Porquê estudar o Holocausto e não a Nakba?

Mohammed Dajani Daoudi sabia que corria riscos ao liderar um grupo de jovens palestinianos numa visita à antiga rede de campos de concentração e extermínio no que foi a Polónia sob domínio nazi. O objectivo era estudar a Shoah no contexto do conflito com Israel. No regresso a Jerusalém, o professor perdeu o emprego. (Ler mais | Read more…)

Mohammed Dajani durante a visita com os seus alunos a Auschwitz. © Cortesia de | Courtesy of Mohammed Dajani

Mohammed Dajani Daoudi durante a visita com os seus alunos a Auschwitz
© Cortesia de | Courtesy of Mohammed Dajani

A morte tem acompanhado a vida de Mohammed Suleiman Dajani Daoudi. Nasceu em 1946, no sector ocidental de Jerusalém, mas foi obrigado a mudar-se para o lado oriental em 1948, após a primeira guerra israelo-árabe. No êxodo forçado de milhares de palestinianos, a sua família perdeu todos os bens e propriedades.

Da infância e adolescência, Daoudi reteve “os valores da temperança, tolerância e existência” que aprendeu, no ensino primário e secundário, na Friends School, que pertence à sociedade de movimentos religiosos Quaker.

“Ainda me recordo do tempo em que o director Farid Tabri, um cristão licenciado pela Universidade Islâmica de al-Azhar, no Cairo, organizava assembleias de leitura duas vezes por semana: uma para a Bíblia e outra para o Alcorão”, disse-me Daoudi, numa entrevista por e-mail.

Daoudi formou-se em Comunicação Social na Universidade Americana de Beirute, em Junho de 1972. Foi neste ano que começou a envolver-se em “políticas radicais”.

Em 1975, decidiu mudar de rumo e partiu para os Estados Unidos, com o objectivo de prosseguir os estudos. Em 1976, concluiu um mestrado em Artes pela University of Eastern Michigan.

Frequentou depois a Universidade da Carolina do Sul, onde se doutorou em 1981. Dois anos depois, fez um segundo doutoramento na Universidade do Texas, em Austin 1983. Seria, mais tarde, docente nestas duas universidades.

Mohammed Daoudi não é um desconhecido na sociedade palestiniana. A sua família sempre foi influente em Jerusalém. Um dos seus bisavôs, Sheikh Ahmed Dajani (1459-1561), foi nomeado pelo sultão otomano guardião do túmulo do Rei David, no Monte Sião.

Duas experiências pessoais mudaram o seu trajecto, revelou Daoudi. “Em 1993, quando as autoridades israelitas permitiram que me juntasse à minha família – eu vivia no Líbano desde a guerra de 1967 – pude constatar que o meu pai, doente de cancro, era tratado pelos médicos israelitas como um paciente e não como árabe ou inimigo”.

A segunda experiência envolveu a mãe que, numa crise asmática, foi socorrida, por guardas do Aeroporto de Ben-Gurion, que chamaram uma ambulância com uma equipa de médicos e enfermeiros. Ela acabaria por morrer num hospital militar, onde a internaram, mas Daoudi só pensava naqueles que a tentaram salvar.”

“Estas experiências pessoais ajudaram-me a ver o rosto humano do meu inimigo, convertendo-me num activista pela paz que acredita em “NÓS E ELES” mais do que em “NÓS OU ELES”, sublinhou.

Um total de 30 alunos universitários manifestaram interesse em visitar Aushwitz com o professor Dajani: dois desistiram e um não foi autorizado por Israel a viajar por ser “simpatizante do [movimento islamista] Hamas
© Cortesia de Mohammed Dajani

O homem que se define como “intelectual muçulmano que procura aproximar a sua comunidade dos valores islâmicos moderados e dos ensinamentos do Alcorão”, fundou o projecto Wasatia (“Moderação”) em Janeiro de 2007. “Rejeito o uso do terrorismo e da luta armada para pôr fim à ocupação israelita.”

