Pais e Filhas do Irão: 10 retratos contra muitos preconceitos

A influente rede de fotografia LensCulture premiou Fathers & Daughters, de Nafise Motlaq, como “um dos melhores projectos de 2014”. Inspirada numa história de amor filial, a autora quis destruir esterótipos e restituir a humanidade tantas vezes negada às mulheres iranianas – como ela. (Ler mais | Read more…)

O pai de Newsha é engenheiro. “Ele está ausente de casa cinco dias por semana. Juntamo-nos, de um modo geral, aos fins-de-semana e aos feriados.” © Cortesia de Nafise Motlaq

O pai de Newsha é engenheiro. “Ele está ausente de casa cinco dias por semana. Juntamo-nos, de um modo geral, aos fins-de-semana e aos feriados”
© Cortesia de | Courtesy of  Nafise Motlaq

O pai de Fatemeh é empregado de escritório. “É um bom pai. Não sei o que posso adiantar mais.” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Fatemeh é empregado de escritório. “É um bom pai. Não sei o que posso adiantar mais”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

Em 1999, no primeiro semestre de uma licenciatura em Jornalismo, Nafise Motlaq foi trabalhar em part-time para um diário de Teerão.

“Comprei uma câmara para que os meus artigos fossem acompanhados de imagens, e fiquei surpreendida quando os editores me disseram que gostavam mais das fotos do que dos textos”, disse-nos.

Quinze anos depois, um projecto desta fotojornalista iraniana intitulado Fathers & Daughters (Pais e Filhas), 10 retratos cada um com legendas curtas, foi premiado pela prestigiada LensCulture como um dos Top 50 Emerging Talents 2014 (“50 Maiores Talentos Emergentes de 2014”).

A LensCulture é das maiores redes mundiais de curadores de fotografia contemporânea, seguida por mais de meio milhão de pessoas.

Do júri que escolheu os vencedores de 2014 fizeram parte Jim Casper, director da LensCulture em Paris, Corey Keller, curadora de fotografia do Museu de Arte Moderna de São Francisco; Olivier Laurent, director da TIME Lightbox, em Nova Iorque; Sujong Song, da Bienal de Fotografia de Seul (Coreia do Sul); e Clare Grafik, responsável de exposições da Photographer’s Gallery, em Londres.

A série de Nafise Motlaq mereceu uma exposição, que decorreu em Outubro, em Barcelona (Espanha) e a LensCulture irá organizar outras, em datas a anunciar, em Nova Iorque e San Francisco, Tóquio, Seul e Paris. Aqui, foi igualmente seleccionada para o festival de fotografia La Quatrième Image.

Nafise deixou o Irão há uma década, para concluir, em Kuala Lumpur, um mestrado e o doutoramento em Comunicação Social, curso que agora lecciona na Universiti Putra Malaysia (UPM). Ser professora dá-lhe “flexibilidade necessária” para continuar a dedicar-se à fotografia.

“Depois de vários anos a viver fora do meu país, apercebi-me dos muitos estereótipos sobre os iranianos, em parte devido ao que a maioria dos media internacionais transmite”, explicou-me a premiada, numa troca de correspondência por e-mail.

“Com Fathers & Daughters tentei desconstruir uma concepção errada, mas também me inspirei numa história pessoal. Eu estava na Malásia quando fui informada de que o meu pai se encontrava em coma, com uma doença muito grave”, adiantou.

“Com base nos prognósticos dos médicos, restava-lhe pouco tempo de vida mas, felizmente, ele recuperou. Desde então, sinto que estabeleci uma relação de mais amor e maior proximidade com ele, apesar de eu continuar a residir no estrangeiro.”

O pai de Shadi é empresário. “Tem a alma de um rapazinho teimoso. É preciso saber lidar com ele.” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Shadi é empresário. “Tem alma de rapazinho teimoso. É preciso saber lidar com ele”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Arezoo vende tapetes. “É um homem muito divertido. As pessoas riem-se com as suas piadas e brincadeiras nas festas de família.” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Arezoo vende tapetes. “É um homem muito divertido. As pessoas riem-se com as suas piadas e brincadeiras nas festas de família”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

Assim que regressou ao Irão, após sete anos de ausência, Nafise dedicou-se de imediato à ideia que ambicionava concretizar. “O plano seria necessariamente simples, porque eu tinha apenas duas semanas para o concluir”, referiu.

As fotografias foram captadas em Teerão, a capital, em pequenas cidades e em duas aldeias, que a autora não identifica. “Isso não era importante. Crucial era que as imagens fossem a cores. Embora goste muito de fotos a preto e branco, não seria o estilo mais adequado a este projecto.”

