A 13 de Setembro de 1993, enquanto Bill Clinton empurrava Yitzhak Rabin e Yasser Arafat para um aperto de mão, nos jardins da Casa Branca, um grupo de operacionais da CIA concentrou-se no Cemitério Nacional de Arlington, na capital dos Estados Unidos.
Desgostosos por não terem sido convidados a testemunhar a assinatura dos Acordos de Oslo, deslocaram-se à campa de Robert Ames para homenagear o agente “que iniciou o processo de paz”.
Assim começa The Good Spy (“O Bom Espião”), da autoria de Kai Bird, o historiador que, em 2006, dividiu o distinto Prémio Pulitzer com Martin J. Sherwin, graças a outra biografia, American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer.
Se o retrato do “pai da bomba atómica” é um livro magistral, a obra dedicada a Robert (Bob) Ames é tão extraordinária quanto a vida e a morte do “Lawrence da Arábia americano”.
Bird, filho de um diplomata americano, tinha 12 anos quando conheceu Bob. Foram vizinhos em Dhahran, na Arábia Saudita, quando o agente da CIA se fazia passar por “adido comercial”. Inicialmente, a intenção do autor era apenas escrever sobre o atentado que, em 1983, destruiu a Embaixada dos EUA em Beirute, onde Bob haveria de morrer.
Foi só quando reencontrou Yvonne Ames que Bird se deu conta de que poderia ir mais além. A viúva e os seis filhos de Bob colocaram ao seu dispor mais de 150 páginas de cartas e várias fotografias. Antigos colegas e outras fontes também quiseram revelar segredos com mais de três-quatro décadas.
Ficamos assim a saber que Ames, nascido em 1935 num subúrbio de classe operária em Filadélfia, começou a gostar de dois mundos, o árabe e o da espionagem em 1956, quando o Exército o colocou num posto de escuta da National Security Agency (NSA) na Eritreia.
Após o serviço militar, chumbou no exame para entrar no Foreign Service mas, em 1961, foi aceite na CIA, com a responsabilidade de recrutar agentes estrangeiros. O Médio Oriente tornou-se no seu campo de acção – do Iémen ao Kuwait, do Líbano ao Irão.

Ali Hassan Salameh, conhecido como “príncipe vermelho,”, aqui aos 27 anos, em Beirute, quando dirigia a Força 17, “unidade de elite” dos serviços secretos da OLP
© As-Safir
Ames apaixonou-se pelos árabes, a sua cultura e língua (que falava fluentemente), e era inegável que simpatizava com “causa palestiniana”. Um dos principais núcleos da narrativa de Bird –antigo correspondente do Expresso em Washington – assenta na relação singular entre Bob e Ali Hassan Salameh, chefe da Força 17, em tempos descrita como “unidade de elite” dos serviços secretos da OLP.
Conhecido como “príncipe vermelho”, pela fama e proveito de playboy, Ali Salameh nasceu em 1942, em Bagdad (Iraque), lugar de refúgio quando o Mandato Britânico da Palestina ofereceu uma recompensa pela captura do seu pai, o lendário Sheikh Hassan.
Foi depois de um combate com a milícia judaica Irgun, liderada por Menachem Begin (perseguido pelos ingleses como terrorista), que Hassan morreu, vítima de ferimentos de balas, em 2 de Junho de 1948. Tinha 37 anos.
Também Salameh seria morto aos 37 anos, em 1979, na sequência de uma ordem de Begin (já primeiro-ministro), que não desistira de eliminar os suspeitos do massacre de atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique em 1972.
Bird dá a entender que Munique não foi única razão para a Mossad matar Salameh, ao fazer explodir um carro armadilhado quando ele e os guarda-costas seguiam por uma rua de Beirute. O motivo principal terá sido a relação privilegiada que Ames estabelecera com o presumível herdeiro de Arafat.
Embora sendo duas personalidades opostas (o “espião” era um marido fiel a Yvonne enquanto o “príncipe” não escondia as amantes e era casado com duas mulheres), Ames e Salameh conseguiram que a OLP fosse, indirectamente, “ouvida” pelo Presidente dos EUA. Em tempo de Guerra Fria, isto era uma heresia, para Israel.
A Mossad inquiriu a CIA sobre se Salameh era um “colaboracionista”. Esse “estatuto” ter-lhe-ia salvo a vida. A Agência guardou silêncio, e Salameh não aceitou o conselho de Ames para se deixar proteger. Sabia que estava condenado à morte –mas jamais por “traição”.
Salameh, que Ames conheceu através do xiita libanês Mustafa Zein (outra figura relevante no livro de Bird), recusou sempre ser pago pela CIA. E recebeu propostas de alguns milhões de dólares.
O único presente que aceitou, de Bob, foi uma viagem à Disneylândia e ao Hawai, na companhia da sua segunda mulher, a libanesa Georgina Rizk, Miss Universo 1971.

