Merkel, Putin e Obama: Onde estavam eles em 1989?

No dia em que o Muro de Berlim caiu, Angela Merkel não interrompeu o seu “ritual de sauna” das quintas-feiras à tarde. Só à noite foi celebrar, com cerveja, a abertura de um checkpoint que separava as duas Alemanhas. Em Dresden, onde recrutava espiões para o KGB, Vladimir Putin percebeu que era inevitável o fim da RDA, mas ainda chora o colapso da URSS. Em Chicago, a firma de advogados Sidley & Austin acabara de contratar um “prodigioso estudante de Direito de Harvard”, Barack Obama, que seria o primeiro presidente afro-americano. (Ler mais | Read more…)

Barack Obama, Angela Merkin e Vladimir Putin: os "donos" do mundo? © Direitos Reservados | All Rights Reserved

Barack Obama, Angela Merkin e Vladimir Putin: os “donos” do mundo?

A física “Kohl girl

Angela Kasner (Merkel) tinha apenas 7 anos, em 1961, quando o Muro de Berlim começou a ser erigido. Era domingo, 13 de Agosto e, para a futura chanceler, este dia permaneceu “uma das memórias mais amargas” da sua vida.

A construção foi iniciada três semanas depois de a família ter regressado à pequena povoação de Templin, na extinta República Democrática Alemã (RDA), após um mês de férias na Baviera. “A mãe chorou na igreja enquanto o pai, pastor da congregação luterana local, lia o sermão dominical”, relatam Alan Crawford e Tony Czuczka, co-autores da biografia Angela Merkel: A Chancellorship Forged in Crisis.

Em 1967, um outro episódio tornar-se-ia também uma lembrança azeda: durante uma visita à antiga Checoslováquia, a 21 de Agosto de 1968, carros de combate soviéticos esmagaram a “Primavera de Praga”.

De volta à escola, em Templin, a futura chefe de Governo queria contar o que ouvira na rádio, mas recuou quando viu o rosto nervoso da professora.

Sobre esse tempo, disse ao jornal Frankfurter Allgemeine: “Sim, é uma desvantagem que, na Alemanha de Leste, tenhamos aprendido a ficar calados. Essa era uma das estratégias de sobrevivência. E continua a ser ainda hoje”.

Desse período, reteve também um conselho que terá dado a países europeus em dificuldades económicas, como Portugal: “Não é o que se ganha mas o que se poupa que nos torna independentes.” Na RDA, Merkel apenas investiu nos esforços para se superar a si própria.

Não foi na Alemanha comunista que Angela Kasner nasceu, mas em Hamburgo, na República Federal, em 17 de Julho de 1954. O pai, Horst, formara-se em Teologia naquela cidade, mas era natural do Leste e aqui queria viver.

Quando a filha tinha 7 meses, ele e a mulher, Herlind Jentzsch, colocaram-na num berço e seguiram para a paróquia de Quitzow, “a cerca de 20 quilómetros da fronteira intra-alemã”, relatam os biógrafos Crawford e Czuczka.

Por não pertencerem à “classe operária”, as autoridades na RDA proibiram Herlind de exercer a profissão de professora de Inglês. Ela passou a ser “dona de casa e mãe (de três filhos) a tempo inteiro”. O marido foi encarregue, em 1957, de abrir um seminário (Waldhof) em Templin, cerca de 80 quilómetros a nordeste de Berlim.

Horst rapidamente se tornou um influente membro do clero luterano. A religião contrariava a ideologia do Estado, mas as autoridades não viam, aparentemente, como ameaça um homem que defendia “um socialismo de rosto humano”, ainda que não escondesse os livros do dissidente soviético Andrei Sakharov na sua biblioteca.

Segundo Crawford e Czuczka, o maior ídolo de Angela, durante a infância, era Marie Curie, a polaca naturalizada francesa que foi a primeira mulher a ganhar um Nobel: da Física (em 1903) e a primeira pessoa a quem o prémio foi atribuído duas vezes: ganhou o da Química em 1911.

Num país onde “era preciso não atrair atenções e, ao mesmo tempo, ser melhor do que os outros”, foi naquelas áreas que a filha de Horst se especializou. “As leis da Física não permitem distorcer a verdade”, diz Merkel.

