Como explicar o aparecimento de um exército terrorista mais temível do que al-Qaeda? É invencível ou podem ser derrotado? Para descodificar um “mapa sem fronteiras” do Médio Oriente, onde os curdos lutam por uma nação, entrevistámos uma cientista política turca e um académico americano. À análise de Sezin Öney e de Henri Barkey segue-se um “dicionário do horror” que cita outras fontes. (Ler mais | Read more…)

Foto sem data, colocada num website jihadista e autenticada pela agência Associated Press, mostra combatentes do autoproclamado “estado islâmico” (designado neste artigo por Daesh), na cidade de Raqqa, a “capital” do seu “califado” na Síria
© AP Photo
Há uma percepção generalizada de que a progressão do chamado “estado islâmico” (EI, IS, ISIS, ISIL ou Daesh) surpreendeu governos e serviços secretos, de Washington a Teerão. Esta situação poderia ter sido evitada ou era inexorável?
“Seria evitável!”, diz-me, numa entrevista por e-mail, Henri Barkey, antigo consultor para o Médio Oriente e Mediterrâneo Oriental no Departamento de Estado americano e agora professor de Relações Internacionais na Universidade de Lehigh (Pensilvânia).
“Ninguém prestou atenção ao que se estava a passar, sobretudo ao facto de a fronteira entre o Iraque e a Síria ter rapidamente desaparecido depois que se iniciou a guerra contra Bashar al-Assad [em Damasco]. Os dois conflitos fundiram-se e influenciaram-se mutuamente.”
“A América não tentou conter as políticas desastrosas de Nouri al-Maliki [anterior primeiro-ministro e agora vice-Presidente do Iraque] nem ajudar os responsáveis no Curdistão [Norte do Iraque] a governar com instituições credíveis – neste caso, nem seriam necessários grandes esforços”, criticou Barkey, autor de vários livros, entre os quais Turkey’s Kurdish Question e Reluctant Neighbor: Turkey’s Role in the Middle East.
“Quanto aos sauditas, é óbvio que são eles a fonte principal de todas as ideias, pois há muito que financiam movimentos fundamentalistas.”
É certo, adiantou Barkey, que “a Arábia Saudita, a Turquia e o Irão [países de maioria sunita] não apoiaram directamente o ISIS”, mas “todos contribuíram” para o seu aparecimento. Neste lote, ele incluiu também o Qatar, “provavelmente, o país que terá fornecido uma assistência mais directa”, temendo a crescente influência regional do Irão xiita.
“Ao apoiarem o [grupo da oposição síria] Jabat al-Nusra, turcos e sauditas colocaram-se ao serviço de um movimento jihadista com as mesmas características do ISIS”, indicou Barkey. “O Nusra poderá não degolar pessoas mas, ideologicamente, não é muito diferente do ISIS. Patrocinar um é auxiliar indirectamente outro.”
“A Turquia ficou na posição de aliado de uma infra-estrutura jihadista que ajuda o ISIS – não é uma cooperação directa, mas é uma consequência das políticas que adoptou.”

Combatentes do Daesh capturados pelas Forças de Defesa Sírias (maioritariamente curdas), apoiadas pelos EUA
© Associated Press | The National
Sobre a Turquia, Sezin Öney, cientista política da Universidade de Bilkent, em Ancara, descarta qualquer “ignorância” quanto ao que se estava a passar. “Tratou-se, sim, de uma desvalorização das eventuais consequências da presença de uma organização radical e violenta”, diz-me também, numa entrevista por e-mail.
“No caso da al-Qaeda, por exemplo, a Turquia considerou sempre que era ‘um problema dos outros, das potências ocidentais’”.
“Ao longo de 12 anos de poder do AKP [Partido da Justiça e Desenvolvimento, do presidente Recep Tayyip Erdoğan], a Al-Qaeda nunca foi considerada uma ameaça de segurança grave, apesar de ter cometido atentados bombistas em Istambul em 2003. A ascensão do ISIS poderia, assim, ter sido evitada, e a Turquia deveria ter alertado o mundo antes de esta organização se tornar mais forte.”
Sobre os interesses dos vários actores regionais, da Turquia à Arábia Saudita, Sezin Oney, que é também colunista do jornal liberal Taraf, mostrou-se convencida de que “todos agem de uma forma maquiavélica”.
Ou seja, “sem uma posição de princípio em relação à violência do ISIS, é o modo como o conflito evolui que indicará até que ponto é que os interesses de cada parte confluem ou divergem.”
“Não nos podemos esquecer de que o ISIS é apenas mais uma das organizações radicais e violentas que usam a religião como instrumento de retórica”, acrescentou a analista turca. “Há muitos outros na região e no resto do mundo que lhe são leais.”
“Neste sentido, o ISIS criou uma ‘história’, por muito horrenda que a história seja. E a história foi criada precisamente pela brutalidade do ISIS.”
Sezin Öney, acredita que “o ISIS pode ser derrotado”. No entanto, adverte: “Aparecerão outros que aspiram a imitá-lo. As tácticas militares do ISIS fazem dele um misto de grupo terrorista e exército regular.”
“O modo como usa as redes sociais, para fazer o seu ‘marketing’, as conquistas territoriais e domínio administrativo funcionarão como fontes de inspiração.”
Quanto a Henri Barkey, a sua previsão é a de que “levará muito tempo até que se possa derrotar o ISIS”. E acrescentou: “Vai ser preciso um verdadeiro milagre para o derrotar – isso até pode acontecer no Iraque, mas na Síria será impossível enquanto Assad continuar Presidente.”
“A estratégia dos EUA parece ser a de empurrar o ISIS para a Síria”, segundo Barkey. “No Iraque, o ISIS consolidou-se de tal forma com numerosos combatentes e vasto equipamento militar que dificilmente o Exército iraquiano – desorganizado e com dificuldade em defender Bagdad – o conseguirá eliminar.”