O único presente que Ali Hassan Salameh aceitou de Bob Ames foi uma viagem à Disneylândia e ao Hawai, na companhia da segunda mulher, a libanesa Georgina Rizk, Miss Universo 1971
Ames estava a par de que Salameh planeava actos terroristas, mas nunca conseguiu confirmar o envolvimento do amigo no Setembro Negro, o grupo responsável pelo massacre de Munique.
Os laços entre ambos eram tão sólidos que Ali Hassan se tornou no protector dos americanos num Líbano dilacerado pela guerra civil (1975-1990). Chegou a salvar a vida de Henry Kissinger – o chefe da diplomacia que prometeu a Israel nunca reconhecer a OLP –, ao alertar para planos que visavam abater o avião que o transportava.
Salameh não sobreviveu para salvar Ames, um dos 63 americanos mortos quando a Embaixada dos EUA foi alvo de um atentado bombista, em 1983, levado a cabo por uma nova força, o Hezbollah, criada pelo Irão depois de Israel invadir Beirute, no ano anterior.
Perguntámos a Kai Bird por que está tão seguro de que Ames teria “aproximado a América dos Árabes” quando um dos lamentos de Bob permanece imutável: “Creio que se os israelitas nos conduzissem até à III Guerra Mundial, nós [EUA] continuaríamos a não os pressionar”.
Numa entrevista por e-mail, o historiador esclareceu: “O meu argumento, em The Good Spy, é o de que a diplomacia clandestina de Ames com a OLP plantou as sementes para que israelitas e palestinianos começassem a negociar uma solução política, para este conflito, baseada em dois Estados. Contudo, é igualmente verdade que Ames se sentia mais e mais frustrado, ao constatar que a política externa dos EUA na região não era equilibrada.”

Robert Ames foi uma das vítimas da destruição da Embaixada dos EUA em Beirute, em 1983: a responsabilidade foi atribuída ao Hezbollah, a nova força política regional que emergiu após a invasão israelita do Líbano no ano anterior
Como agiria hoje Bob face à ameaça de uma nova guerra no Médio Oriente, liderada pelos EUA, para travar a barbárie do “Exército Islâmico” (EI – IS ou ISIS, nas siglas inglesas)? “Robert Ames era um bom espião porque sabia ouvir as pessoas”, respondeu Bird.
“Não é possível saber o que ele pensaria da crise actual, mas eu gostaria de crer que ele olharia com cepticismo para os ‘peritos’ na América actual que exortam um cauteloso e relutante Presidente [Barack] Obama a intervir militarmente.”
“Ames sabia o suficiente para compreender que o Médio Oriente é uma encruzilhada complicada de políticas tribais e religiosas. Prefiro pensar que o seu conhecimento o convenceria de que a América deve evitar outra guerra no Médio Oriente.”
“Uma das minhas frustrações é concluir que muito poucas pessoas aprendem com a História”, acrescentou Bird.
“Nós, americanos, parecemos incapazes de aprender que as nossas inúmeras intervenções no Médio Oriente exacerbaram invariavelmente as coisas. A guerra do Iraque em 2003 é apenas o exemplo mais egrégio deste tipo de blow-back.”
“Sim, vivemos uma trapalhada sanguinária. E não há dúvida que haverá ainda mais violência devastadora. Mas tenho a certeza de que o fundamentalismo religioso e a violência desprezível brandida pelo ‘exército islâmico’ [Daesh] é um fenómeno momentâneo. O ISIS [Daesh] está apenas a preencher um vazio político – e será derrotado pelos seus numerosos inimigos locais.”
Durante a entrevista, Bird lamentou que a CIA tivesse mantido confidenciais documentos que poderiam iluminar ainda mais as várias narrativas contidas nas 430 páginas da biografia de Robert Ames.
“Gostaria de pensar que The Good Spy revela aos leitores o que significa, na realidade, ser um espião”, disse. “A profissão é desmistificada. Outros livros meus foram críticos da CIA, mas aprendi, com a vida de Robert Ames, que um agente clandestino da CIA pode, por vezes, chegar onde um normal diplomata está impedido de ir. Ele podia falar com “tipos maus” com armas – e tentar entender o que os levava a usar as armas.”
“Um bom espião pode conhecer as intenções e motivações humanas. E isso é uma peça de intelligence de valor incalculável. A minha biografia de Ames poderia ter sido enriquecida se a CIA tivesse concordado em levantar a confidencialidade de alguns dos memorandos e telegramas de Ames. Mas todos os meus pedidos foram recusados”.
Mesmo sem ajuda em Langley (a sede da CIA), Bird dá informações que eram desconhecidas. Resolve, por exemplo, o mistério do desaparecimento do Imã Musa al-Sadr, que nunca mais fora visto após uma visita à Líbia de Khadafi, em 1978.
Terá sido Khomeini quem mandou assassinar aquele teólogo xiita libanês, por “ser uma ameaça”, ao opor-se ao conceito de Velayat-e Faqhi (“direito” de os religiosos deterem poder temporal).
Kai Bird expõe ainda uma amarga ironia: um iraniano, Ali Reza Asgari, implicado na explosão que matou Robert Ames, desertou e vive agora na América. Terá sido ele quem forneceu a informação que permitiu localizar, em Damasco, o artífice da destruição da embaixada em Beirute.
O fugitivo Imad Mughniyeh, xiita libanês, fora treinado por Salameh mas trocou a OLP pelo Hezbollah. Também ele foi executado pela Mossad, com recurso a um carro armadilhado, em 2008.
Este artigo, com um título diferente (“Vida e morte de um espião”), foi publicado originalmente n jornal EXPRESSO, em 27 de Setembro de 2014 | This article, under a different headline, was originally published in the Portuguese newspaper EXPRESSO, on September 27, 2014