Em vários países onde a população é maioritariamente muçulmana, ainda há quem acredite, sobretudo nas áreas rurais, que “a fotografia rouba a alma”. Foi difícil chegar a estes pais e filhas? “Não”, garantiu Nafise.

“A experiência em fotojornalismo ensinou-me como infundir confiança e a comunicar. O único problema, de facto, foi o tempo ser escasso, mas familiares e amigos ajudaram-me muito. Aos que se mostravam relutantes em se deixar fotografar mostrei-lhes imagens que já anteriormente havia recolhido, como prova de que os respeitaria como eles eram.”

O retrato “mais difícil” foi o do bibliotecário da mesquita, que aparece de túnica e turbante, porque os mais devotos “tendem a ser muito conservadores”, especificou Nafise.

“Desloquei-me a um centro de teologia, no sul de Teerão, e aproximei-me de algumas figuras religiosas até que um deles aceitou colaborar. Interessava-se pessoalmente por fotografia, elogiou o meu projecto e ajudou-me a contactar um pai e uma filha [Fatmeh] para esta série.”

Haverá quem se surpreenda com os retratos de filhas sem o tradicional hijab e algumas de mini-saia, mas quem visita o Irão comprova que longe vão os tempos castradores que se seguiram à Revolução Islâmica do Ayatollah Khomeini, em 1979, quando imperavam os longos chadores negros e o amor não se podia exprimir em público.

“Hoje, em centros comerciais, por exemplo, é vulgar encontrarmos raparigas como as gémeas numa das minhas fotos, com vestidos coleantes, ostensivamente maquilhadas e passeando de mãos dadas com os namorados” , exultou Nafise.

O pai de Zahra está desempregado. “Não sei o que dizer. Na verdade, não sei.” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Zahra está desempregado. “Não sei o que dizer. Na verdade, não sei”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Katayoon é militar na reserva. “Os meus amigos acham que ele se preocupa demasiado comigo, mas eu vejo-o como um grande apoio na minha vida.” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Katayoon é militar na reserva. “Os meus amigos acham que ele se preocupa demasiado comigo, mas eu vejo-o como um grande apoio na minha vida”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

Quem desafia os rígidos códigos puritanos não está ainda, todavia, isento de riscos. Desde o início de Outubro, na histórica cidade de Isfahan, “oito a nove mulheres” foram agredidas com ácido, lançado por homens que circulavam em motorizadas, informou um responsável local citado pelo diário The New York Times.

Os ataques seguiram-se à aprovação de uma lei que resguarda os “protectores dos valores islâmicos”. As motos são, habitualmente, usadas por elementos da temível milícia Basij, que reprimiu barbaramente os protestos de 2009 contra a reeleição do anterior Presidente Mahmoud Ahmadinejad.

Um pragmático, Hassan Rouhani, ocupa, desde 2013, a chefia do Estado, mas as rédeas do poder absoluto continuam nas mãos do Supremo Líder, o ultraconservador Ali Khamenei.

Em Isfahan, um dos maiores centros turísticos, algumas das vítimas pulverizadas com ácido ficaram cegas ou desfiguradas.

No dia 20, mais de 2000 manifestantes (estimativas da agência semi-oficial Fars) saíram à rua protestando contra os atacantes, supostamente próximos da linha dura do regime, a que, supostamente, mais beneficiará com o isolamento do país.

Nafise não teme represálias pelo facto de algumas filhas em Fathers & Daughters (Newsha, Katayoon, Shadi, Shima e Lina) desatenderem as recomendações oficiais de “ocultar todas as formas do corpo”.

Para este projecto, a autora não achou que tivesse de pedir licença oficial, embora jornalistas precisem de autorização do Ministério da Orientação Islâmica, e acredita que, em 2015, quando voltar à pátria, manterá a liberdade de lhe dar continuidade.

O pai de Fatemeh trabalha na biblioteca de uma mesquita. “As pessoas pensam que não sou livre poro meu pai ser uma figura religiosa, mas isso não é verdade. Quando eu tinha 15 anos, ele autorizou-me a visitar a feira nacional do livro com os meus amigos.” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Fatemeh trabalha na biblioteca de uma mesquita. “As pessoas pensam que não sou livre poro meu pai ser uma figura religiosa, mas isso não é verdade. Quando eu tinha 15 anos, ele autorizou-me a visitar a feira nacional do livro com os meus amigos”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Shima e Lina é gestor de projectos na área da construção civil. “O nosso pai estudou na Europa. Deu-nos toda a liberdade que os jovens ocidentais têm nas suas vidas privadas.” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Shima e Lina é gestor de projectos na área da construção civil. “O nosso pai estudou na Europa. Deu-nos toda a liberdade que os jovens ocidentais têm nas suas vidas privadas.”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

Esta confiança pode ser explicada pelo facto de quer o projecto como o prémio da LensCulture terem sido ignorados pelos media nacionais.