Terminado o liceu, em 1973, ela saiu de casa dos pais e foi estudar para a Universidade de Leipzig. Fora das aulas, servia bebidas em “festas disco sound” organizadas pelos colegas. Aqui conheceu, em 1974, o primeiro marido, Ulrich Merkel.

Só se casaram (três anos depois) porque, de outro modo, o governo não permitia partilhar um apartamento na mesma cidade. Em 1981, ela pediu o divórcio. Ele ficou com os móveis; ela manteve o apelido.

As leis da Física – a área em que se especializou – “não permitem distorcer a verdade”, diz Angela Merkel

Por esta altura, a polícia secreta (Stasi) tentou que Angela fosse informadora numa escola para a qual se candidatara a professora.

Não conseguiu o emprego porque alegou “não saber guardar segredo”. Dedicou-se à investigação na Academia de Ciências da Alemanha de Leste, onde concluiu o doutoramento em Química, em 1986. Um colega, Joachim Sauer, seria o seu segundo e actual marido.

Se tivesse colaborado com a Stasi, Angela Merkel dificilmente teria chegado a chanceler. Em 9 de Novembro de 1989, quando o Muro de Berlim caiu e milhares de alemães celebravam a liberdade, ela não cancelou a tradicional sessão de sauna das quintas-feiras.

Só à noite se juntou, com amigos, a uma multidão em júbilo. Antes, telefonara à mãe a lembrar que um sonho se tornara realidade e, por isso, teriam de cumprir a promessa de ir comer ostras no Hotel Kempinski, em Berlim Ocidental.

Embora seguisse a política “do outro lado”, Merkel não era propriamente uma activista – e tem admitido isso em entrevistas.

Após a queda do Muro, juntou-se ao Despertar Democrático, de Wolfgang Schnur, mas logo o abandonou para ser porta-voz da CDU (democratas-cristãos) na RDA, dirigida por Lothar de Maiziére.

Quando as Alemanhas se reunificaram em 1990, o então chanceler, Helmut Kohl, levou Merkel para o seu Governo. Ela estava no partido apenas há seis meses e tinha 36 anos.

Em 2000, aquela a quem chamavam “Kohl girl” assumiu a liderança da CDU. Afastou mentores e rivais. É hoje a mulher mais poderosa da Europa e do mundo.

O espião de Leninegrado

Vladimir Putin era espião do KGB, em Dresden, na RDA, quando caiu o Muro de Berlim. Para ele, desaparecimento da União Soviética foi “a maior catástrofe geopolítica do século XX”

O tenente-coronel Vladimir Vladimirovich Putin chegou à “mansão do KGB” em Dresden, na antiga Alemanha de Leste, em Agosto de 1985. Vinha de Leninegrado, actual São Petersburgo, e os camaradas nos serviços de espionagem da URSS chamavam-lhe “pequeno Volodya”.

Putin chegou no ano em que, em Moscovo, morreu Konstantin Tchernenko, secretário-geral do Partido Comunista (PCUS).

Quando os operacionais no “quartel-general” em Berlim-Karlshorst telefonaram a comunicar o óbito, para que o Kremlin avaliasse a reacção dos cidadãos na RDA, os agentes em Dresden foram buscar a um “esconderijo” garrafas de champanhe da Crimeia para celebrar.

O chefe da missão estava em Leipzig, numa feira, e eles queriam festejar o facto de Tchernenko “não ter demorado tanto tempo a sair de cena” como os antecessores, Leonid Brejnev (1906-1982) e Iuri Andropov (1914-1984).

“Era totalmente óbvio, para nós, que o poder soviético estava a dirigir-se, inexoravelmente, para o declínio”, disse ao semanário alemão Der Spiegel Vladimir Ussolzev, um dos agentes em Dresden que, em 2013, preparava uma biografia de Putin.

Não era um cargo de luxo aquele para o qual foi mobilizado o actual Presidente da Rússia. O edifício do KGB ficava a 100 metros de distância da sede da Stasi, a polícia secreta da Alemanha de Leste.

Dresden e outras regiões da RDA representavam, para Moscovo, “uma frente importante em termos de luta de classes”, salientou Ussolzev. “A NATO era o alvo principal, havendo particular interesse nos ‘Boinas Verdes’, as forças especiais do Exército dos EUA estacionadas na cidade bávara de Bad Tölz.”