Combatentes do PYD [sigla de Partiya Yekîtiya Demokrat, Partido da União Democrática), rebeldes curdos sírios vistos pelos Estados Unidos e pela União Europeia como aliados, mas considerados “terroristas” pela Turquia
© Kurdishstruggle | euobserver.com
Um dos mais importantes factores neste “conflito” é a chamada “questão curda”, e Barkey, que é um especialista na área, parece não ter dúvidas sobre a estratégia do presidente turco em relação a Kobane, no Norte da Síria.
“Erdoğan quer que a cidade fique sob controlo do ISIS, porque isso representará um duro golpe nas ambições dos curdos sírios de criarem, numa era pós-Assad, uma região autónoma como a dos curdos no Norte do Iraque.”
“Quando os EUA decidiram, pela primeira vez, não ceder aos desejos turcos no que diz respeito aos curdos foi um choque [para Ancara]. Eu sou a favor de Washington fornecer armas ao PYD [sigla de Partiya Yekîtiya Demokrat, Partido da União Democrática), porque este nunca cometeu actos terroristas e é o único capaz de combater eficazmente o ISIS, sem recuar no campo de batalha.”
Num relatório divulgado pelo International Crisis Group (ICG, com sede em Bruxelas), criticou o PYD de se ter associado a facções pró-Assad, mas Barkey considera que “é exagerada a ligação a Damasco”. E explicou: “Inicialmente, a oposição síria, em parte devido à pressão da Turquia, não se quis associar ao PYD e este, consequentemente, não se revoltou contra Assad.”
“Por que haveria de o fazer? A única esperança para a Síria é adoptar uma política que encoraje os apoiantes de Assad a abandoná-lo em troca de um acordo com a comunidade internacional que inclua também o Irão. Sem isto, a guerra não terá fim.”
Sobre Kobane, disse Sezin Öney: “O que acontecer aqui, seja o que for, transformará a natureza da questão curda na Turquia. Os curdos que lutam nesta cidade são venerados como ‘guerreiros heróicos numa batalha épica’. Os combates podem ser vistos a curta distância da cidade fronteiriça turca de Suruc.”
“Erdogan não quer, obviamente, que o PYD derrote o ISIS, mas a Turquia está sob pressão crescente devido à sua anão cooperação. Se o ISIS conquistar Kobane, mesmo que por um período breve, isso representará o colapso do ‘processo de paz’ [com os curdos] na Turquia. Se a cidade sobreviver ao ISIS, os sentimentos nacionalistas curdos renascerão em força, e não apenas na Síria.”
Dicionário do horror
A

O sucessor de Osama bin Laden na liderança da al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, num discurso aos seus seguidores. Fotos divulgada por as-Sahab, um dos media da organização
© NBC News
Al-Qaeda
Terá sido das fileiras da Al-Qaeda, a “Rede” fundada por Osama bin Laden, que emergiu o movimento conhecido pelas siglas inglesas IS, ISIS ou ISIL. Neste “dicionário”, será designado por Daesh, acrónimo de al-Dawlat (o Estado) al-Islāmiyya (Islâmico) fī’l ‘Irāq (do Iraque) wa’s-Shām (e Grande Síria ou Levante), com sentido pejorativo em árabe (ver D).
O que mais distingue o Daesh da Al-Qaeda, agora sob a batuta de Ayman al-Zawahiri, é que o primeiro visa “estabelecer uma entidade política viável nas áreas que controla” enquanto o segundo apostou “numa insurreição permanente contra adversários mais poderosos” e longínquos, explica o cientista político Mouin Rabbani:
-Outras diferenças e semelhanças foram apontadas por As’ad AbuKhalil, colunista do website Al Akhbar English. Entre as diferenças: o Desh não um líder carismático com dotes oratórios mas tem um “cérebro financeiro”; a sua especialidade não são ataques maciços contra alvos ocidentais mas a propagação, através dos “novos media”, de imagens de horror, para “intimidar e obter vitórias militares”.
Entre as semelhanças: o Daesh e a Al-Qaeda partilham a ideologia wahhabita (ver W) e a vontade (quase paradoxal) de derrubarem a Casa de Saud; ambos recrutam combatentes estrangeiros e justificam o assassínio de muçulmanos “apóstatas”. Em Abril último, o Daesh declarou que a “velha guarda” da al-Qaeda “já não é a base da jihad porque se desviou do caminho verdadeiro”.
B

