Três analistas – uma marroquina, uma saudita e um israelita – comentam as razões dos que estiveram presentes e ausentes em Paris numa manifestação de solidariedade com as vítimas do ataque ao semanário satírico Charlie Hebdo. (Ler mais | Read more…)

A partir da esquerda: Benjamin Netanyahu (Israel), Ibrahim Boubacar Keita (Mali), François Hollande (França), Angela Merkel (Alemanha), Donald Tusk (UE) e Mahmoud Abbas (Palestina), na “marcha pela unidade”, em Paris
© Dan Kitwood | Getty
O ministro dos Negócios Estrangeiros de Rabat decidiu não se juntar aos líderes do Norte de África e Médio Oriente que acorreram a Paris para a “marcha da unidade”.
A jornalista e historiadora marroquina Hanane Harrath não contém a indignação: “Considero intolerável” que Salaheddine Mezouar tivesse condicionado a sua presença à ausência das caricaturas de Maomé. “Fica claro que não tencionava respeitar a memória dos jornalistas do Charlie Hebdo mas proibir o que provocou as mortes injustificáveis!”
“Homenagem digna seria sublinhar que os cartoonistas [assassinados por autoproclamados discípulos de Osama Bin Laden] tinham o direito, salvaguardado pela Constituição [francesa], de serem insolentes”, diz-me Hanane Harrath, numa entrevista.
“O papel de um responsável político não é definir o que pode ou não pode ser pensado, mas assegurar que todos os cidadãos podem pensar livremente. O ministro marroquino traiu esta exigência. É muito grave!”
Com um mestrado em Política do Mundo Árabe pelo Instituto Sciences Po, em Paris, estudiosa dos “usos da memória colonial, da memória emigrada e imigrada na construção da narrativa política entre os franceses de origem magrebina”, Hanane Harrath critica: “Os responsáveis muçulmanos não podem manter por mais tempo o fosso que é defender a modernidade tecnológica sem modernidade intelectual.”
“O desafio que enfrentam é o de dessacralizar crenças e dogmas. O nosso drama é que todos os dias eles impedem isso.”
Se Salaheddine Mezouar faltou à manifestação outros fizeram gala em desfilar. Um deles, Nizar Obaid Madani, ministro de Estado dos Negócios Estrangeiros da Arábia Saudita. Este é o país que, na semana da mortandade na redacção do Charlie Hebdo, aplicou uma dura sentença ao blogger Raif Badawi.

Fotos dos cartoonistas mortos pelos terroristas em Paris erguidas por manifestantes, que seguram também um cartaz com a palavra de ordem Je suis Charlie
© John Michillo | AP
Na quarta-feira, o reino dos Saud qualificou o ataque levado a cabo por fiéis da sua implacável doutrina islâmica wahhabita como “acto terrorista cobarde”. Na sexta-feira, Badawi foi retirado da prisão de Jidá e conduzido a uma praça frente a uma mesquita para 50 chicotadas, “primeira fase” de uma flagelação pública. O castigo repetir-se-á durante 19 semanas. Arrisca-se ainda a permanecer dez anos na cadeia.
Uma activista saudita, que pediu o anonimato, “por questões de segurança”, disse-nos: “A liberdade de expressão nunca existiu neste país. É hipocrisia que as autoridades tenham condenado o ataque em Paris, mas também são hipócritas os líderes mundiais que se manifestam em defesa da liberdade de expressão e continuam aliados da Arábia Saudita.”
“Não é a defesa da liberdade que juntou todas estas personalidades e sim a condenação do terrorismo – o ponto comum”, admitiu Hanane Harrath.
“Também há, seguramente, razões eleitorais ou de comunicação política”, adiantou, citando os casos dos primeiros-ministros Benjamin Netanyahu (Israel terá eleições em Março) e Ahmet Davutoglu (a Turquia tem sido alvo de críticas por prender jornalistas).
Ao israelita Larry Derfner, colunista do Jewish Journal of Greater Los Angeles e do website +972, perguntámos as razões que levaram até França Netanyahu e o presidente palestiniano, Mahmoud Abbas. Respondeu: “Netanyahu foi tentar mostrar que nada distingue o Hamas e o Hezbollah, inimigos directos de Israel, do ISIS [chamado ‘estado islâmico’ ou Daesh] e da Al-Qaeda.”
“Esta é uma argumentação só aceite pelos líderes dos EUA, Canadá, Austrália e Reino Unido. Quanto a Abbas, suponho que foi tentar solidificar apoio e destacar – o que é verdade – que tem sido bem sucedido no combate ao terrorismo na Cisjordânia.”
Face à gigantesca manifestação em Paris – mais de um milhão de pessoas – houve quem se interrogasse, nas redes sociais, por que motivo não se viu este tipo de iniciativa quando, em 2011, Anders Behring Breivik, um “fundamentalista cristão”, matou 76 pessoas “para travar a islamização” da Noruega.
Conclui Hanane Harrath: “O problema estará na recorrência de ataques cometidos em nome do Islão. É claro que todos os muçulmanos não são terroristas mas, hoje, são muçulmanos a maioria dos terroristas. Estes são os factos.”
“Outro problema: quando se justifica um atentado com convicções políticas estamos no terreno da razão. Quando se evoca a religião passamos para o domínio do sagrado, o que não é questionável. É isto que provoca um bloqueio e condena o diálogo.”

Hanane Harrath
© aujourdhui.ma

Larry Derfner
© The Forward
Este artigo foi publicado originalmente no jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, edição de 12 de Janeiro 2015 | This article was originally published in the Portuguese newspaper DIÁRIO DE NOTÍCIAS, on January 12, 2015