O “verdadeiro trabalho” de Putin, segundo Ussolzev, era “descobrir potenciais agentes do KGB entre estudantes estrangeiros na Universidade Técnica em Dresden. “Ele procurava pessoas cujas famílias eram parte da elite política e que poderiam vir a ser informadores valiosos quando regressassem aos seus países de origem.

Por muito bem sucedido que pudesse ter sido nas tentativas de recrutamento – e “roubo de segredos tecnológicos” (a chamada Operação Luch/”Raio”) –, o que parece certo, segundo um artigo, assinado em The Atlantic, por Fiona Hill e Clifford G. Gaddy, é que Putin “nunca fez parte das estruturas mainstream”. Em Leninegrado ou em Dresden, mesmo sendo esta a terceira maior cidade da RDA, com meio milhão de habitantes, “esteve sempre na periferia”.

No entanto, tal como Vladimir Ussolzev, também Putin chegou à conclusão, em Dresden, que “a URSS sofria de uma doença incurável e terminal”.

Putin começou por apoiar Mikhail Gorbatchov, o artífice da Perestroika. Ambos eram discípulos de Andropov e este advogava igualmente reformas.

No entanto, quando viu que o primeiro e último presidente soviético não conseguia controlar as mudanças que pôs em marcha, o actual líder russo concluiu que “não podia deixar-se guiar por uma lealdade cega a uma ideologia a dirigentes específicos”, observaram Hill e Gaddy. “A sua lealdade passou a ser ao Estado e não a um sistema de governo”.

O fim da RDA e a queda do Muro de Berlim eram inevitáveis”, considerou Putin. O que ele lamenta é o desaparecimento da União Soviética, que descreveu como “a maior catástrofe geopolítica do século XX – a URSS deixou de ser uma superpotência e milhões de russos foram excluídos da Federação Russa.”

Em 1989, Putin tinha 37 anos. A sua União Soviética era constituída por 15 repúblicas espalhadas por 11 fusos horários, com fronteiras que se estendiam do Mar Báltico até ao Extremo Oriente, do Ártico ao Mar Negro.

Em 2014, a Rússia de Putin tem 143 milhões de habitantes, menos do que os 148 milhões em 1994. Entre as razões apontadas para este decréscimo estão uma baixa taxa de natalidade e um elevado número de abortos. Se isto assusta Putin, a perspectiva de uma Rússia de maioria muçulmana em 2050 ainda o atemoriza mais.

D Gordon, que fez estas observações, na publicação electrónica Washington Examiner, argumenta que o antigo espião está empenhado em “proteger os cidadãos russófonos”, estejam eles nas zonas que já anexou na Geórgia e Ucrânia, como na Letónia, Lituânia ou Estónia.

“Ele quer reconstruir a Grande Rússia – porque pode, e está confiante de que a América e a Europa não o confrontarão”.

O advogado que veio de Harvard

Brad Berenson, também entrevistado pela NPR, disse que era impossível não reparar no “tipo que veio do Hawai, com calças de ganga, blusão de cabedal estilo Jimmy Dean, que fumava de pé, em frente a Gannett House [o mais antigo edifício da Harvard Law School, construído em 1838].” ©

Brad Berenson, colega de Barack Obama na universidade, disse à NPR que era impossível não reparar “tipo que veio do Hawai, com calças de ganga, blusão de cabedal ao estilo de Jimmy Dean, que fumava de pé, em frente a Gannett House [o mais antigo edifício da Harvard Law School, construído em 1838]”

Aos 25 anos, associada na firma de advogados Sidley & Austin, em Chicago, Michelle Robinson foi notificada de que teria de supervisionar Barack Obama, de 27, “um prodígio da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard”. Nem um nem outro imaginavam como 1989 iria mudar as suas vidas – e o mundo.

Inicialmente, Michelle resistiu às propostas de Barack para que namorassem. Temia falatório porque ambos eram “os únicos negros” na firma. Em 3 de Outubro de 1992, os dois casaram-se. En 2009, ele entrou na história como o primeiro Presidente negro da América.

Não será exagero dizer que 1989 foi um marco para a carreira de Obama. Numa entrevista à emissora americana National Public Radio (NPR), Lawrence Tribe, estrela académica em Harvard, lembrou o quanto ficou impressionado, desde o primeiro momento, com “o jovem magrinho, de jeans e cabeleira afro” que foi bater à porta do seu gabinete, dizendo: “Quero trabalhar consigo.”