O presumível líder do “estado islâmico” (Daesh), Abu Bakr al-Baghdadi, no que terá sido o seu primeiro discurso público, numa mesquita em Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, sob controlo do seu movimento. Esta imagem, difícil de autenticar, retirada de um vídeo, foi partilhada na Internet, a 5 de Julho de 2014
© Reuters
Baghdadi
Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Daesh, nasceu Ibrahim Awwad Ibrahim Ali al-Badri al-Samarrai, em 1971. O último dos apelidos deriva de Samarra, de onde a família será oriunda, cerca de 80 Km a norte de Bagdad.
Em 2003, quando George W. Bush ordenou o derrube de Saddam Hussein, Ibrahim frequentava uma universidade em Adhamiya, nos arredores da capital, onde concluiu, supostamente, “licenciatura, mestrado e doutoramento em Estudos Islâmicos”. Terá aderido à insurreição contra os invasores na província de Diyala.
Aqui “fundou o grupo armado Jaish Ahl-Sunna w’al Jamaa, que nunca se tornou famoso”, observou o analista iraquiano Mushreq Abbas. É certo que Ibrahim foi capturado por tropas americanas e enviado para o centro de detenção de Camp Bucca, no Sul. Não há unanimidade sobre se foi em 2004, 2005 ou 2006. Agiria como um “tipo alheado”, sem necessidade de vigilância especial, mas bastaram seis meses de cárcere para o transformar de muçulmano devoto num jihadista convicto”, segundo o diário The Guardian.
Após a sua libertação, no final dos anos 2000”, Ibrahim foi integrar o “conselho militar” do emergente “Estado Islâmico”, inicialmente, apenas um grupo sunita (a antiga classe dirigente) em luta contra o governo sectário de Maliki, um xiita apoiado pelo Irão. Naquela época, o chefe era Abu Omar al-Baghdadi, aka Hamed al-Zawi.
Quando este foi morto por forças dos EUA, em 2010, Ibrahim deixou de ser o “principal conselheiro” para assumir a liderança. Gradualmente, foi eliminando facções antagonistas e conquistando territórios, na Síria e no Iraque.
O primeiro discurso público do homem cuja captura vale 10 milhões de dólares foi um sermão, na sexta-feira, 5 de Julho de 2014, na mesquita de Mossul, a segunda maior cidade iraquiana. Vestido de negro (a cor que caracteriza todos os símbolos da organização, em particular a bandeira), o autoproclamado “califa Ibrahim” apresentou-se:
-“Não sou melhor nem mais virtuoso do que vós. Se me virem no caminho recto, ajudem-me. Se me virem no caminho errado, aconselhem-me, e não me deixem avançar. Obedeçam-me, tal como eu sou obediente a Deus.”
C

Harun al-Rashid, o famoso califa da dinastia dos Abássidas, recebe na sua corte, em Bagdad, uma delegação enviada por Carlos Magno, do Império Carolíngio
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Califado
O Daesh assumiu que pretende “restaurar o califado”, entidade com territórios e populações, governada por um líder temporal e espiritual. Literalmente, “califa” quer dizer “sucessor” – de Maomé, que deixou órfã e dividida a Ummah (comunidade dos crentes) quando morreu em 632.
Na disputa entre um sogro (Abu Bakr) e um genro (Ali Abi Talib), venceu o pai de Aisha, a favorita das mulheres do profeta do Islão, e não o marido da sua filha Fatimah Os apoiantes de Abu Bakr são os sunitas, defensores da Sunnah ou tradição, a maioria nos países muçulmanos.
Os “partidários de Ali” são os xiitas, predominantes no Iraque, Irão, Bahrein e Azerbaijão. O Califado Rashidun (que incluiu Abu Bakr e Ali) foi o primeiro. Durou de 632 até 661, e constituiu um dos maiores impérios da História, estendendo-se da Península Arábica ao Mediterrâneo.
O último foi o Otomano, abolido constitucionalmente, em 1924, por Mustafa Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna e secular. Num artigo publicado no New York Times, o jornalista egípcio Khaled Diab arrasou com o “califado” de Ibrahim/Baghdadi, estabelecendo uma comparação com o de Harun al-Rashid (circa 763-809).
“A sociedade abássida, no seu auge, era pujante no que toca ao multiculturalismo, à ciência, à inovação, ao ensino e à cultura – um contraste supremo com o puritanismo violento do ISIS”, observou Diab, recentemente galardoado com o Prémio Anne Lindh Jornalista Mediterrâneo do Ano 2014, com o texto Rebels without a god ou “Rebeldes sem deus”, sobre os ateus do Médio Oriente.
D

Um mapa sem fronteiras: Iraque (amarelo); Síria (laranja); áreas controladas pelo chamado “Estado Islâmico” ou Daesh (vermelho)
©Mashable
Daesh
Nos vídeos que coloca online, o movimento de Abu Bakr al-Baghdadi identifica-se apenas como al-Dawla, ou “o Estado”. Os que a ele se opõem optaram por designá-lo Daesh ou Da’ish, acrónimo com um peso negativo na língua árabe. Pode significar “esmagar” ou “pisar”.
A França adoptou oficialmente DAESH e o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, refere-se ao grupo como “Não Estado Não Islâmico” Uma outra teoria, referida pelo blogger Pieter Vanostaeyen, sugere que Daesh pode ser igualmente sinónimo de Jāhiliyya ou “estado de ignorância”, o período pré-islâmico que antecedeu o monoteísmo pregado por Maomé.
É uma das maiores ofensas dirigidas a um líder muçulmano, para o deslegitimar. Apesar de se definir como “Estado” o Daesh não pode ser considerado como tal, “porque rejeita fronteiras e não tem [ou não tinha] instituições”, indicou Peter Harling, analista do International Crisis Group (ICG). O movimento de Baghdadi, adianta, impôs-se primeiro no Nordeste da Síria (ar-Raqqa, a sua “capital”, Idlib, Deir es-Zor e Aleppo), porque as tropas de Assad se retiraram desta região.
Sem dificuldade, conquistou depois Mossul, no Iraque – onde começou a encher os cofres ao apoderar-se de vários bancos –, porque as autoridades locais eram “corruptas e incompetentes”.
Também se infiltrou no Norte do Líbano aproveitando outro vazio de poder. A CIA estima que o Daesh tenha “entre 20.000 e mais de 30.000” combatentes no Iraque e na Síria. A RandCorp. calcula que acumulou uma fortuna de 2.200 milhões de dólares, o que faz dele “o grupo terrorista mais rico do mundo”.
Novos dados do Consórcio TRAC, citados pela CNN, indicam que o Daesh formou, entretanto, uma estrutura hierárquica, designada por Al Imara, para governar os territórios sob seu domínio. “Deixou de ser uma força puramente militar para erguer um sistema que pode fornecer serviços básicos, como alimentos e gás.” Abu Bakr al-Baghdadi tem dois adjuntos, Abu Ali al-Anbari (responsável pelo Iraque) e Abu Muslim al-Turkmani (encarregue da Síria), antigos oficiais militares do regime de Saddam Hussein (1937-2006).
Estes adjuntos fazem chegar as suas ordens a governadores e a conselhos locais que depois as aplicam. Haverá ainda m “Conselho da Shura”, espécie de “parlamento”, que tem poderes como o de “censurar a liderança” e aprovar previamente decapitações.
F