“Entre 1967 e 1975, fui militante activo da Fatah [a maior facção da Organização de Libertação da Palestina /OLP], apelando à destruição de Israel e à criação, sobre os seus escombros, de um Estado palestiniano”, recordou. “Posteriormente, como conselheiro da Autoridade Palestiniana fui-me distanciando de um sistema político autocrático e corrupto que emergiu dos Acordos de Oslo”.

As ideias de Mohammed Daoudi são controversas, numa altura em que o movimento BDS (boicote, desinvestimento e sanções) ganha apoios para isolar Israel. “Quando questiono o direito de retorno dos refugiados palestinianos, a minha intenção é poupar à geração mais jovem a experiência de crescer como minoria muçulmana num Estado judaico”, justificou.

“Pelo contrário, prefiro que os nossos filhos cresçam como uma maioria num Estado palestiniano. Não deixemos que o peso pesado do passado enterre as promessas do futuro.”

A receita de Daoudi para a paz é esta: “Os palestinianos precisam de engolir o comprimido amargo de que Israel ‘está aqui para ficar’; por seu turno, os israelitas devem também tomar o comprimido amargo que lhes permitirá compreender que a criação de um Estado palestiniano, forte e não fraco, é necessidade essencial para cumprir a procura de uma identidade palestiniana.”

Foi este activista de convicções inabaláveis que decidiu levar a Auschwitz – pela primeira vez – um grupo de alunos para estudarem o Holocausto, tentando “entender a outra parte” do conflito. Segue-se a entrevista feita em Junho:

Como surgiu a ideia de visitar Auschwitz?

Em Fevereiro de 2011, fui convidado pela organização Aladdin, em Paris, a ir até Auschwitz em conjunto com 150 líderes religiosos de todo o mundo.

Esta viagem abriu-me os olhos. Sou um palestiniano, muçulmano moderado, educado numa cultura que nega as atrocidades do Holocausto, vê este como a causa da catástrofe nacional palestiniana de 1948, ou acredita que houve um esforço coordenado entre nazismo e sionismo para que os judeus apoiassem a criação do Estado de Israel na Palestina.

A bestialidade do que vi obrigou-me a deixar de ser um mero espectador. Dois meses depois, co-assinei com Robert Satloff [director executivo do think tank neo-conservador The Washington Institute for Near East Policy] um artigo de opinião intitulado Why should the Palestinians learn about the Holocaust? [“Por que devem os palestinianos estudar o Holocausto?”]

Em seguida, apoiados pela Freidrich Schiller University e com fundos da German Research Foundation, planeámos a viagem dos estudantes.

Mais uma foto de Dajani e dos seus alunos durante a visita a Auschwitz. © i24news.tv

Mohammed Dajani e os seus alunos durante a visita a Auschwitz
© Cortesia de | Courtesy of Mohammed Dajani

 Como descreve a visita?

A maioria dos estudantes que participaram teve um curso sobre resolução de conflitos no American Studies Institute [criado poe Daoudi] na Universidade de al-Quds University. Recebemos 70 candidaturas; seleccionámos 30. Comprámos bilhetes e vistos. Duas raparigas desistiram e um simpatizante do Hamas não foi autorizado por Israel a viajar.

Passámos dois dias em Cracóvia, na Polónia, a ouvir falar das condições de vida nos bairros judaicos antes do Holocausto. Depois, estivemos três dias em Auschwitz – dois para visitar o campo e o terceiro para troca de pontos de vista.

Que perguntas foram feitas pelos participantes?

Eles fizeram muitas perguntas e aprenderam imenso com as respostas. Infelizmente, devido a notícias distorcidas que apareceram nos media palestinianos, as provocações começaram ainda antes da partida. Alegavam, por exemplo, que a viagem tinha sido planeada por universidades israelitas e financiada por organizações judaicas.

Os estudantes começaram a ficar preocupados e a adoptar uma postura defensiva, sublinhado que ninguém os poderia acusar de terem abdicado das reivindicações a um Estado.

Por que é tão difícil que palestinianos e judeus (israelitas e outros) tenham dificuldade em aceitar as suas narrativas respectivas?