Naquele altura, Obama já se destacava como activista comunitário em Chicago. “Quando chegou ao campus, era mais do que evidente de que ansiava distinguir-se dos outros; queria aprender como funcionava o sistema”, notou Tribe, o mentor e futuro conselheiro presidencial.

Um dos objectos de estudo de Obama, “investigador assistente” de Tribe, foi tentar encontrar uma forma de legislar sobre um tema fracturante da sociedade – o aborto –, colocando a ênfase na educação e no controlo da natalidade.

Foi bem sucedido e, no segundo ano em Harvard, a reputação de Obama não passava despercebida, a professores e colegas. Um destes, Brad Berenson, também entrevistado pela NPR, disse que era impossível não reparar no “tipo que veio do Hawai, com calças de ganga, blusão de cabedal ao estilo de Jimmy Dean, que fumava de pé, em frente a Gannett House [o mais antigo edifício da Harvard Law School, construído em 1838].”

No momento em que decidiu candidatar-se a um dos mais prestigiados cargos na Faculdade de Direito – presidente da Harvard Law Review – Obama conseguiu o que parecia impossível: um consenso entre editores democratas e republicanos.

Um dos republicanos que o apoiou foi Berenson: “Tínhamos a sensação de que, ao contrário de outros candidatos, ele era uma mente aberta, alguém que nos ouviria e aceitaria o nosso contributo.”

“Confirmou-se o instinto dos conservadores”, salientou Berenson. “Obama irritou mais quem estava à esquerda, como ele, do que os que se posicionavam à sua direita.” Razão? “Porque o seu principal objectivo foi sempre consolidar a imagem da Law Review como uma publicação de primeira classe.”

Ser presidente da revista de Harvard ofereceu a Obama fama a nível nacional. Quando partiu para Cambridge (Massachusetts) , “tinha todas as portas abertas”. Não seguiu a advocacia, como fez Michelle, até optar por ser primeira-dama em regime de exclusividade.

Ele escolheu a carreira política, vencendo a sua primeira eleição em 1996, para senador pelo Estado do Illinois.

Em 1989, quem governava a América era um republicano – George H. W. Bush, que enfrentou o desmoronamento da União Soviética e do Pacto de Varsóvia. Em 2014, o democrata que agora ocupa a Casa Branca confronta a emergência do “Estado Islâmico” (ISIS/DAESH), um movimento mais extremista do que a al-Qaeda, responsável pelos atentados de 11 de Setembro de 2011.

Comparando as duas presidências, na revista Commentary, Jonathan S. Tobin não poupa ambas: “Se há analogia adequada com 1989 é entre as reacções dos governos dos EUA na Europa [há 25 anos] e actualmente. Em 1989, a Administração de George H. W. Bush mal sabia o que dizer sobre a derrocada do império do mal.”

“Em vez de liderar a favor da liberdade, o primeiro Presidente Bush e seus acólitos pareciam perdidos, de início, e opuseram-se energicamente, depois, a que os Estados cativos 8da Europa de Leste] fossem livres.”

Obama, segundo Tobin, tem demonstrado igual incapacidade para lidar com as revoltas árabes, da Tunísia ao Iémen, preferindo, aparentemente, o confortável statu quo, de manter no poder ditadores aliados.

O próprio Departamento de Estado norte-americano, no seu site, admite que G.H.W. Bush, surpreendido com a queda do Muro de Berlim, só agiria activamente quando Boris Ieltsin sucedeu a Gorbatchov, prometendo então, a partir de 1992, apoiar economicamente a Rússia com 4000 a 5000 milhões de dólares.

Obama, por seu turno, demorou a agir contra o ISIS/DAESH (considerado o resultado da desastrosa invasão do Iraque em 2003, ordenada por Bush filho), e só recentemente deu “luz verde” a operações militares contra o que tem sido descrito como “a maior ameaça que o mundo enfrenta desde a Guerra Fria”.

Barack Obama

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Vladimir Putin

Este artigo foi originalmente publicado na revista SÁBADO, em 25 de Outubro de 2014 | This article was originally published in the Portuguese news magazine SÁBADO, on October 25, 2014

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