O jornalista James Foley, experiente repórter de guerra, foi o primeiro dos reféns estrangeiros decapitados pelo Daesh. O vídeo macabro da sua execução foi colocado na Internet
© Daily Mirror.UK
Foley
Raptado em 22 de Novembro de 2012, no Noroeste da Síria, o jornalista freelance James (Jim) Foley foi o primeiro estrangeiro a ser decapitado pelo Daesh, que colocou na Internet o vídeo macabro da execução, em Agosto último.
Em 2011, Foley, de 40 anos, já tinha sido sequestrado na Líbia. Esteve cativo durante 44 dias e não se deixou abalar: “Acredito que o jornalismo em zonas de guerra é importante”, disse Foley ao Boston Globe, após ser libertado. “Sem as fotos e vídeos, sem a experiência em primeira mão, não podemos relatar ao mundo o que está a acontecer.”
Depois de Foley, um outro jornalista norte-americano, Steven Sotloff, foi também decapitado. Para o tentarem salvar, colegas tentaram tudo para ocultar que ela era judeu e tinha também nacionalidade israelita. Em vão. Mediáticas foram também as execuções de dois britânicos ao serviço de organizações humanitárias, David Haines e Alan Henning.
Quase ignoradas, em contraste, têm sido as decapitações de jornalistas no Iraque e na Síria. Nos últimos dez meses, segundo o diário The Guardian, o Daesh terá executado 17 repórteres iraquianos. Pelo menos 80 sírios terão sido sequestrados. O seu paradeiro continua desconhecido.
H

Halabja é uma localidade iraquiana na fronteira com o Irão, Em 19888, no âmbito da infame Operação Anfal, tropas de Saddam Hussein lançaram uma campanha genocida contra os curdos no Norte. Durante nove meses de uma campanha militar, mataram 180.000 pessoas – pelo menos 5000 das quais com armas químicas (outras 20.000 mil ficaram feridas) – e muitas mais continuam desaparecidas. Na foto, campas erguidas em homenagem às vítimas
© nijmannews.org/halabja
Halabja
Em 1988, cerca de 5000 pessoas, a maioria civis, foram mortas em Halabja, na fronteira com o Irão, quando as tropas de Saddam Hussein usaram armas químicas numa “campanha genocida”.
Para o académico Henri Barkey, “Halabja tornou-se num símbolo nacional” e “ajudou a moldar” a região autónoma agora designada por Governo Regional do Curdistão (KRG, sigla inglesa). Em 1988, recorda, o ditador de Bagdad tinha o apoio do Ocidente porque a República Islâmica de Khomeini era considerada “uma ameaça maior”.
Tal como Halabja se tornou um “marco na luta dos curdos pelos seus direitos”, o mesmo acontecerá com Kobane (ver K), na Síria, acredita Barkey.
I
Islão
A crueldade exibida por uma organização que clama ser um “Estado Islâmico” fez regressar em força o debate sobre “o que é e não é o Islão”. A propósito, vale a pena ler o artigo que Nathan Lean publicou no site da New Republic.
“Falamos de um ‘mundo islâmico’ e de um ‘mundo muçulmano’, apesar de não existir esta extensão mal definida”, afirma o director do Center for Muslim-Christian Understanding da Universidade de Georgetown, em Washington, e autor de The Islamophobia Industry:
-“Não há um ‘Islão’ radical’ e um ‘Islão militante’ mas sim indivíduos ‘militantes’ e ‘radicais’ que são muçulmanos, e são as suas acções, não a sua religião que devem ser descritas usando aqueles adjectivos. (…) De igual modo, não há ‘extremismo islâmico’ ou ‘terrorismo islâmico’, mas apenas muçulmanos que adoptaram o extremismo e o terrorismo.”
O terror não é característica do Islão, insiste Lean, dando exemplos: “Na Índia do século XI, os governantes [tâmil] Chera usaram bombistas suicidas na luta contra a dinastia dos Cholas; as decapitações não foram iniciadas na Arábia Saudita nem pelo ISIS, mas sim na Europa; o primeiro sequestro de um avião foi registado no Peru em 1931. (…) “
“Se culpamos o Corão pelos maus actos cometidos por muçulmanos em nome do Islão, a lógica exige que também lhe seja dado crédito pelas boas acções. Isso não é apropriado, num caso e noutro.”
K

