000 pelo antigo Presidente Olusegun Obasanjo, transportaria “mais de 3000 dólares” para o Boko Haram.
A viatura em que seguia despenhou-se na “mais perigosa estrada” que liga Kaduna, capital do estado com o mesmo nome, a Kano, cidade de outro estado homónimo.
Relatos de “media” e redes sociais nigerianos indicaram, citando “uma fonte”, que o acidente de Pindar terá sido causado “por más condições de alguns troços na via”. Ressalvaram, porém, que “nem isto pode ser confirmado.”
Saidu Pindar era uma figura política influente em Biu, onde nasceu em 1954, no estado de Borno, no nordeste, onde o Boko Haram vem intensificando a sua ofensiva, em particular em Baga. Organizações de direitos humanos denunciam que esta localidade, de 10 mil habitantes, “despareceu virtualmente do mapa” nas últimas semanas. Em Borno, autoridades governamentais e agências humanitárias não têm acesso a 20 dos 27 distritos locais.
Engenheiro de formação, Saidu Pindar pertenceu ao Partido Democrático Popular (PDP), que apoia, às presidenciais de 14 de Fevereiro próximo, o general na reserva Muhammadu Buhari, candidato (de fé muçulmana e etnia fulani) do Congresso de Todos os Progressistas e rival do actual chefe de Estado, Goodluck Jonathan (um hausa cristão).
Director executivo da Zona de Desenvolvimento Conjunto Nigéria-São Tomé e Príncipe que resultou de um tratado assinado em 2009, Pindar criou também uma fundação com o seu nome. Custeia, deste modo, mais de 3000 bolsas, para jovens de Borno estudarem no estrangeiro – e “transformarem a Nigéria”.
Que ironia: Saidu Pintar, que concluiu um mestrado na Universidade de Manchester, no Reino Unido, e foi embaixador em Roma, onde uma ONG cristã o homenageou pelos seus esforços contra o tráfico de seres humanos, apoiava uma seita cujo objectivo assumido é “destruir a “civilização ocidental”.
O nome Boko (em hausa, uma das línguas e etnias nigerianas) Haram (em árabe), significa “Educação Proibida”.

Familiares das meninas raptadas pelo Boko Haram em Chibok continuam à espera que elas sejam libertadas – só algumas voltaram para as suas casas
© Wall Street Journal
Estes dois artigos, agora actualizados, foram publicados originalmente no REDE ANGOLA, em 23 de Janeiro de 2015 | These two articles, now updated, were originally posted on the news website REDE ANGOLA, on January 23, 2915