É difícil porque uns e outros estão em rota de colisão, cada um lutando para aniquilar o outro para ser a força dominante. Acredito que será mais fácil chegar à paz e à coexistência se for respeitada, mas não adoptada, a narrativa uns dos outros.

Qualifica a viagem com os estudantes como seu maior desafio a nível pessoal e da sua carreira académica?

Sim, foi um dos maiores desafios, até agora. Dada a natureza altamente sensível do Holocausto para a identidade nacional palestiniana, eu sabia que caminhava num campo minado e envolvendo muitos riscos. Antes de partir, recebi um aviso para não viajar.

Também chegou uma carta da reitoria da Universidade de al-Quds a desencorajar-me de seguir o meu plano, e exigindo que informasse os alunos de que seria responsabilidade deles se me acompanhassem. Eu informei os participantes e pedi que assinassem formulários dando o seu consentimento. Tinha consciência de que estava a violar os códigos da sociedade e quebrar temas tabu.


“Quando um dos meus alunos me perguntou por que devíamos estudar o Holocausto se Israel quer proibir o uso da palavra Nakba, a minha resposta foi simples: ‘Porque estamos a fazer o que é certo”, disse Mohammed Dajani (Na foto, um palestiniano é impedido de entrar na Mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém, considerada pelos muçulmanos o terceiro lugar sagrado do Islão, durante a festa judaica do Tabernáculo)
© Ahmad Gharabli | AFP | Getty Images

Uma das razões que alguns comentadores evocam como explicação plausível para as críticas de que em sido alvo é a dos laços que mantém os neoconservadores na América…

… Em 2002, quando fundei na Universidade de al-Quds o American Studies Center, o críticos disseram que se tratava de uma operação da CIA para recrutar [espiões entre os] estudantes. Em 2007, quando estabeleci a iniciativa moderada Wasatia, os críticos acusaram-me de receber dinheiro dos EUA para promover um Islão ocidental.

Desta vez, uma viagem de estudo tornou-se um esquema perverso para lavar o cérebro da juventude palestiniana. Se eu ligar aos críticos acabo por me tornar num vegetal.

Por que decidiu demitir-se dos seus cargos na universidade? Não foi uma “capitulação”?

Não! Não desisti mas elevei a batalha para um patamar mais elevado. A minha carta de demissão [entregue em Junho] foi um teste para ver até que ponto a administração da universidade apoia a liberdade académica, a liberdade de expressão e de acção – o que não se verificou.

[A universidade emitiu, entretanto, um comunicado a esclarecer que pediu ao professor Daoudi que recuasse na demissão, e ele recusou, mas insistindo em que a viagem a Auschwitz foi uma “aventura pessoal”].

Esperava que o reitor recusasse a minha demissão mas, ao aceitá-la, a mensagem foi óbvia: “’Não há lugar no nosso campus para as ideias de Dajani’. Não foi esta, também, a mensagem que os Atenienses quiseram enviar aos alunos de Sócrates quando o condenaram à morte?”

Os palestinianos têm estado sempre no campo dos vencidos. A viagem a Auschwitz coincidiu com mais um fracasso das negociações de paz. Por que acha que deve ser o oprimido a ceder ao opressor?

Não fui a Auschwitz por eles [israelitas] mas por mim. Repito: Não quero permanecer um espectador. O ódio, o racismo e a sectarismo espalham um reino de terror e as pessoas boas ficam paralisadas. Fomos a Auschwitz em busca do conhecimento: por que aconteceu [o Holocausto], como prevenir que se repita? É preciso quebrar as barreiras que nos separam.

Quando um dos meus alunos me perguntou por que devíamos estudar o Holocausto se Israel quer proibir o uso da palavra Nakba, a minha resposta foi simples: ‘Porque estamos a fazer o que é certo”.

Mohammed Dajani: “Dada a natureza altamente sensível do Holocausto para a identidade nacional palestiniana, eu sabia que caminhava num campo minado e envolvendo muitos riscos”
© porisrael.org

Este artigo, com um título diferente, foi publicado originalmente na revista ALÉM-MAR edição de Setembro de 2014 | This article, under a different headline, was originally published in the Portuguese news magazine ALÉM-MAR, September 2014 edition

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