Mapa onde se pode ver a cidade estratégica de Kobane, na fronteira da Síria com a Turquia que tem sido usada para vários tipos de contrabando por parte dos jihadistas
©dailymail.co.uk
Kobane
A cidade síria de Kobane (ou Kobani) “tem um grande valor estratégico porque quem a controlar terá acesso a uma fronteira importante”, escreveu Robin Wright, no Wall Street Journal.
Também conhecida como Ayn al-Arab ou “Primavera dos Árabes”, Kobane serve de “porta de entrada na Turquia, país que se expande da Europa à Ásia, é membro da NATO e aliado dos EUA”, realçou a analista do U.S. Institute for Peace.
Armado com requintado equipamento militar que as forças norte-americanas deixaram no Iraque, enriquecido com receitas de um milhão de dólares por dia – graças aos bancos que esvaziou, às antiguidades que vendeu e ao petróleo que exporta dos campos sob seu controlo –, o Daesh tem enfrentado, em Kobane, a força combinada de guerreiros curdos e ataques aéreos dos EUA.
O académico Henri Barkey acredita que Kobane será “um símbolo importante na construção da nação curda”. As vitórias dos defensores de Kobane não se podem comparar às derrotas das débeis forças curdas iraquianas, e muito menos do Exército iraquiano, face ao avanço do ISIS. Quanto mais tempo a cidade resistir, maior será o impacto da sua reputação, que já alcançou, aliás, proporções míticas. [Em Fevereiro de 2015, o Daesh confirmou ter perdido o controlo de Kobane para os guerreiros curdos, mas pelo menos 70% da cidade foi destruída.] A resistência em Kobane mobilizou os curdos espalhados pelo mundo, mas sobretudo na Turquia, notou Barkey.
“Apesar de ter tido a coragem de iniciar um processo de paz com o insurrecto Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, ver P), o Governo em Ancara enfrenta agora um dilema: uma vitória do PYD, que é um aliado, se não mesmo uma criação, do PKK, não só reforçará a posição negocial deste como encorajará os curdos a formarem outra região autónoma, na fronteira com o Curdistão do Norte do Iraque.”
“Para Ancara, isso será um desaire estratégico, porque irá encorajar, naturalmente, os curdos turcos a reclamar o mesmo.”
M
![From the 11th to 13th centuries, medieval Europe absorbed knowledge from Islamic civilization, which was then at its cultural peak. and Muslim playing chess in al-Andalus, from The Book of Games of Alfonso X, el Sabio, c. 1285. The game of chess originated in India, but was transmitted to Europe by the Islamic world.[1] ©](https://margaridasantoslopes.files.wordpress.com/2014/11/640px-christianandmuslimplayingchess.jpg?w=637&h=636)
Entre os séculos XI e XIII, a Europa medieval absorveu o conhecimento da civilização islâmica, que estava no seu auge cultural. Na imagem, retirada do Livro dos Jogos, de Afonso X, O Sábio, vemos uma partida de xadrez entre cristãos e muçulmanos, no al-Andalus, por volta de 1285. Este jogo tem origem na Índia, mas foram muçulmanos que o introduziram na Europa.
Medieval
Os actos de barbárie aplicados pelo Daesh têm sido descritos como “medievais”. Não é correcto, afirma Yoav J. Tenenbaum, professor de Estudos de Diplomacia na Universidade de Telavive. O historiador israelita compreende que seja “fácil atribuir a decapitação de inocentes em frente de câmaras de TV a uma ideologia de zelotismo de um período medieval distante”.
No entanto, esclarece, “os actos de brutalidade e uma visão totalitária do mundo prevalecem num grau muito maior no século XX do que na Idade Média.” Não pertencem à Idade Média, relembra, a Alemanha nazi de Hitler nem a Rússia comunista de Estaline.
“Os Khmer Vermelho no Camboja cometeram actos de brutalidade indescritíveis contra os seus próprios cidadãos, sem terem recorrido a meios tecnológicos avançados. A visão que Pol Pot tinha do mundo não era, seguramente, mais iluminada do que a de Abu Bakr al-Baghdadi.”
Para Tenenbaum, “usar os termos pejorativos de ‘Idade Média’, ‘período medieval’, ‘Idade das Trevas’, para descrever o IS e alertar para a sua ideologia nefasta, é historicamente duvidoso e intelectualmente questionável.”
O Daesh de Baghdadi, “não é o primeiro grupo terrorista na história moderna a desejar destruir pela força o sistema internacional vigente; não é o primeiro a defender uma ideologia totalitária que não tolera desvios e que oblitera toda a oposição, real ou imaginária; não é o primeiro grupo a glorificar a morte e a aproveitar-se da sensibilidade de audiências e espectadores temerosos em países democráticos.”
Recomendação final: “Não é necessário recuar centenas de anos para descrever a brutalidade do IS ou para nos avisar da sua sinistra visão do mundo; basta-nos uma curta viagem na História.”
N

Comandante das guerreiras curdas na cidade síria de Kobane, Mayssa Abdo, é conhecida pelo “nome de guerra” de Narin Afrin. Também a veneram como “Princesa dos Peshmerga” (literalmente, “os que enfrentam a morte”)
© Jamie Wiseman | The Daily Mail
Narin Afrin
Comandante das guerreiras curdas em Kobane, Narin Afrin é o “nome de guerra” de Mayssa Abdo. Dirige, ao lado de Mahmoud Barkhodan, a Unidade de Protecção do Povo Curdo (YPG), braço armado do PYD.
Também conhecida por Princesa dos Peshmerga (“os que enfrentam a morte”), Narin terá nascido em Afrin, província de Aleppo, onde se inclui Kobane. Segundo o consórcio TRAC, “pelo menos 35%” (cerca de 10.000) dos guerrilheiros curdos no Norte da Síria são mulheres.
Em declarações à publicação curda The Rojava Report (citadas por vários sites, incluindo este), Abdo/Afrin destacou: “Transformámos num inferno os primeiros locais onde eles [os jihadistas do Daesh] entraram, e Kobane continuará a ser, para eles, um inferno.
A resistência em Kobane é sobretudo de mulheres, que usam emboscadas e armadilhas, tácticas de defesa criativas e a determinação em sacrificarem as suas próprias vidas.” Uma das que se sacrificou foi Dilar Gencxemis, identificada pelo YPG com o “nome de guerra” de Arin Mirkan.
A 5 de Outubro fez-se explodir num atentado suicida para matar dezenas de terroristas do Daesh. Henri Barkey, que há muito estuda um povo que se distingue dos árabes e dos turcos, constatou como a resistência das curdas “tem contribuído para o carácter mítico” dos combatentes em Kobane.
“É notável justapor um ‘Estado Islâmico que escraviza mulheres ou as cobre da cabeça aos pés com o PYD que conta, nas suas fileiras, com numerosas mulheres a lutar e a morrer ao lado de homens.”
P