“Nenhuma publicação no Irão fez qualquer referência ao meu trabalho, porque não é possível mostrar mulheres sem o hijab”, constatou. “No entanto, uma cadeia de televisão que opera a partir do exterior mas é vista por milhões de iranianos deu-me tempo de antena, e as reacções foram muito encorajadoras.”

“Por vezes, os artistas enfrentam dificuldades, sobretudo com os media ocidentais, porque títulos e imagens são escolhidos com o intuito de provocar e não de informar”, lamentou Nafise.

“Por exemplo, a foto das gémeas [Shima e Lina] tem merecido um destaque maior do que as restantes, mas o meu objectivo foi tão só o de mostrar a diversidade das famílias iranianas, sem valorizar umas mais do que as outras.”

O que encantou Nafise foi a “reacção maravilhosa” dos fotografados e dos que têm visto as fotografias “O impacto foi tremendo junto dos iranianos na diáspora, tantas vezes ostracizados devido aos estereótipos”, alegrou-se.

“O meu olhar não é positivo nem negativo. É apenas um espelho que reflecte uma parte do Irão. Tenho recebido, por via privada, não apenas mensagens a felicitar-me mas também fotos de outros pais e filhas. É comovente.”

“Os conceitos de amor, família, esperança numa vida melhor e mais estável são, seguramente, iguais em todas sociedades. Alimento o sonho de que o mundo possa vir a ser dirigido por artistas, porque eles sabem como unir as pessoas, ao contrário dos políticos.“

O pai de Mahsa é um veterano de guerra. “Sempre foi o meu ídolo, mas gostaria que fosse o pai que feliz e com esperança como era antes.” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Mahsa é um veterano de guerra. “Sempre foi o meu ídolo, mas gostaria que fosse o pai que feliz e com esperança como era antes”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Fatemeh é agricultor. “Ele trabalha muito. Ele trabalha tanto!” © Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

O pai de Fatemeh é agricultor. “Ele trabalha muito. Ele trabalha tanto!”
© Cortesia de | Courtesy of Nafise Motlaq

“O facto de ser mulher tornou este projecto mais fácil”, destacou Nafise, elogiando “o papel fundamental das fotógrafas iranianas, em número cada vez maior e a trabalhar em várias áreas”. No início da sua carreira, recordou, já havia mais mulheres jornalistas do que homens.

“Naturalmente, algumas ganharam notoriedade a nível internacional, como Newsha Tavakolian, mas há outras que se mantêm activas apenas no Irão, e isso não pode ser negligenciado. As mulheres que se dedicam à fotografia olham para o que as rodeia de uma forma especial.2

“A sua abordagem e perspectiva são, por vezes, diferentes das dos homens. No que toca a questões femininas, elas conseguem exprimir o que sentem de forma mais profunda.”

“Não gosto da divisão homens-mulheres”, ressalvou Nafise, “mas o Irão, como outros países em vias de desenvolvimento, ainda padece de um problema de machismo.”

“Felizmente, eu não seria o que sou hoje sem o apoio dos homens da minha vida: o meu pai, irmão, marido, amigos e colegas que são talentosos fotojornalistas. Trabalho numa área onde, a nível mundial, há mais homens do que mulheres, por isso é natural que o desafio seja maior para as mulheres.”

A iraniana que se define “uma autodidacta” experimentou mas não se deixou seduzir por outros meios visuais.

“Para ser honesta, há um poder mágico na fotografia que não se encontra noutras artes”, realçou. “Sinto uma enorme paixão pela fotografia de documentário, e adoro o papel do fotógrafo como narrador de uma história baseada na realidade.”

Um novo projecto está já em marcha, combinação de imagem e textos mais longos do que as legendas de Fathers & Daughters. Centrar-se-á na comunidade de invisuais da Malásia, país a que a iraniana dedicara anteriormente uma outra série, Islamic Fashion (“Moda Islâmica”), centrada numa indústria que vale quase 100 mil milhões de dólares por ano.

Depois da indumentária colorida de mulheres muçulmanas, porquê a escuridão da cegueira? “Interesso-me por aqueles que não conseguem ver o mundo em que vivem, porque é o oposto da fotografia, onde a luz é tudo”, justificou Nafise.

Nafise Motlaq espera continuar o projecto Fathers & Daughters quando regressar ao seu Irão natal
© thenutgraph.com

Este artigo foi publicado originalmente na revista VISÃO, em 27 de Novembro de 2014 | This article was originally published in the Portuguese news magazine VISÃO, on November 27, 2014

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