Bandeiras do PKK e imagens do seu líder, condenando a pena perpétua, Abdullah Öcalan (também conhecido como Apo), na cidade de Diyarbakir, no Sudeste da Turquia
© Associated Press
PKK
A 15 de Agosto de 1984, 30 rebeldes das Hêzên Rizgariya Kurdistan (HRK, Forças de Libertação do Curdistão) entraram em Eruh, povoação de 4000 habitantes nas montanhas do Sudeste da Turquia.
Divididos em três grupos, apoderaram-se de uma guarnição militar e mataram um soldado. Ocuparam uma mesquita e, por um dos altifalantes do templo, anunciaram a sua presença. Antes de recuarem para os seus refúgios, alardeando o feito de terra em terra, proclamaram na praça central o “início da guerra de libertação curda”.
Foi este o primeiro ataque do braço armado do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), e o conflito, que já causou cerca de 40 mil mortos, continua por solucionar. Abdullah Öcalan, o líder, condenado a pena perpétua mantém-se preso, desde a sua captura em 1999, na fortaleza de Imarli, no Mar de Mármara.
O Presidente Erdogan procurou desacreditar Öcalan quando iniciou um processo de cessar-fogo em 2013, mas não conseguiu. O dirigente do PKK mantém intacta a elevada popularidade entre os curdos da Turquia e da Síria, mais empenhados em preservar a sua identidade étnica do que a fé no Islão sunita.
Depois de ter tentado cativar o votos dos curdos nas presidenciais, o ex-primeiro-ministro Erdogan rapidamente os abandonou, considerando agora que o PKK e o PYD “são grupos terroristas” como o Daesh Só a 20 de Outubro, depois de intensa pressão internacional, Erdogan autorizou a entrada de guerrilheiros curdos em Kobane.
O salvo-conduto foi apenas concedido aos peshmerga de Massud Barzani, líder do Partido Democrático do Curdistão (KDP) e presidente do Governo Regional Curdo (KRG) no Iraque. Barzani mantém boas relações com Ancara embora a sua influência se limite a duas províncias iraquianas Duhok e Erbil (e até aqui seja ínfima).
Q

Qassem Soleimani (barba grisalha), o todo-poderoso comandante da Força al-Quds, considerada uma “unidade de elite” dos Guardas da Revolução do Irão, junto a um grupo de peshmerga, combatentes curdos no Iraque
© IRNA | The Guardian
Qassem Soleimani
Raramente visto em público, Qassem Soleimani foi notícia quando, em Outubro último, se deixou fotografar e filmar ao lado de combatentes curdos no Norte do Iraque. Comandante da Força al-Quds, unidade de elite dos Guardas da Revolução, patrono de Assad na Síria, do Hamas em Gaza, e do Hezbollah no Líbano, o general quis demonstrar a determinação da República Islâmica em salvaguardar os seus interesses.
Sejam eles manter um governo aliado em Bagdad, como proteger os santuários xiitas de Samarra, Kadhimiya, Najaf e Kerbala.
O Irão tem participado activamente nas batalhas contra o Daesh no Iraque, fornecendo material bélico e soldados, sobretudo em Diyala, na fronteira entre os dois países que travaram uma guerra (1980-1988) de mais de um milhão de mortos, em ambos os lados, e na qual Suleimani participou.
A conquista pelo Daesh de vários territórios forçou à demissão de Nouri al-Maliki, um primeiro-ministro visto como inimigo pela minoria sunita iraquiana e como “marioneta” de Teerão. Hoje com 57 anos, Suleimani terá integrado a Força Quds por volta dos 20.
Ninguém menoriza a sua influência. Disse um analista ao diário The Guardian: Apoiado por Ali Khamenei, o Guia Supremo, Suleimani “está em toda a parte e em parte nenhuma . É o mestre que manipula os fantoches.”
R
Rojava
Com o significado de “Ocidente” em curdo, Rojava é uma região autónoma de facto, no Norte e Nordeste da Síria, proclamada por representantes das minorias locais, em 2012, na sequência da guerra civil que assola o país.
O chamado “Curdistão Sírio”, onde se localiza a cidade de Kobane, é um reduto do PYD. Em Outubro, o International Crisis Group (ICG), com sede em Bruxelas, divulgou um relatório muito crítico, referindo que os aliados do PYD são Damasco, o Irão e o Governo xiita em Bagdad.”
O ICG recomendou que o PYD “alargue a sua base de apoio a curdos e não curdos, e a grupos pragmáticos da oposição síria, distanciando-se dos rufias de Assad”.
S
Shām
Por que é que uns usam a sigla ISIS e outros a ISIL para se referirem ao autoproclamado “Estado Islâmico”?
“A raiz da inconsistência”, informou a BBC, “está na palavra árabe al-Shām, que tem sido, variavelmente, traduzida como ‘o Levante’, ‘Grande Síria’, ‘Síria”’ ou até ‘Damasco’.
O termo al-Shām, usado pelos antigos califas do século VII para descrever a área entre o Mediterrâneo e o Eufrates, a Anatólia e o Egipto, vigorou até à primeira metade do século XX”.
Desapareceu quando, após o colapso do Império Otomano, as potências mandatárias britânicas e francesas, através dos Acordos de Sykes-Picot (1916), traçaram novas fronteiras no Médio Oriente, criando “estados-nações”.
Após a I Guerra Mundial, o “Levante” passou a incluir as actuais Síria, Jordânia, Líbano, Israel-Palestina e parte do Sudeste da Turquia. É, supostamente, esta a região do “califado” reclamado pelo Daesh, sob a liderança de Baghdadi.
T
Taliban
O Daesh foi comparado aos governantes do antigo “Emirado Islâmico do Afeganistão” (1996-2001) por Ahmed Rashid, considerado um dos maiores especialistas nos grupos extremistas na Ásia. Num artigo publicado pelo New York Review of Books, o jornalista e escritor paquistanês observou:
-“Tal como a dos Taliban, a guerra do ISIS tem-se concentrado mais em conquistar território do que em lançar uma jihad global ou fatwas para ataques bombistas em Nova Iorque ou Londres.. Embora tenha atraído cerca de 3000 combatentes estrangeiros, a verdadeira guerra do ISIS é contra outros muçulmanos, em particular os xiitas.”
“(…) Tal como os Taliban mudaram o carácter do Islão na Ásia do Sul e Central, também o ISIS planeia fazer o mesmo com o Médio Oriente, ao procurar o domínio territorial.”
Uma significativa semelhança entre os “estudantes de Teologia” e os discípulos de Baghdadi, segundo Rashid, é que ambos estão preparados para “uma longa jogada”.
W

Membros do Comité para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, a polícia religiosa saudita que impõe a rígida doutrina wahhabita no reino, numa “sessão de formação”, em Setembro de 2007 – os seus poderes começaram a ser diminuídos em 2016
© Ali Jarekji | Reuters
Wahhabita
Esta é a ideologia do Daesh e da al-Qaeda. Trata-se de um movimento de revivalismo islâmico fundado, na Arábia do século XVIII, por Muhammad ibn Abd al-Wahhab, teólogo da rigorosa escola de jurisprudência hanbalita.
Wahhab fez da tawhid ou unicidade de Deus a sua principal doutrina, que ele considerava uma reacção ao declínio moral e político da comunidade muçulmana do seu tempo. Propôs um regresso aos princípios básicos da religião, com ênfase no Corão e nas tradições (ahadith), e advogava a violência, “se necessário”, para proteger esse ideais.
Muitos dos que se horrorizam com as decapitações levadas a cabo pelo Daesh tendem a ignorar que esta é uma prática comum no Reino da Arábia Saudita (um dos maiores aliados do Ocidente, porque um dos seus principais fornecedores de petróleo), onde o wahhabismo é lei.
Segundo a Amnistia Internacional, desde Janeiro de 2014, a Arábia Saudita decapitou quase 60 pessoas, oito delas num só mês – ou seja, o dobro do número de reféns estrangeiros executados pelo Daesh.
Y

Cerca de 700 famílias yazidis foram sitiadas pelo Daesh no Monte Sinjar, a ocidente da província iraquiana de Mosul
© Khaled Mohamed | Associated Press
Yazidis
Escravizados e massacrados pelo Daesh, os yazidis são uma minoria religiosa monoteísta, de expressão curda, que vive sobretudo no Nordeste do Iraque, mas também no Nordeste da Síria e no Sueste da Turquia.
Devido a múltiplas perseguições, é difícil estimar o número exacto de membros desta comunidade, que terá sido fundada na índia, refere o site oficial . Totalizarão cerca de 800.000 no Iraque, e pelo menos 200 mil estarão exilados noutros países.
Segundo um dirigente religioso (citado aqui), desde que o Daesh começou a erigir o seu “califado”, cerca de 5000 yazidis foram mortos, 7000 (a maioria mulheres e crianças) foram raptados, e cerca de 350 mil são refugiados no Curdistão iraquiano, na Síria e na Turquia.
Em 20 de Outubro, cerca de 700 famílias yazidis ainda estavam sitiadas no Monte Sinjar, a ocidente da província iraquiana de Mosul, dependendo dos abastecimentos lançados por via aérea por forças dos EUA.
Um dos melhores retratos dos yazidis apareceu na BBC, pela mão de Diana Darke, autora de My House in Damascus: An Inside View of the Syrian Revolution. Sobre o epíteto de “adoradores do demónio”, a escritora diz que se deve a uma convicção errada de que os yazidis descendem de Yazid ibn Muawiya (647-683).
Segundo califa omíada, Yazid viu-se envolvido nos conflitos gerados pela imposição desta dinastia a um mundo muçulmano em expansão. Em 680, no início do seu breve califado (durou três anos), tentou lidar com uma das dimensões do problema, suprimindo o apoio a Hussein ibn Ali, neto de Maomé.
Num cerco ordenado por Yazid, em Kerbala (actual Iraque), foram massacrados Hussein (um dos dois filhos de Ali Abi Talib, genro do profeta), dezenas dos seus seguidores e familiares. A partir deste momento, Hussein tornou-se mais um mártir do xiismo enquanto Yazid passou a personificar o Mal. Diana Darke esclarece que “yazidis” não se deve a Yazid mas deriva da expressão moderna persa ized, que significa anjo ou divindade.
“Ou seja, yazidis traduz-se por ‘adoradores de deus’ – e é assim que eles se descrevem a si próprios.” Muitas das suas crenças têm baseiam-se no cristianismo. Os livros sagrados são a Bíblia e o Corão. Por os ritos serem secretos, confundiu-se o yazidismo com o zoroastrismo (dualidade luz/escuridão) e até adoração do Sol, mas isso não corresponde à realidade.
“As crianças são baptizadas com água benta por um pir (padre)”, revela Diana Darke. “Nos casamentos, as noivas vestem-se de vermelho e visitam igrejas cristãs. O guia supremo dos yazidis é Yasdan – “um ser tão elevado que não pode ser directamente venerado.
É considerado o Criador do Mundo, não o protector. Dele emanam sete espíritos, o maior dos quais é o Anjo Pavão, conhecido como Malak Taus, a quem os crentes rezam cinco vezes por dia.
O “pior castigo” para um membro da comunidade – onde se nasce yazidi, não há conversos e ninguém se pode converter a outra religião – é ser expulso, “porque a alma não pode purificar-se e transmigrar”.
X

Nimr Baqir al-Nimr , líder dos xiitas na Arábia Saudita, foi acusado de “falta de lealdade ao rei”. Executaram-no em Janeiro de 2016
© adhrb.org
Xiitas
Se o Daesh é implacável com os seus inimigos, o mesmo se pode dizer do reino que inspira a sua ideologia: a Arábia Saudita. Na quarta-feira, 15 de Outubro, quando o ministro canadiano dos Negócios Estrangeiros, John Baird, era calorosamente acolhido pelo seu homólogo em Riad, um tribunal condenou à morte (por crucificação) um destacado opositor xiita.
O xeque Nimr Baqir al-Nimr foi acusado de “falta de lealdade ao rei”. A sentença poderá ser reduzida a pena perpétua. [O xeque seria executado em Janeiro de 2016, no pico de tensões políticas entre sauditas e iranianos] Num artigo publicado aqui, um dos maiores especialistas no Golfo Pérsico.
Toby Craig Jones, descreveu o veredicto como “o produto de um sistema que sacrifica vidas humanas para manter uma autoridade centralizada e os privilégios de uma elite.” Nimr é um alvo “não por ser um perigo para a sociedade”, segundo Jones, mas por “criticar a discriminação religiosa, denunciar a opressão e exigir reformas políticas”.
Nimr é oriundo da aldeia de Awamiyya, na Província Oriental, onde se situam muitas das jazidas de petróleo e vive a maioria dos xiitas sauditas, cerca de 10 a 15% dos 29 milhões de habitantes. Na opinião de Jones, a escalada anti-xiita “deve-se menos a uma interpretação retrógrada do Islão e mais à convergência de factores políticos, internos e externos a que o Estado é vulnerável.”
Exemplos: As ambições iranianas de dominar o Golfo Pérsico; a ascensão do poder xiita no Iraque pós-Saddam; a sublevação xiita no Bahrein, governado por um minoria sunita; as críticas na Casa de Saud à corrupção e falta de direitos políticos.
Z

Abu Musab al-Zarqawi, o fundador da organização al-Qaeda no Iraque /ou na Mesopotâmia (AQI), é considerado um dos mentores do chefe de Abu Bakr al-Baghdadi
© globalresearch.ca/
Zarqawi
O principal mentor do “califa Ibrahim” terá sido Abu Musab al-Zarqawi, artífice da organização al-Qaeda no Iraque ou na Mesopotâmia (AQI – não confundir com AQIM, al-Qaeda no Magreb).
Em 1989, Zarqawi ter-se-á candidatado a mujahedin (combatente) no Afeganistão. Foi vã esta tentativa, porque os invasores soviéticos já batiam em retirada, revelou Bobby Ghosh, em The Atlantic.
Nesse mesmo ano, regressou à Jordânia, onde nascera e se manteve activo em redes extremistas. Uma década depois, em 1999, voltou ao Afeganistão. Por esta altura, conheceu Bin Laden, mas não se juntou logo à al-Qaeda.
Em 2001, com a queda dos Taliban que governavam Cabul, Zarqawi mudou-se para o Iraque. Em 2003, após a invasão liderada pelos EUA, Zarqawi criou o Jama’at al-Tawhid w’al–Johad (Partido do Monoteísmo e da Jihad), do qual Abu Bakr al-Baghdadi fez parte.
O sunita Zarqawi dependia muito de combatentes estrangeiros, e os seus alvos eram, preferencialmente, muçulmanos xiitas, a maioria da população, que ele considerava hereges e usurpadores do poder, após o derrube de Saddam Hussein.
Em 2004, na sequência de vários atentados bombistas e suicidas, Zarqawi tornou-se uma “estrela jihadista”, observou Ghosh. Foi então que se juntou a Bin Laden, e deu ao Jama’at al-Tawhid w’al–Johad o nome de AQI.
Os seus métodos eram tão sanguinários que “escandalizaram” até Zawahiri, na altura o “número dois” da al-Qaeda. Comandante militar e político, Zarqawi também aspirava a ser “califa” (líder espiritual), mas essas ambições morreram quando tropas norte-americanas o assassinaram em Junho de 2006, fazendo cair várias bombas sobre o seu esconderijo em Bagdad.
Em 2011, com a retirada militar dos EUA, o AQI passou a ser “Estado Islâmico” e Abu Bakr al-Baghdadi o seu novo “emir” (chefe”).
![Sezin Öney, cientista política na Universidade de Bilkent, em Ancara, descarta qualquer “ignorância” quanto ao que se estava a passar. “Tratou-se, sim, de uma desvalorização das eventuais consequências da presença de uma organização radical e violenta”, comentou, também numa entrevista por e-mail. “No caso da al-Qaeda, por exemplo, a Turquia considerou sempre que era ‘um problema dos outros, das potências ocidentais’”. “Ao longo de 12 anos de poder do AKP [Partido da Justiça e Desenvolvimento, do Presidente Recep Tayyip Erdoğan], a al-Qaeda nunca foi considerada uma ameaça de segurança grave, apesar de ter cometido atentados bombistas em Istambul em 2003. A ascensão do ISIS poderia, assim, ter sido evitada, e a Turquia deveria ter alertado o mundo antes de esta organização se tornar mais forte.” Sobre os interesses dos vários actores regionais, da Turquia à Arábia Saudita, Sezin Oney, que é também colunista do jornal liberal Taraf, ©](https://margaridasantoslopes.files.wordpress.com/2014/10/sezin_oney.jpg?w=637)
Sezin Öney, cientista política na Universidade de Bilkent, em Ancara, e colunista do jornal liberal Taraf. Podem segui-la no Twitter em @SezinOney

Henri Barkey, professor de Relações Internacionais na Universidade de Lehigh (Pensilvânia, Estados Unidos). Podem segui-lo no Twitter em @hbarkey
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no REDE ANGOLA, em 29 de Outubro de 2014 | This article, now updated, was originally posted on the news website REDE ANGOLA, October 29, 2014